Intercept Brasil
A direita se articulou para pautar o governo Lula.
Nem parece que se passaram duas semanas. A despensa segue cheia. Os cinco quilos de arroz do Rio Grande do Sul, os nibs de cacau de Rondônia, o mel do Piauí, o coco ralado do Rio Grande do Norte, as cervejas artesanais e o leite seguem estocados. Saí da Feira Nacional da Reforma Agrária, que reuniu produtores do MST no Parque da Água Branca, em São Paulo, com a sensação de que aquele é o Brasil que deu certo. Os dias em que o parque foi ocupado por comida de verdade, diversa, vendida pelas famílias produtoras, foram um respiro. Parecíamos estar voltando ao que podemos ser.
Então, veio essa semana. Como disse uma amiga, terrível para quem defende a vida. O clima positivo daquele microcosmo da feira foi soterrado pela política real. Se a derrota de Bolsonaro deu ao Brasil – e, não é exagero dizer, ao mundo – a chance de sobreviver frente à catástrofe climática, de fazer justiça a povos historicamente marginalizados e oprimidos, de garantir diversidade e pluralidade num governo de esquerda comprometido com a defesa do Meio Ambiente, os fatos mais recentes mostraram que, no mínimo, ainda estamos perdendo essa batalha.
No Congresso, a comissão mista aprovou a Medida Provisória que desfigurou o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério do Meio Ambiente. O primeiro, uma criação do novo governo que alçou Sonia Guajajara ao cargo de primeira ministra indígena do Brasil, perderia nada menos do que a demarcação de terras indígenas – que ficaria com o Ministério da Justiça. Já o MMA perderia o Cadastro Ambiental Rural, o CAR, essencial para o controle de grilagem – ainda que também seja subvertido para favorecê-la –, a Agência Nacional de Águas e os sistemas que controlam saneamento básico, resíduos sólidos e recursos hídricos – centrais em qualquer política ambiental.
A ministra Marina Silva, que bravamente comprou uma briga contra a Petrobras pelo veto à licença para exploração de petróleo na Amazônia, foi pintada pela mídia como enfraquecida e seu ministério, esvaziado. Mas, como escreveu Eliane Brum, não foi uma derrota dela:"ao tirar da pasta áreas vitais, acabou. Não acabou para Marina nem para o ministério. Acabou para o governo Lula, que será rearranjado ao modo da extrema direita".
Naqueles dias, os mesmos ruralistas também atuaram para movimentar a votação do PL 490/2007, que cria o Marco Temporal, na Câmara. Relembrando: o Supremo Tribunal Federal marcou para o início de junho a votação do marco, tese que determina que etnias só podem reivindicar demarcação das terras em que já estivessem fisicamente na data da promulgação da Constituição de 1988. Os indígenas se opõem porque, perseguidos e expulsos, muitos não estavam em seus territórios quando a carta foi promulgada. Seria uma catástrofe para os povos indígenas: estima-se que 95% das terras poderiam ser afetadas com a aprovação.
Já os ruralistas defendem que, se o STF derrubar a tese, haverá um caos nas demarcações, e eles perderão milhões e milhões de hectares de suas terras para os povos indígenas. Na iminência da discussão no STF, aproveitaram seu poder de lobby e mobilizaram o legislativo para votar o projeto de lei que pode marcar essa definição.
Na mesma fatídica quarta-feira, a Câmara ainda aprovou no plenário uma MP cheia de jabutis – dispositivos que não tem relação com o tema original – que altera a lei da Mata Atlântica e flexibiliza obras de infraestrutura sem compensação ambiental. Foi o "dia da boiada", como classificou Maria Luíza Ribeiro, diretora da SOS Mata Atlântica, fazendo referência a uma assombrosa frase do ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles. O texto agora vai para Lula.
Se o poder dos ruralistas movimentou tudo isso por trás dos holofotes, na frente das câmeras eles estavam ocupados na CPI do MST, criada com a clara finalidade de criminalizar o movimento. Dominada pela oposição, todos os deputados da mesa diretora são membros da Frente Parlamentar de Agricultura – a bancada ruralista. O próprio Ricardo Salles, do PL, já está aproveitando seus minutos de fama na Comissão para tentar emplacar sua candidatura à prefeitura de São Paulo no ano que vem.
Mais produção, mais petróleo, mais carros, mais prédios, mais dinheiro. Me lembrei do líder Yanomami Davi Kopenawa em "A queda do céu" descrevendo seu torpor quando chegou nas cidades: não se conformava em como nós, brancos, empilhávamos objetos nos armários, sempre em busca de acumulação, mais e mais. “Não devem ser tão inteligentes quanto pensam que são”, ele escreveu. “Temo que sua excitação pela mercadoria não tenha fim e eles acabem enredados nela até o caos".
Enquanto Lula anunciava uma política de carros populares mais baratos e incentivo à indústria automobilística, tuitava em tom apaziguador sobre as derrotas de seus ministérios frente ao Congresso. "Tem dias que a gente acorda com notícias parecendo que o mundo acabou. Eu fui ler as notícias hoje, na verdade, tudo parecia normal. Uma comissão do congresso querendo mexer numa estrutura de governo que é difícil de mexer. Agora que começou o jogo. O que a gente não pode é se assustar com a política", publicou em seu perfil.
Na sexta de manhã, notícias davam conta de que ele se reuniria com Sonia Guajajara e Marina Silva. As duas haviam dado declarações fortíssimas sobre a ofensiva anti-ambiental do Congresso.
Se Lula assumiu um compromisso ao subir naquela rampa em 1º de janeiro, ele não era só simbólico, como um aliado do núcleo duro do governo chegou ao ponto de dizer. Ou a aliança foi só para a foto da rampa sair bonita? A chance de fazer a transição energética, reforma agrária, pensar em modelos de desenvolvimento sustentáveis, descentralizados, justos, é agora. Essa foi a promessa. Mas, diante dos ataques sofridos pelas ministras inclusive por defensores do governo, de incentivos à indústria do século passado, e de acordos que só atendem interesses de setores produtivos específicos e predatórios, me pergunto até que ponto essa agenda vai conseguir resistir.
Porque a oposição, essa sim, representa sem disfarces os interesses do agro e da indústria predatória que precisam ser superados – inclusive, políticos da nova geração, o novo que já nasceu velho. Mas, dentro do governo, esperamos mais. Do que estamos dispostos a abrir mão? Quais serão os custos desse desenvolvimento desenfreado que só atende aos interesses de setores produtivos específicos? Políticas socioambientais não são apenas "simbólicas". Sonia Guajajara e Marina Silva não são ministras "simbólicas". São centrais. Assim como os agricultores que viajaram dias de ônibus com os seus produtos para mostrar aos paulistas a força de sua produção. São representantes do Brasil que podemos ser – produtivo, diverso, justo, coletivo – se não deixarmos o Congresso atropelar essa chance.
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