sábado, 27 de abril de 2024

As muitas faces do neofascismo brasileiro

Seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro fazendo a saudação nazista enquanto cantavam o hino nacional.

FERNANDO DE LA CUADRA
jacobinlat.com/

Os discursos odiosos, totalitários e fanáticos da nova direita brasileira não nasceram com Bolsonaro. Pelo contrário, esta última foi consequência da divulgação anterior da primeira. Um novo documentário narra com precisão os detalhes desse processo.

Temos que colocar nossos próprios corpos entre o fascismo e a liberdade. (E.P. Thompson)

O documentário Extremistas.br ganhou recentemente o prêmio Václav Havel de melhor filme em defesa dos direitos humanos, concedido pelo One World Film Festival, na República Tcheca. O prêmio recebido por este trabalho documental trouxe de volta à tona um tema que continua intrigando pesquisadores, acadêmicos, políticos, jornalistas e interessados ​​em geral: o ressurgimento da extrema direita no Brasil e, claro, no resto do mundo. mundo.

Esta série composta por oito episódios mostra como o extremismo de direita tomou conta de uma parcela significativa da população brasileira e as causas que levaram milhares de cidadãos a aderir e difundir os discursos totalitários de ideólogos radicais inspirados na ideologia nazi-fascista: ataques à democracia , autoritarismo e despotismo; exacerbação do nacionalismo e exaltação do ódio e da violência em nome de uma suposta superioridade nacional, culto às tradições perdidas e construção de mitos sobre a grandeza do passado; animosidade para com os estrangeiros, desprezo pelas minorias e combate veemente contra a diversidade, desconfiança na cultura, arte e inteligência ; adoração de armas e adoração da morte; machismo e desprezo pelas mulheres, entre outras características.

Muitos destes aspectos têm origem na ideologia nazi-fascista surgida há um século na Itália e na Alemanha, embora tenham sido renovados e alterados ao longo dos anos, até formar algo que Robert Paxton atribui à dinâmica sócio-histórica do projeto em si fascista, talvez cristalizando-se no que Umberto Eco chamou de "ur-fascismo" ou fascismo eterno. Esta doutrina é constituída por uma constelação de elementos deste mesmo teor e que estão presentes em movimentos com esta orientação nas sociedades contemporâneas.

Na série documental conhecemos a opinião de especialistas e estudiosos, bem como a de inúmeros militantes de extrema direita que participaram das atividades que promoveram um golpe de Estado para impedir que o candidato eleito Lula da Silva assumisse ou permanecesse como presidente. a República. Mas antes disso, a série mostra a disseminação do ódio e dos discursos antidemocráticos de inúmeros setores da população que são alimentados por notícias falsas produzidas por milícias digitais, pessoas e instituições que se dedicam a difundir ataques a personalidades do mundo da política, da arte e do cinema. cultura.

Um capítulo inteiro do ciclo é dedicado aos ataques realizados por influenciadores radicais contra os membros do Poder Judiciário, especialmente os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa parte da série você poderá conhecer justamente o trabalho de um mercenário digital que recebe um salário mensal para investigar a vida de diversas personalidades influentes com o objetivo de espalhar notícias falsas sobre elas e também de inventar fatos completamente implausíveis, mas que são incorporadas pelos internautas como verdades perfeitas .

Existem dezenas de casos de histórias grosseiras e histórias espalhadas no ciberespaço, mas seria cansativo citar algumas das inúmeras mentiras que foram concebidas nos últimos anos. Estes grupos de milícias digitais operam em total anonimato e são inspirados – provavelmente sem saber – pelo conhecido teorema do sociólogo americano William Thomas que dizia: “Se os indivíduos definem as situações como reais, elas são reais nas suas consequências”.

Depois de visitar as diversas seções do Extremistas.br, fica muito claro para o telespectador que o surgimento da extrema direita e do bolsonarismo não representam um mero capricho histórico ou um acidente no curso da história. Eles não nasceram por acaso e seus alicerces estão ancorados no futuro da sociedade brasileira. Neste processo de extrema direita da sociedade, desempenham um papel central as igrejas pentecostais e seus pastores, que vêm alimentando com veemência sentimentos e comportamentos contrários ao progresso e à modernidade.

O fanatismo religioso, somado à ignorância e às falsas narrativas, fundem-se numa sopa reacionária que assume sem nuances a luta do bem contra o mal. O mal são os esquerdistas, os comunistas, os homossexuais, os toxicodependentes que querem acabar com a liberdade dos bons cidadãos que devem proteger-se desta ameaça permanente. No documentário é possível ver cenas de pastores distribuindo armas entre os fiéis, ensinando-os a atirar para enfrentar inimigos ocultos que estariam agachados esperando o momento certo para desferir o golpe final.

Estes comportamentos das pessoas comuns que vivem sob a influência de pastores inescrupulosos são estimulados pelo clima de medo em que vivem os cidadãos no mundo de hoje. Para o crítico literário britânico Terry Eagleton, o fundamentalismo não está enraizado no ódio, mas no medo. É o medo de um mundo moderno e em mudança, onde tudo está em movimento, onde a realidade é transitória e com fim indefinido, onde as certezas e os pilares mais sólidos parecem ter desaparecido.

É o que, por outras palavras, o sociólogo polaco Zygmunt Bauman chamaria de “modernidade líquida”. Nesta modernidade líquida, os indivíduos sentem-se isolados, frágeis, desprovidos das referências que davam peso ou solidez às estruturas em que estávamos imersos. Os indivíduos encontram-se sucumbindo a um contexto de transformações aceleradas que não conseguem processar. Os valores da sociedade industrial esmaecem e o pânico da insegurança toma conta das pessoas, por isso buscam refúgio em igrejas, seitas ou qualquer entidade que lhes proporcione algum tipo de sustento ou chão diante de tanta incerteza.

Neste cenário, a extrema direita alimenta-se com competência dos medos, ansiedades e descontentamentos dos cidadãos, transformando essas sensações, na maioria dos casos, em sentimentos de indignação e revolta reacionária. Os problemas específicos do povo, por uma melhor qualidade de vida, por uma maior estabilidade no emprego e segurança dos cidadãos, por melhores equipamentos e serviços sociais e um longo etc., a extrema direita transforma-os numa convicção anti-sistema, contra a política e os políticos, contra os tribunais de justiça e o parlamento, fazendo com que os súditos direcionem a sua raiva contra as instituições democráticas e contra inimigos invisíveis, como o comunismo, o globalismo ou as forças satânicas.

A extrema direita afirma compreender os problemas e medos da população e vem apaziguar esse sofrimento psicológico, oferecendo em troca falsas soluções e impregnando a frustração das pessoas com ressentimentos e virulência. Se somarmos a isso as bases conservadoras de uma cultura escravista construída em torno do machismo, da exclusão e do desprezo pelos mais fracos, temos os ingredientes necessários para que o caldo neofascista prospere, transformando uma parte desta sociedade numa massa de manobra que nutre as expressões mais radicais do pensamento retrógrado.

É neste contexto que surge no Brasil a figura de Jair Bolsonaro, um ex-capitão expulso do Exército e proibido de entrar em quartéis e instalações militares, um deputado medíocre e inexpressivo do baixo clero e um personagem bizarro que apoiava ditadores e torturadores. Em 2016, enquanto o Congresso Nacional votava o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o deputado Bolsonaro dedicou seu voto ao coronel Carlos Brilhante Ustra, renomado torturador e assassino de muitos presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985). Longe de ter sido preso no Congresso pela sua defesa da tortura, Bolsonaro tornou-se o porta-voz da extrema direita e o Coronel Ustra tornou-se um herói para os grupos mais radicais que apelavam ardentemente à intervenção militar.

Contudo, as origens destas expressões de extrema-direita já podem ser percebidas nas manifestações que eclodiram em junho de 2013, durante a Copa das Confederações da FIFA. Naquela ocasião, diante de um conjunto incontável de reivindicações de diversos segmentos sociais, surgiram os primeiros sinais de que um movimento radical de direita estava incubando, com grupos levantando bandeiras com símbolos nazistas e faixas pedindo sedição. Tais grupos – com células fascistas já organizadas – exigiam a atuação dos militares na perpetração de um Golpe de Estado que arrasaria o Congresso Nacional, os partidos políticos, o Supremo Tribunal Federal e, consequentemente, atacaria os inimigos do país .

Esses setores passaram a vestir a camisa verde-amarela da Seleção Nacional e a se autoproclamarem “patriotas” no combate à corrupção, à decadência moral, aos políticos e ao comunismo instalados no país. O documentário mostra imagens de cursos de tiro para “cidadãos de bem” que desejam se defender das hordas de bárbaros e marginais que ameaçam suas vidas pudicas e cristãs. Eles atiram em alvos que fingem ser pessoas que devem ser eliminadas para proteger Deus, o país, a família e a propriedade.

Quem realmente lucrou com essa política de armamento da população que o governo Bolsonaro incentivou, claro, foram os fabricantes e traficantes de armas e também as academias de tiro. Com efeito, durante o governo do antigo capitão, entre 2019 e 2022, foram registadas mais de um milhão de armas depois de o executivo ter liberalizado o porte e uso de armas de fogo. Segundo dados levantados pelo Instituto Sou da Paz por meio da Lei de Acesso à Informação, no total, quase um milhão e meio de novas armas entraram em circulação nesse quadriênio.

Só em 2022 foram registradas mais de 550 mil armas, das quais 432 mil correspondiam aos Clubes de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CAC), que proliferaram enormemente durante aquela gestão. As restantes armas foram registadas por cidadãos comuns para defesa pessoal, principalmente membros das classes mais abastadas que aderiram a este discurso de ressentimento e perigo iminente disseminado pela extrema direita.

Como Robert O. Paxton nos adverte com precisão no seu livro The Anatomy of Fascism, não existe um regime fascista ideologicamente puro, embora - lembra-nos o autor - a maioria dos estudiosos tenha notado que estes regimes se baseavam em algum tipo de pacto ou aliança entre o partido fascista. e as poderosas forças conservadoras. Isto é, os regimes fascistas não são explicados apenas pela incitação estatal, mas haveria forças na própria sociedade que impulsionam o seu desenvolvimento. Também não haveria um fascismo definido e estático, mas sim um fenômeno fascista em movimento permanente.

Por esta razão, encontramo-nos perante uma multiplicidade de fascismos, cada um expressando a dinâmica histórica e o contexto em que emerge. O fascismo no Brasil tem antecedentes em organizações de raízes profundas e veia autoritária que surgiram na década de 1930 e se amalgamaram em torno do movimento Ação Integralista Brasileira liderado por Plinio Salgado, que foi anunciado como um movimento ditatorial, conservador e cristão .

Por sua vez, o governo de Getúlio Vargas também reúne um número significativo de características que certamente poderiam aproximá-lo da receita fascista. Como delineamos nas linhas anteriores, a expressão atual do fascismo à brasileira chama-se bolsonarismo e resulta de uma síntese de múltiplas experiências e visões sobre o país, que inclui desde os nostálgicos militares da ditadura militar, até aos monarquistas que não perder a esperança de recuperar o trono ou por grupos pentecostais de teologia da prosperidade, ou por milicianos que controlam extensos territórios nas principais capitais ou por produtores de madeira e pecuária que desejam continuar depredando os biomas sem qualquer tipo de controle estatal ou empresarial que os conservadores. têm medo de perder os seus lucros e privilégios numa sociedade que caminhava cada vez mais para políticas mais inclusivas, justas e democratizantes.

Em síntese, temos como corolário que a matriz escravista, as ditaduras militares, o bolsonarismo e o neofascismo fazem parte do mesmo eixo que percorre a história brasileira e que ressurge permanentemente para lembrar aos seus habitantes e às suas instituições que os suportes democráticos deste país são muito instáveis ​​e frágeis

Essas conclusões podem ser tiradas ao assistir ao documentário Extremistas.br, uma imersão necessária para pensar os destinos desta nação presa por sua história e por uma extrema direita cavernosa que cooptou ou anulou outros setores da direita tradicional e do poder elites para promover e consolidar seu projeto de violência, preconceito e autoritarismo sobre o povo brasileiro.


FERNANDO DE LA CUADRA

Socióloga pela Universidade do Chile, mestre e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Autor de Intelectuais e pensamento social e ambiental na América Latina (RIL, 2020) e De Dilma a Bolsonaro. Itinerário da tragédia sociopolítica brasileira (RIL, 2021). Editor do Blog Socialismo e Democracia (http://fmdelacuadra.blogspot.com/).


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