sexta-feira, 26 de abril de 2024

ENTREMENTES - Luta de opinião – o futebol brasileiro é movido a embates

João Saldanha foi o mais popular comentarista de seu tempo (Reprodução | Livro João Saldanha: Uma vida em jogo)

João Saldanha notou com precisão os conflitos em torno da modalidade. Confira trecho inédito do livro Palavras em jogo, sobre a relação entre cultura popular e política

Helcio Herbert Neto

“A força motriz do futebol brasileiro é essa luta de opinião”[1]

O comentário esportivo não é absoluto – não contém atributos imutáveis. O estudo histórico a respeito da radiodifusão escancara essa afirmação: na televisão e no rádio, as experiências dos comentaristas apontam no sentido de profundas transformações. Essa perspectiva assinala indícios de que o falar sobre o clube de coração ou a seleção nacional na cultura popular era igualmente submetido a alterações. As dinâmicas sociais atravessam e constituem a prática, em movimento marcado por embates. Daí a percepção de João Saldanha de que o fator a impulsionar o futebol brasileiro é justamente luta de opinião. Frequentemente, o integrante da Grande Resenha Facit[2] expôs pensatas a respeito da comunicação, com bom-humor e acidez.

À inoperância de modelos estáticos, comparar diferentes experiências na radiodifusão esportiva é a alternativa para conseguir entender a ressonância do comentário para o futebol no Brasil. Fugir de hierarquias entre media, veículos, programas e comentaristas é uma preocupação constitutiva dessa tarefa de colocar em relação passagens distintas. Qualquer visão de progresso na História ou teleologia deve igualmente ser abandonada. As consequências de propostas como esta resvalam para a cultura política do país sem se prender às feições institucionais de movimentos ou correntes de pensamento, o que é perceptível quando são avaliados períodos distantes e casos do mesmo intervalo histórico.

Há um notável esforço para que o entusiasmo propiciado pelos jogos, pela vivência nos clubes ou pela comoção nas arquibancadas seja mantido nas transmissões: Resenha Esportiva[3] consegue ilustrar isso com apenas um comentarista e sua presença nos estádios; Grande Resenha Facit potencializa a característica ao colocar lado a lado representantes de torcidas adversárias e manter acesas as rivalidades; e as demais mesas redondas se aproveitam, até o século XXI, das novas ferramentas audiovisuais para conservar esse estado anímico nos canais televisão. O caráter de disputa não se limita ao cotidiano clubístico e extravasa confrontos sociais. Tudo isso na controlada arena da radiodifusão, sujeita a coerções públicas e a linhas editoriais proibitivas. A possibilidade de tomar partido, o moralismo, o ímpeto patriótico e o movediço solo conceitual em que o comentário esportivo buscava apoio se afunilam na dimensão conflitiva da prática.

(…)

O caso de Saldanha reforça ainda que os comentaristas puderam estabelecer toda uma retórica a respeito de si mesmos e da prática a que se dedicavam. Isso revela outra dificuldade no estudo do comentário esportivo. Os próprios intérpretes se valeram do tempo no ar para construir sua pretensa neutralidade, desviar da associação com períodos autoritários e defender a dignidade da sua atuação. O trânsito por veículos impressos e o bom relacionamento com quem escrevia para outras publicações favorecia a edificação de reputações. Volumes no mercado editorial, de natureza biográfica e memorialística, colaboraram para essas construções.

Considerações sarcásticas, de duplo sentido e divertidas serviram para colocar em questão poderosos, inclusive em instantes repressivos da República. No entanto, esses recursos não tiveram exclusivamente tal utilidade. Comentaristas como Ary Barroso e José Maria Scassa, que permaneceram por anos em veículos de radiodifusão, conseguiam conciliar moralismo e bom-humor. A proximidade com o poder e suas implicações mais decisivas para a prática em radiodifusão são trazidos à mostra principalmente por Antonio Cordeiro, embora o circuito estabelecido entre a principal entidade na gestão do futebol brasileiro e os media continue ativo: depois de exercer a função de comentarista no Grupo Globo por uma década, o ex-juiz de futebol Leonardo Gaciba assumiu o cargo de presidente da comissão de arbitragem da CBF em 2019 – após deixar o posto, foi contratado para voltar a comentar, agora para a ESPN.

O moralismo encontra na defesa do futebol brasileiro campo aberto, dos bacharéis udenistas à digitalização da televisão. A proteção de elementos que compunham essa perspectiva específica da modalidade, a exemplo de times profissionais, praças esportivas, atletas campeões e, principalmente, a seleção nacional, foi uma constante. Com frequência, a complexidade das questões em debate era deixada de lado em nome desse patrimônio nacional, assim entendido pelos comentaristas. Paixões nacionalistas acompanham o calendário esportivo e afloram com mais vigor na iminência das disputadas das Copas do Mundo, de quatro em quatro anos.


Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em Jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e de Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.

[1] Trecho do depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ) pelo comentarista João Saldanha, então técnico da seleção brasileira masculina de futebol, em 1969.

[2] Paradigmático programa esportivo de mesa redonda, do qual participavam nomes como o próprio Saldanha; o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues; o jornalista José Maria Scassa; e o ex-técnico da seleção brasileira Flávio Costa. A pesquisa do livro Palavras em jogo parte dos comentários que foram ao ar nos debates.

[3] Faixa radiofônica da Rádio Nacional, que tinha como comentarista o radialista Antonio Cordeiro. O livro Palavras em jogo estabelece comparações entre a atração da emissora estatal e Grande Resenha Facit.

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