quinta-feira, 16 de maio de 2024

O NEGÓCIO DO JAIR - A História secreta do clã Bolsonaro (gota 09)


Era madrugada quando o policial Fabrício Queiroz escreveu uma mensagem de texto para a mulher, Márcia Oliveira de Aguiar, que estava no Rio de Janeiro. O celular registrou o envio às 00h15, início do domingo, 24 de novembro de 2019.

“Estamos indo para a casa do Anjo.”

“Felipe também? Tomara que tenha boas notícias”, ela respondeu em seguida.

Passou um tempinho. Queiroz respondeu por meio de uma foto na qual o filho do casal, Felipe, aparecia sentado em um sofá branco com uma ampla sala ao fundo.

Horas mais tarde, quase meio-dia, Márcia perguntou de novo:

“Está na casa do Anjo?”

“Estamos.”

“Dormiram na casa dele ou no hotel?”

“Sem bateria, 1%. Dormimos.”

“Resume, ele falou alguma coisa?”

“Querendo mandar todos para São Paulo se a gente não ganhar. Aquela conversa de sempre.”

“Morar aí? Acho exagero.”

“Não vamos entrar no mérito agora.”

“Sim, mas só se estivéssemos com prisão decretada. Sabe que isso será impossível né? Mais vamos aguarda[r]. A possibilidade de não ganharmos são grandes? Ele disse alguma coisa?”

“Sim. Mas ele tá de boa. Sabe [o] que faz. Ele só quer eu aí no Rio.”

“Você quis dizer que ele não quer você aqui no Rio. Isso?”

“Sim.”

Nesse dia, ignorando a tensão vivida pelos pais, Felipe Queiroz fazia selfies na mesma sala ampla da foto enviada horas antes. Impressionado com o ambiente, cheio de espelhos e lustres, o jovem enviou as imagens a um amigo, gabando-se do cenário. Só que, ao enviar as fotos pelo aplicativo de mensagens, o celular acusou a localização de Felipe. O aparelho automaticamente registrou “rua Jerônimo da Veiga, esquina com a rua Emanuel Kant”, endereço do prédio onde a empresária Maria Cristina Boner, ex-companheira de Frederick Wassef, tem um apartamento na capital paulista.

Anjo. Os Queiroz continuavam chamando o advogado pelo apelido posto quase um ano antes. O problema disso era a contrapartida. Queiroz recebia ajuda, mas devia obedecer a todas as orientações de seu protetor. E a principal delas era ficar sob seus cuidados, ou melhor, sob seu monitoramento. O policial não podia ficar zanzando por aí, não podia em hipótese alguma ser flagrado pela imprensa. Ainda mais agora, que estava tão perto o julgamento que definiria o rumo do caso que envolvia Flávio e Queiroz.

Naquela semana, a última de novembro de 2019, o STF finalmente decidiria a legalidade do compartilhamento de dados entre o Coaf e os órgãos de investigação. A decisão poderia anular o trabalho dos promotores ou então destravar a apuração, àquela altura parada por uma liminar. Como as sessões de julgamento são públicas e transmitidas pela Justiça, Queiroz e família já haviam percebido que o clima não era favorável para eles. Mas o Supremo ainda não finalizara a leitura dos votos dos ministros.

Naquela noite, Queiroz tinha chegado tarde ao apartamento da rua Emanuel Kant. Havia quase um ano que ele se comportava como um fugitivo. Todos os envolvidos no caso demonstravam nervosismo quando questionados sobre seu paradeiro.

ERAM MAIS DE DEZ MESES sem notícias de Fabrício Queiroz. Nenhuma informação concreta desde dezembro de 2018. Eu, como outros jornalistas, havia tentado localizá-lo, ou a algum de seus parentes. De tempos em tempos, percorria os endereços da família em diferentes bairros da Zona Norte e Oeste — fiz esse trajeto dezenas de vezes. Passava na casa na Taquara, depois no apartamento das filhas em Jacarepaguá, na casa de vizinhos e amigos em Oswaldo Cruz, e ainda no apartamento da ex-mulher. Deixava bilhetes nas portarias dos prédios. Quando não tinha porteiro, enfiava uma mensagem por baixo da porta, me apresentando e pedindo que entrassem em contato comigo.

Em agosto de 2019, soube que o caçula do policial, Felipe, jogava futebol nas categorias de base do Sampaio Corrêa, clube de Saquarema, na região dos Lagos. Diziam que às vezes o pai aparecia. Fui conferir. Passei um sábado vendo jogos entre times das categorias de base. Até identifiquei Felipe no banco de reservas. O time dele venceu por 6 a 0 o Itaboraí. Mas nada de seu pai.

Como meu foco voltara a ser o paradeiro de Queiroz, era inevitável entrar em contato com Frederick Wassef, então advogado de Flávio Bolsonaro. Suspeitava-se que ele soubesse onde estava Queiroz, ainda que negasse.

Além disso, O Globo, onde eu trabalhava, queria uma entrevista com o advogado para que ele pudesse expor os argumentos da defesa. Era parte do nosso trabalho cobrar explicações do senador e dar espaço para que ele também fosse ouvido. Wassef ouvia os pedidos, reclamava de perseguição da imprensa contra ele e seu cliente, mas não queria se alongar acerca dos indícios do esquema de corrupção com entrega de dinheiro e nomeações de funcionários-fantasmas.

Em setembro de 2019, estive em Brasília para conversar pessoalmente — a paranoia sobre grampos telefônicos estava bastante difundida — com algumas fontes que diziam ter pistas do destino de Queiroz. A revista Veja havia publicado uma foto do policial no Einstein, mas sem nenhuma declaração dele, nenhuma referência de como vivia ou se tinha dinheiro para seguir se tratando em um dos hospitais mais caros do país. A foto dividiu os envolvidos ou interessados no caso. Nos corredores do MP, a história foi vista como uma tentativa de emplacar a imagem de um “homem doente” perseguido pelos investigadores. Já no entorno de Bolsonaro, ela foi interpretada como uma ação para aplacar o clima tenso instalado pelo sumiço. A todo momento, Bolsonaro era indagado: “cadê o Queiroz?”.

Em Brasília, almocei com uma fonte que me disse que Wassef estava escondendo Queiroz. Essa história soava absurda, mas mesmo assim muitos repórteres haviam desconfiado dessa possibilidade e tentaram flagrar Queiroz em algum endereço do advogado em São Paulo. E ele tem vários — na capital, no Guarujá, no litoral paulista, e ainda em Atibaia, no interior.

Alguns dias depois, estava na redação do Globo e telefonei para Wassef para saber se ele aceitava o pedido de entrevista que lhe havia feito para que explicasse os pontos da defesa de Flávio. Wassef atendeu a chamada por WhatsApp, mas não falou nada da entrevista. Engatou mais um longo monólogo de críticas à imprensa e às reportagens sobre o caso da rachadinha. Não rebateu nenhuma informação em especial, não apontou nenhum erro de informação. Era como se quisesse desabafar. Fez ironias dizendo que o jornal era tendencioso: “Onde estava o Globo e a revista Época quando o PT roubou o Brasil?”. Passou a defender Bolsonaro e argumentou que o novo governo estaria “salvando” o país. Em certo ponto, foi direto: “Você aí dentro desse imenso prédio azul do Globo acha que é a todo-poderosa Juliana Dal Piva, mas quando você sai na rua você é só mais uma que pode tomar um tiro no meio da cara porque a violência do Rio de Janeiro é muito grave e o presidente está trabalhando para melhorar tudo isso e vocês da imprensa ficam perseguindo ele”.

O discurso sobre a “violência” do Rio de Janeiro ainda durou alguns minutos. Eu ouvia e me perguntava se ele realmente tinha tido coragem de dizer aquilo. Incomodada, relatei o episódio ao meu editor e combinamos redobrar os cuidados nas comunicações com Wassef. A cautela se mostraria necessária, pois outros episódios envolvendo jornalistas mulheres iriam se suceder.

Passaram-se alguns dias, e em outubro Wassef chegou de carro ao hall anexo do STF. Ele tinha concedido uma entrevista para a repórter Luísa Martins, do Valor Econômico, na qual tecia um cenário favorável para a defesa de Flávio no julgamento do STF. Chegou a dizer que “na prática, temos quatro ministros, isto é, quase metade da Corte”. Alguns conselheiros do senador avaliaram que Wassef havia falado demais e que a situação gerava constrangimento ao STF. Ao ver as declarações publicadas, Wassef enfureceu-se contra Luísa e achou que podia intimidá-la. Ao encontrá-la no Supremo, passou a coagi-la a entrar no carro dele para reclamar da matéria.1

TRÊS MESES ANTES, no dia 16 de julho de 2019, o então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, decidira suspender as investigações feitas com base no compartilhamento de dados financeiros sem autorização judicial, atendendo a um pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro. O julgamento no Supremo, marcado para novembro, iria decidir se a Receita Federal podia compartilhar informações financeiras com órgãos de investigação quando constatasse indícios suspeitos. O detalhe é que em alguns casos o alerta que a Receita havia dado ocorrera sem autorização judicial prévia.

Wassef quis comparar a situação da Receita com os relatórios de outro órgão governamental, o Coaf, responsável pelo documento que envolvia Queiroz e Flávio Bolsonaro. O advogado argumentou que a atividade do Coaf também devia ser considerada ilegal e defendia que se exigisse ordem judicial para esse órgão, contrariando não apenas a jurisprudência interna do país como as boas práticas de combate à lavagem de dinheiro existentes no exterior. Para Wassef, os relatórios do Coaf também representariam quebra de sigilo bancário. Só que extrato bancário é uma coisa, e os dados com que o Coaf trabalha, outra. Diferentemente dos sistemas da Receita, o Conselho não tem acesso às contas bancárias dos cidadãos.

O Coaf é alimentado por alertas que os bancos fazem a partir de movimentações “atípicas”. Um depósito de 50 mil reais em dinheiro vivo, de uma só vez, em determinada conta, pode gerar um alerta. Um saque dessa quantia também. Se alguém recebe, ao longo de um ano, o dobro do total de seus salários, isso pode gerar um alerta. Nem sempre há alguma ilegalidade, mas esse é o modo de rastrear lavagem de dinheiro.

Com a liminar de Toffoli, o STF paralisou a investigação sobre as apurações instauradas a partir de relatórios do Coaf. O episódio causou enorme confusão nos Ministérios Públicos país afora, atrapalhou até parte da investigação da morte de Marielle Franco, e representou a primeira vitória de Wassef na defesa do senador. Seria preciso esperar o Supremo avaliar a legalidade ou não do compartilhamento de dados.

A decisão envaideceu o advogado. O jornalista Bruno Abbud, então meu colega na redação da revista Época e do jornal O Globo, presenciou o momento em que ele recebeu a notícia da liminar do STF e quando falava ao telefone sobre a vitória da defesa:2 “Você não sabe o que está acontecendo! Você não tem noção do que está acontecendo, você não tem noção! A decisão… Amor… O meu nome… Tá o Brasil inteiro me ligando e me chamando de Deus! Você não tem noção! É uma bomba atômica! Amor, está comigo, te mando agora. O Flávio, o presidente, tudo infartado, chorando…”.

PAULISTANO, solteiro, 26 anos de idade. Foi assim que Frederick Wassef se identificou para o delegado João Ricardo Noronha, na sala do cartório da Delegacia de Ordem Social do Paraná, em Curitiba. Era 14 de outubro de 1992 e ele obtivera a carteira da OAB havia pouco tempo. Mas já se via às voltas com uma investigação, só que no caso o investigado era ele, envolvido num crime de repercussão nacional, o Caso Evandro.

Investigadores paranaenses apuravam o desaparecimento de algumas crianças e a morte de um menino chamado Evandro Caetano, assassinado em Guaratuba, litoral do Paraná, naquele ano. A gravidade dos crimes chocara o país. O corpo mutilado levou os policiais a suspeitar que a criança teria sido vítima de algum ritual macabro.

Entre idas e vindas, uma das linhas de investigação tentava reconstruir as circunstâncias em que outro menino, Leandro Bossi, havia desaparecido, também em Guaratuba, em fevereiro do mesmo ano. Averiguando as últimas pessoas que estiveram próximas de Leandro, a polícia se deparou com um grupo místico chamado LUS (Lineamento Universal Superior), com origem na Argentina, liderado por José Teruggi, argentino, e Valentina de Andrade, brasileira. Wassef esteve com o casal num hotel do litoral paranaense em um período próximo ao desaparecimento do menino.

Além da coincidência das datas, o contato que Wassef fez com Valentina resultou no pedido de prisão do advogado depois que um delegado que apurava o caso viu um vídeo gravado dias antes do desaparecimento de Leandro. Na época, inicialmente, foi dito que Teruggi dizia a Valentina estar com algum espírito incorporado e pedia: “Matem a criancinha que eu pedi”. No entanto, um perito contratado pela defesa refutou totalmente a transcrição da polícia e apontou que o correto seria: “Mas tem criancinhas que são experientes”.3

A juíza Anésia Kowalski negou o pedido de prisão de Wassef por falta de fundamentos. Mesmo assim, ele foi chamado para explicar sua relação com Valentina e a LUS. Wassef contou que, quatro anos antes, no fim de 1988, ele havia comprado o livro Deus, a grande farsa. Escrito por Valentina Andrade, o livro discorria sobre as primeiras experiências e contatos dela com alienígenas que “vinham a este mundo para trazer as respostas e/ou verdades sobre o mundo em que nós vivemos”. E continha uma interpretação peculiar sobre a “existência de Deus”: Deus não seria um “criador do universo”, mas “um ser representante do mal”, o “capeta” ou a “besta enfurecida”.

Wassef contou aos policiais que teve “grande curiosidade em contatar com a autora”. Escreveu a ela uma carta, endereçada à caixa postal referida no livro, em Londrina, no Paraná. Valentina respondeu e eles passaram a trocar cartas duas a três vezes por ano. Ele escrevia porque “procurava indagar mais acerca de certas dúvidas advindas da leitura do livro”. A correspondência resultou num encontro em São Paulo, quando Wassef tentou intermediar uma reportagem para divulgar o livro. Após as cartas, eles passaram a trocar fitas de áudio gravadas.

A camaradagem entre os dois fez Wassef ir a Londrina num fim de semana de novembro de 1991. Outra vez para conversar sobre o livro. Mais tarde, por duas vezes ela o convidou a ir a Guaratuba. A primeira em março e a segunda em abril de 1992. Em maio, ele foi a Buenos Aires e conheceu a sede da LUS. Em todos os encontros havia palestras que tratavam do conteúdo do livro Deus, a grande farsa, disse Wassef. E menções às quatro práticas “proibidas pela seita, sob pena de expulsão”: “uso de droga, prostituição, abuso de confiança e falta de respeito”. O advogado concluiu o depoimento, e sua participação naquela investigação foi dada por encerrada. O desaparecimento de Leandro Bossi nunca foi totalmente esclarecido embora a ossada do menino tenha sido identificada em junho de 2022.

Em 2003, Valentina de Andrade chegou a ir a julgamento por outro caso, conhecido como “Meninos de Altamira”. Ela respondeu por uma série de assassinatos e mutilações que ocorreram contra meninos e adolescentes de oito a catorze anos, no Pará, entre 1989 e 1992. Valentina acabou absolvida pelo júri. Frederick Wassef chegou a participar de sua defesa na fase inicial, mas teve que sair na fase de julgamento por problemas de saúde.

DESCOBRI ESSA HISTÓRIA quando preparava um perfil de Fabrício Queiroz, em março de 2019. Em uma rápida pesquisa em jornais, deparei com uma matéria do Estadão de 25 de julho de 1992 dizendo que a polícia havia pedido a prisão do “líder da seita satânica”, o argentino José Teruggi, e do brasileiro Frederick Wassef.4 Na ocasião, o jornal registrou que ambos foram dados como foragidos pelos investigadores. Segundo os jornais, a polícia ainda tinha feito uma busca em uma casa de Wassef em Atibaia, mas nada encontrara. Até me perguntei se não seria um homônimo. Mas com um sobrenome tão único, Frederick Wassef, advogado… Então chequei os dados e constatei que de fato se tratava dele. Comecei a perguntar para pessoas ligadas à família Bolsonaro quem era esse homem.

Aos poucos, com certo constrangimento e muita reserva, algumas fontes me contaram que o advogado, um tanto desconhecido na época, estava encabeçando a defesa de Flávio. Era o coordenador nos bastidores e encarregava outros advogados de apresentar petições e habeas corpus em defesa do senador, que naquela ocasião não tinha um advogado que o defendesse publicamente. Era bastante inusitado que Flávio, sendo tão atingido, se escondesse. Em algumas ocasiões, ele se manifestou apenas por notas em suas redes sociais, combinadas com Wassef. Mas por que ele escondia o advogado?

O próprio trânsito de Frederick Wassef no Palácio do Planalto e no Alvorada iria revelar que ele era o advogado de Flávio no caso da rachadinha e que esse era o motivo pelo qual tinha tanto acesso a Jair Bolsonaro. No entanto, a tarefa de esconder Queiroz seria descoberta apenas em junho de 2020. Até porque Wassef passaria a conviver com as intensas disputas de poder no entorno do presidente e, como costuma acontecer naquela roda, a colecionar inimizades entre integrantes do governo. Assim surgiram histórias a respeito dele e informações sobre como conhecera Jair. Em uma difícil entrevista, já em março de 2021, o advogado deixou escapar que conhecia o presidente havia pouco mais de sete anos: “Desde 2014, eu conheço o Jair e toda a família. Desde então eu sempre atuei como advogado, consultor jurídico, em todas as causas que você imaginar ou não”, me disse ele, em um tom ríspido, acrescentando que não queria citar a palavra “presidente”.

Dois anos antes, ele havia contado à jornalista Andréia Sadi que, internado em um hospital, tratando uma doença, ele tinha visto Bolsonaro no YouTube falando sobre controle de natalidade. A identificação foi imediata: ele também concordava que o controle da criminalidade5 passaria pela esterilização da população mais pobre. O advogado ligou para o gabinete do deputado e foi o próprio quem atendeu. Entre os assessores mais próximos de Bolsonaro, também circula um outro episódio que teria aproximado os dois e diz respeito à defesa da comprovadamente ineficaz fosfoetanolamina sintética, a tal “pílula do câncer”, que nem mesmo pode ser chamada de medicamento.

É sabido que em 28 anos na Câmara dos Deputados Jair Bolsonaro apresentou 171 projetos e aprovou dois. Um deles foi justamente pela liberação da “pílula”. Assessores de Bolsonaro mencionam o interesse de Wassef no projeto, pois o advogado enfrentara a doença naquele período. Era a primeira vez que Bolsonaro defendia uma substância sem eficácia para o combate de doenças. Apesar da aprovação e até da sanção de Dilma Rousseff ao projeto, em 2016, o STF vetou a norma legal.

Pouco antes, a relação entre Bolsonaro e Wassef tinha se tornado também comercial. Em 2015, o então deputado comprou um Land Rover preto modelo 2009/2010 por 50 mil reais da empresa Compusoftware, comandada pela empresária Maria Cristina Boner, mulher de Wassef à época. O carro valia mais. Fora avaliado em 77 mil reais, mas o negócio foi fechado assim mesmo.

No Congresso Nacional, também ficaram registrados alguns desses encontros. Pedi à Câmara dos Deputados, por meio da Lei de Acesso à Informação, o arquivo de visitantes ao gabinete de Jair Bolsonaro e localizei uma visita de Wassef no dia 5 de outubro de 2017. Às 15h06, a portaria da Câmara dos Deputados registrou que o advogado ia ao gabinete 482, onde ficava o escritório de Jair Bolsonaro. Meses antes, em 6 de junho, Wassef também havia deixado seus dados na portaria, sem identificar a qual gabinete ia. Em 2015 e 2016, o nome dele não apareceu na lista.

Naquele período, Jair Bolsonaro respondia a dois processos criminais no Supremo por ter dito à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) que ela “não merecia ser estuprada” pois era “muito feia”. As ações o acusavam de injúria e apologia ao estupro. Formalmente, quem exercia a defesa de Jair era o advogado paranaense Arnaldo Faivro Busato Filho. Anos depois, o site The Intercept iria divulgar um áudio de junho de 2017 em que Wassef dizia ser “parceiro” de Bolsonaro e ainda se autoproclamava “advogado em off”, sem explicar o que ele queria dizer com a expressão.6

Tempos depois, soube-se que Wassef fez repasses de 276 mil reais a Busato por meio do escritório de Wassef & Sonnenburg Sociedade de Advogados, além de outros 15 mil reais que saíram de sua conta pessoal. Os pagamentos ocorreram entre 2015 e 2020. A explicação de Busato é que os valores diziam respeito a uma parceria entre os dois em outro processo, no Maranhão. De Bolsonaro, ele não teria cobrado nada.7

O Supremo ainda não julgou se Bolsonaro cometeu injúria contra a deputada, nem se fez apologia ao estupro. Mas ele é réu em ambos os processos. Se o caso tivesse ido ao STF e Bolsonaro tivesse sido condenado, ele até poderia ter ficado inelegível. Mas ele venceu a eleição para presidente e a Constituição não permite que o líder do Executivo seja julgado por atos anteriores ao mandato enquanto for o titular da cadeira da Presidência da República.

WASSEF CONSDERAVA UMA VITÓRIA que o julgamento não tivesse ocorrido antes das eleições de 2018. Já contava com prestígio junto a Bolsonaro por ter conseguido o arquivamento de uma investigação na PGR, aberta em 2015, para apurar suspeitas de subfaturamento na compra de dois imóveis no Vivendas da Barra. As aquisições não poderiam ser justificadas pelo salário do deputado. Rodrigo Janot, então chefe do MPF, avaliou que não existiam “indícios mínimos de irregularidade” e encerrou o procedimento.8

Mas o prestígio de Wassef teria concorrência no âmbito jurídico junto ao círculo mais próximo do futuro presidente. Além do caso da deputada Maria do Rosário, Bolsonaro tinha outra pendência no STF pouco antes da eleição, uma ação na qual ele era acusado de racismo. Em um evento no clube Hebraica no Rio de Janeiro, o candidato vociferou contra as demarcações de terras para populações indígenas e quilombolas: “Eu fui num quilombo, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais”. Como sempre, contava com a imunidade parlamentar para dizer o que bem entendesse. Esse foi o processo que Bolsonaro mais temeu no período prévio à eleição e a primeira vez que Wassef viu sua gestão jurídica da família Bolsonaro ameaçada. Até então, era ele que cuidava do caso, até o advogado carioca Gustavo Bebianno se aproximar do capitão.

Dois anos antes, a candidatura de Bolsonaro à presidência entusiasmara Paulo Marinho e Bebianno, que chegou a ser coordenador da campanha pelo PSL. Quando ganhou a confiança do então deputado, pediu-lhe que trocasse de advogado no processo sobre racismo no STF. Bolsonaro atendeu e o assessor escalou outro criminalista para a defesa do presidenciável. Wassef foi escanteado e nasceu a rixa entre os dois advogados.

Em setembro de 2018, a 1ª Turma do STF julgou o processo e rejeitou a denúncia de racismo contra Bolsonaro por três votos a dois. Os ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber foram vencidos por Marco Aurélio Mello, Luiz Fux e por Alexandre de Moraes, o último a votar. Moraes avaliou que não existiu um “discurso de ódio”: “No caso em questão, na contextualidade da imunidade, não me parece que, apesar da grosseria, apesar do erro, da vulgaridade, do desconhecimento das expressões, não me parece que a conduta do denunciado tenha extrapolado os limites da liberdade de expressão qualificada e abrangida pela imunidade material. Não teria a meu ver extrapolado um verdadeiro discurso de ódio, de incitação ao racismo ou à xenofobia”.

Mesmo com o crescimento de Bebianno, Wassef não deixou de ter intimidade com o futuro presidente e seguiu circulando ao redor do capitão. Estava na casa dele no dia da vitória no segundo turno da eleição presidencial em 2018.

Bebianno me falou da disputa entre os advogados em outubro de 2019, meses depois que deixara a pasta da Secretaria-Geral da Presidência e se transformara em adversário do clã. Naquele tempo, Bebianno se articulava para as eleições que ocorreriam em 2020. Vivia muito cauteloso. Marcou um encontro numa loja de conveniência de um posto de gasolina na Zona Sul, um lugar discreto, onde não entraram mais do que duas ou três pessoas durante as duas horas em que conversamos.

Sentamos num banco de canto, perto de uma janela, e ele logo me pediu para desligar o celular e guardá-lo na bolsa. Temia que tentassem pôr escutas, grampos ou aplicativos de invasão no telefone. Quando se sentiu um pouco mais à vontade, falou do processo de racismo e, ao pedir sigilo, rememorou o que sabia sobre o início do escândalo que envolvia Fabrício Queiroz. Relembrou como foi chamado por Marinho para ajudar a pensar estratégias depois que Flávio Bolsonaro acionara seu suplente.

Em dezembro de 2018, disse Bebianno, uma análise interna aconselhava a que não se deixasse a história do relatório financeiro de Queiroz contaminar Flávio; se o filho se visse envolvido, era preciso não deixar o problema chegar ao pai. Os juristas que estavam se organizando para defender os Bolsonaro avaliaram que o ideal era que as coisas ficassem restritas a Queiroz. Mas se Bebianno tinha levado a melhor antes, a situação mudou depois da vitória de Bolsonaro. A relação dele com o presidente e os filhos se deteriorou. Nos bastidores, sua ascensão foi vista com desconfiança e ele passou a ser alvo de críticas. Em especial de Carlos Bolsonaro e seu grupo.

Então, em dezembro de 2018, quando surgiu o relatório do Coaf, não foi difícil para Wassef dar o troco em Bebianno e recuperar o protagonismo e a exclusividade jurídica junto ao clã. Num fim de semana, Wassef convenceu Bolsonaro a deixá-lo cuidar da situação. No início, ele jurava que preferia os bastidores, não gostava de aparecer. Quando teve de assumir que atuava como advogado de Flávio Bolsonaro, Wassef disse que tinha em sua clientela Flávio Rocha, acionista das lojas Riachuelo, e David Feffer, da Suzano Papel e Celulose. Foi desmentido por ambos. Wassef não mencionou, mas no primeiro semestre de 2019 ele atuava para a JBS e já tinha trabalhado para a Fecomércio, no Rio. Da primeira empresa, recebeu 9 milhões e outros 2,6 milhões da segunda, por meio de um escritório de advogados.9 Sempre atuando nos bastidores.

DEPOIS DA DECISÃO LIMINAR DE TOFFOLI, em julho de 2019, Wassef já não tinha nenhum problema em estar sob os holofotes. Pelo contrário, dava entrevistas para jornais, sites e televisões. Andava com desenvoltura e era recebido por Jair até nos fins de semana. Foram pelo menos oito encontros em 2019.

A empresária Maria Cristina Boner igualmente colecionava vitórias naquele ano. Ela e Frederick Wassef viveram em união estável de 2008 até 2017, quando teriam se separado. Pelo menos é o que os dois sustentam, embora boa parte de seus conhecidos diga que eles continuaram se relacionando depois disso. Em 2018, poucos meses antes da eleição, estiveram juntos em festas de família. Wassef também frequentou o apartamento da empresária em São Paulo e a casa dela em Brasília, no Lago Sul, ao longo de 2019. Até marcou entrevistas em imóveis dela.

Se Wassef ia bem com Bolsonaro, as empresas de Maria Cristina Boner podiam dizer o mesmo. Em 15 de março de 2019, uma multa de 27 milhões de reais aplicada pelo governo federal a um consórcio de empresas do qual fazia parte a holding Globalweb Outsourcing, que tem Boner como fundadora e suas filhas como sócias, foi suspensa. Os contratos da holding com o governo também tiveram diversos aditivos em um total que chegou a 53 milhões de reais, entre 2019 e 2020.

As contas de Wassef também iam bem. No período em que já atuava nos bastidores como advogado do senador Flávio Bolsonaro, de 5 de dezembro de 2018 a 11 de fevereiro de 2020, o advogado recebeu de Bruna Boner, filha de Maria Cristina, um total de 2,4 milhões de reais em oito transferências mensais. As duas maiores foram em fevereiro de 2020, pouco mais de 1,5 milhão de reais. Já nas contas do escritório Wassef & Sonnenburg Sociedade de Advogados também entraram mais de 1 milhão de reais da empresa Globalweb. A empresa justificou que os valores são oriundos do pagamento de serviços de Wassef. Em 2021, o advogado conseguiria anular o relatório do Coaf sobre suas contas bancárias no TRF-1 (Tribunal Regional Federal) alegando que o documento foi produzido de forma injustificada.

A empresária se tornou conhecida no Brasil depois de uma foto sua com Bill Gates nos anos 1990, anunciando que ela seria a representante da Microsoft para as vendas do software Windows a órgãos públicos brasileiros. Depois disso o negócio decolou. A pequena TBA Informática virou Holding, arregimentando mais de trinta empresas. O próspero negócio foi feito junto com Antonio Basso, ex-marido de Boner.

Boner e Basso se separaram em 2007 e passaram a guerrear por um patrimônio de cerca de 300 milhões de reais. Wassef se tornou advogado de Boner e os dois passaram a manter um relacionamento. Em meio à partilha, a empresária acusou Basso de agressão e extorsão. Condenado, ele ficou sete meses preso. Nesse contexto, o advogado criminalista fluminense Paulo Klein atuou para a empresária.

A separação litigiosa não foi o único problema de Boner no Judiciário. Em 2014, ela colecionava no MP 168 acusações por corrupção passiva e 21 por lavagem de dinheiro devido ao “mensalão do DEM”. As imputações vieram depois que ela foi flagrada em um vídeo, de 2006, negociando propinas de 1 milhão de reais, que seriam pagas em doações eleitorais ao ex-governador José Roberto Arruda (DEM) em troca de contratos sem licitação na área de informática.10 O processo se arrasta há anos no Judiciário. Com todos os imbróglios, a empresa de Boner mudou de nome e hoje é por meio da holding Globalweb que ela comanda o negócio, que tem formalmente como sócias suas filhas.

Durante esse período, ao lado de Wassef, Maria Cristina conheceu Jair Bolsonaro, que chegou a frequentar sua casa. E foi assim que ela também viu a ascensão do ex-companheiro com quem ainda convivia bastante. Separados ou não, Wassef mantinha intimidade suficiente com ela para levar Fabrício Queiroz até um apartamento seu em São Paulo.

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