sábado, 26 de agosto de 2023

Humilhados e ofendidos


Prender Bolsonaro é um ato histórico: é prender pela primeira vez na História todos aqueles que humilham e ofendem, pelos humilhados e ofendidos

Carlos D'Incao
www.brasil247.com/

Quando meu pai resolveu mudar de vida e país, se tornando em um pecuarista que fracassou no Paraguai, ceifou todos os bens da família, abandonou a psicologia, a esposa e cinco filhos pequenos.

Por alguns anos ele ainda, por raras vezes, enviava para nós algum dinheiro. Mas a regra era a promessa não cumprida pois sempre achava que meu avô materno poderia nos sustentar em sua ausência.

Assim, ingenuamente minha mãe foi ao banco numa sexta-feira esperar pelo dinheiro prometido pelo meu pai. Chegamos no começo da tarde e depois de enfrentar a fila, ela ficou ao lado do caixa, que verificava a cada 5 minutos se havia sido feito algum depósito a seu favor. Nada.

Por volta das 15:00h ela saiu da agência para ver se meu avô não poderia nos enviar algum dinheiro. No orelhão ligou para São Paulo, meu avô não se encontrava. Os poucos cruzeiros prometidos pelo meu pai - penso que hoje não passaria de 50 reais - ninguém poderia nos enviar.

Voltamos à pé no escaldante sol de Bauru. Uns 10 km onde lamentação e revolta se misturavam. Ela não podia trabalhar porque a ditadura havia cassado a filosofia dos currículos, sabia também que não poderia contar com nenhum amigo, pois todos se afastaram da gente porque o Padre da paróquia havia decretado que éramos uma família “desestruturada”.

Assim é a sociedade burguesa e reacionária: culpabiliza aquilo que ela mesma produz. Não havia segredos de alcova que justificava o nosso abandono. Havia hiper-inflação com recessão no país governado pelos militares, somado ao péssimo julgamento de meu pai do que fazer diante dessas condições.

Além do mais, que culpa tinha eu, com 9 anos, de tudo isso? Com qual moral um padre decretava que “em nome de Deus” eu deveria ser isolado dos demais amigos e colegas de classe? Meu pai foi embora e, desse dia em diante, nunca mais fui convidado pra nada, com exceção do futebol de rua.

O padre não agia, porém, desprovido de “grandes propósitos evangélicos”. Como explicar para seu rebanho que uma família de cinco filhos conseguiria ficar de pé só com a presença da mãe? E não qualquer mãe, mas uma ateia que se casou com outro ateu. Não se tratava de um caso qualquer, nossa família não tinha o direito divino de existir, ela tinha que “quebrar”.

Professores terrivelmente católicos também perseguiram a mim e meus irmãos que, pelas “forças demoníacas”, continuávamos a tirar boas notas… A missão divina não se consolidava…

Mas nada disso importava naquele exato momento. Minha mãe tinha a seguinte equação para resolver: não tinha nenhum dinheiro, sábado e domingo não teríamos o que comer e não havia ninguém para nos ajudar.

Optou por um caminho arriscado: no sábado foi até a padaria (que frequentávamos desde sempre) mas que havia bem claro um cartaz dizendo “Não vendemos à fiado.” Ela pediu muito pão, leite, presunto e queijo. Apesar do cartaz já havia conseguido o “fiado” de um final de semana algumas vezes.

Na hora do pagamento, com o estabelecimento lotado, minha mãe pediu “para anotar” o valor. O dono riu e disse “Aqui a gente não anota nada, se não tem dinheiro devolve”. “Então tenho que devolver tudo isso?” “Acho que fui bem claro.”

Enquanto minha mãe retirava o que seria os nossos únicos alimentos eu, com outra sacola gigante e ainda cheia me voltei ao dono: “Tio, deixa a gente levar as coisas, minha mãe está sem nenhum dinheiro, mas meu avô vai mandar dinheiro na segunda-feira e aí ela te paga”. O dono me olhou, olhou seus clientes sérios, esperando uma resposta e resolveu ceder em voz alta: “A senhora não precisa devolver nada não. Vai gerar só bagunça. Pode levar. Mas a senhora sabe ler? Olha o cartaz. Só aceitamos pagamento à vista. Cheque ou dinheiro. Pode ir embora agora.”

Saímos de lá. Ninguém precisava ter sido humilhado. Ninguém precisava ter sido ofendido. Mas quando não se tem dinheiro, sempre tem aqueles que humilham e ofendem. Aprendi a desprezar e odiar essa gente.

A vida seguiu, todos encontraram seu caminho e pelo trabalho e conhecimento conseguiram fazer parte daqueles que não são mais parte dos “humilhados e ofendidos”.

Quando em tempos recentes deram um golpe de Estado em Dilma, eu vi a alegria e o triunfo daqueles que humilham e ofendem. Poderiam novamente criar milhões de pessoas desvalidas, para humilhar e ofender.

Elegeram Bolsonaro, não por ter projetos neoliberais (outros candidatos também tinham essa plataforma) mas porque ninguém tinha tanto desprezo pelos outros como ele. Foram quatro anos de ofensas e humilhações até a sua derrota. Lula subiu a rampa representando vários setores, mas se esqueceu de representar o ódio ao fascismo.

Não cabe a Lula, e sim ao STF, decidir ou não a prisão desse delinquente chamado Bolsonaro. Sua horda fascista em 08/01 fizeram a festa da violência, para humilhar e ofender a democracia a qual tanto desprezam. Os que possuem o poder de colocá-lo na prisão foram também por quatro anos humilhados e ofendidos. E isso não tem fim até hoje nas redes sociais desse bandido.

Prender Bolsonaro é um ato histórico: é prender pela primeira vez na História todos aqueles que humilham e ofendem, pelos humilhados e ofendidos. Quem ainda não entendeu isso, não entendeu nada. Por isso, a ordem de prisão tem que sair já. Com justiça, legalidade, mas não nos esqueçamos, com todo o ódio a essa escória golpista, genocida e delinquente, que não roubam apenas joias, mas a dignidade do povo brasileiro.

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