quinta-feira, 2 de maio de 2024

O NEGÓCIO DO JAIR - A História secreta do clã Bolsonaro (gota 03)

Tinham se passado poucos dias das eleições municipais quando um homem alto, de perfil atlético e cabelo liso castanho-escuro cruzou a portaria do Palácio Pedro Ernesto. O prédio histórico de 1923, erguido em estilo eclético, abriga a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, na praça da Cinelândia, no Centro do Rio de Janeiro.

Era a primeira eleição no Brasil depois da nova Constituição, promulgada pouco antes, no início de outubro daquele ano, com a intenção de estabelecer um novo momento para o país após a ditadura instalada pelos militares a partir do golpe de 1964.

E a chegada daquele homem ao palácio sinalizava um novo período no Brasil. Se os militares saíam como autoritários, Jair Bolsonaro entrava na vida democrática eleito. Informal, ele costumava usar calça jeans e camisa polo, ou camisetas, e alternava gargalhadas espalhafatosas com uma expressão carrancuda de aparente seriedade. O cabelo, aparado nas laterais e levemente mais comprido no topo, formava uma espécie de onda, quase uma franja, penteada do lado esquerdo.

Capitão do Exército na reserva remunerada há poucos meses, o que na prática significa aposentadoria, o vereador recém-eleito tinha apenas 33 anos. E sua saída da ativa estava diretamente relacionada à entrada no Palácio Pedro Ernesto. Bolsonaro conquistara uma vaga depois de meses divulgando sua imagem junto ao número 17 681, sua identificação na urna. Eleito com 11.062 votos, pelo Partido Democrata Cristão (PDC), tinha como slogan “Salvem o Rio” e “Brasil acima de tudo”.

O capitão passara os dois anos anteriores, entre 1986 e 1987, envolvido em polêmicas. Escreveu um artigo reclamando do salário dos militares que lhe rendeu uma punição disciplinar de prisão por quinze dias. Depois ensaiou um plano para implantar bombas em instalações do Exército; foi condenado pelo Conselho de Justificação do Exército mas terminou absolvido, em um polêmico julgamento, no Superior Tribunal Militar (STM).

No fim das contas, assumiu a carreira que já moldava: a de político. Torcia pelo Botafogo (embora já tenha jurado que é Palmeiras e vestido as camisas de dezenas de times de futebol do Brasil), gostava de motos, churrasco e uma cerveja de vez em quando. Nasceu em Glicério, embora tenha sido registrado em Campinas, ambas no interior de São Paulo. No Rio de Janeiro fez a carreira militar e, depois, política. Ao partido, no momento da filiação no PDC, tinha dito que pretendia ser vereador para “combater a corrupção” e “defender a moralidade pública”.

A visita à Câmara era, como disse ao Jornal do Brasil, um “reconhecimento do terreno”.1 A posse só ocorreria em 1o de janeiro de 1989, mas, tendo vivido mais de vinte anos como militar, ele prospectava o novo local. E, claro, também gostava de aparecer. Ao zanzar pelos corredores da Câmara, torceu o nariz: “Vi muita gente lotada nos gabinetes e muita sujeira também”.2 E emendou, indicando sua futura pauta de atuação: “Os novos vereadores têm que começar pelo próprio gabinete. Acho um absurdo que cada um tenha a seu dispor dezoito assessores. Minha primeira atitude na Câmara será elaborar um projeto que diminua em 50% o número de assessores dos vereadores”. Mas sua primeira atitude como vereador foi faltar à cerimônia de diplomação no dia 22 de dezembro de 1988.

Empossado, Jair retomou o tema dos assessores comissionados e manteve o estilo de enfrentamento que desenvolveu dentro dos quartéis. Em fevereiro de 1990, quis examinar a lista de servidores e de aposentados, com seus respectivos salários, e pediu para ver a folha de pagamento da Câmara. Ao ter o pedido negado, em 28 de março ele resolveu invadir a sala do departamento de pessoal e exigiu o documento.3

O caso mobilizou toda a Câmara. Bolsonaro bateu o pé: só deixaria o local depois de ler o documento. Aos prantos, a chefe do setor pedia sua saída e ele retrucava, dizendo que só sairia por ordem de um oficial de patente superior à sua. Passados trinta minutos, o capitão teve o papel que tanto queria e deixou a sala. Depois, cobrou transparência da Mesa Diretora da Câmara. Citou alguns salários de funcionários e disse que o então presidente da Casa, Roberto Cid (PDT), não deveria decidir sozinho se o documento devia ser público ou não.

Mas, enquanto esteve na Câmara Municipal, Bolsonaro apenas chamou a atenção, envolvendo-se em episódios que podiam lhe render mídia. Num levantamento da Câmara em 1990, terminou como o pior vereador carioca.4 Apresentou cinco projetos de lei e duas resoluções em temas sobre aposentadoria de servidores, saúde e transporte de militares. Nunca atuou nas questões centrais da cidade. Ensaiou certa contrariedade no projeto que ampliava o número de funcionários da Câmara, mas não foi além disso. A luta contra a “mamata” ficou no discurso e as críticas aos funcionários-fantasmas entraram para o rol de bravatas que iria disparar ao longo das três décadas seguintes.

Jair deu os primeiros passos na política quando a caserna deixava o poder depois de mais de duas décadas de ditadura. Ele encontrou esse caminho com certo apoio de militares em postos estratégicos durante a ditadura. Inclusive, avalia-se que ele só conseguiu ser absolvido no STM e reverter a condenação que já havia sofrido devido ao episódio das bombas por causa da proximidade com integrantes do antigo regime.

Da lista dos defensores do capitão na crise com o Exército constava a alta cúpula do último governo ditatorial: o ex-presidente João Figueiredo, o general Nilton Cerqueira e ainda o general Newton Cruz, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações entre 1977 e 1983, órgão de inteligência que tinha como responsabilidade preparar informes aos generais que ocupavam a Presidência. Com Cruz, a proximidade foi tamanha que um dos filhos do oficial, Luís Renato de Oliveira Cruz, chegou a assessorar Bolsonaro na Câmara Municipal por algum tempo.

Alheio à transição democrática do país, Jair chegou à Câmara para mudar de vida. Não era mais o momento de descolar um extra com a venda de bolsas fabricadas a partir de paraquedas, entre outros biscates:5 chegava um novo momento.

O candidato disputou o primeiro cargo quase sem patrimônio. Ao se inscrever para a disputa em 1988, ele declarou ser dono de um Fiat Panorama, uma moto e dois terrenos em Resende, no interior no Rio.6 Dois anos depois, já eleito, o Fiat deu lugar a um Chevette e um telefone, luxo para o início da década de 1990.

Em 1989, Bolsonaro se dizia um defensor da transparência pública. Ou quase isso. Em março daquele ano, ao comentar uma reportagem sobre vereadores que contratavam parentes, disse que não via nenhum problema, mas que preferia manter a família distante do trabalho. Ainda acrescentou: “Não me sentiria bem”.7

Na mesma matéria, ele falou à jornalista Luciana Nunes Leal que “chegou a se espantar” com o número de funcionários-fantasmas da Casa. Contou ainda do inusitado caso de um ex-vereador que lhe havia pedido, sem sequer conhecê-lo, que nomeasse alguém de sua confiança em seu gabinete. Em troca, o ex-vereador iria presenteá-lo com artigos de sua loja.

Mas se um dia ele quis parecer um obstinado crítico dessas práticas, as coisas mudaram rápido quando ele chegou à Câmara dos Deputados dois anos mais tarde. Logo na sequência da posse, no início de fevereiro de 1991, Bolsonaro nomeou João Garcia Braga, seu sogro, pai de Rogéria Nantes Braga Bolsonaro. Mas “Seu Jó”, como era conhecido nas ruas de Resende, nunca deixou o interior do Rio nem fez nada além de distribuir santinhos do genro durante os meses das campanhas eleitorais. Foi o primeiro parente na lista de assessores, o início dos muitos indícios de que Bolsonaro tinha aderido ao sistema.

Quem o vê hoje dificilmente imaginaria que há três décadas Jair faria tão brava defesa da transparência e tantas críticas à nomeação de assessores “fantasmas” ou mesmo de parentes. Agora tudo soa como uma ironia. E conversando com pessoas que o conhecem há muitos anos, ouvi mais de uma vez, sob anonimato, mas sem constrangimento algum, que “todo mundo faz isso”. Na lógica desses interlocutores de Bolsonaro, o argumento era: por que, então, só ele ia ficar de fora?

Assim, tudo ia mudar ainda mais ao longo dos anos seguintes. O desejo de ascender socialmente não é um pecado, mas no caso de Bolsonaro tudo indica a existência de zonas repletas de incógnitas. Os salários podem não explicar todo o patrimônio amealhado nas décadas passadas. Se com apenas o mandato do patriarca a vida da família começara a se transformar, o que não seria possível se ele dispusesse de outro gabinete como fonte de renda adicional? E mais um? Jair pensou nisso.

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