Interior do Mercado Público de Porto Alegre/ Foto: Rafa Neddermeyer/ Agência Brasil
Por TARSO GENRO*
O termo “reconstruir” uma região devastada é uma falsidade terminológica, porque a cidade e a região nunca mais serão as mesmas
1.
Duas analogias, dentre as mais importantes que foram referidas como comparáveis ao esforço de reconstrução do Rio Grande do Sul depois do Dilúvio, apontam para experiências internacionais que podem nos ajudar a compor a ideia de onde queremos chegar. A menção que teve mais divulgação, dada a importância institucional de quem a mencionou, foi a do “Plano Marshall”, lembrado pelo governador Eduardo Leite, e a segunda menção — não menos importante — foi a experiência do “New Deal“, de Franklin Delano Roosevelt, lembrada por vários acadêmicos e políticos de envergadura.
O “New Deal”, um conjunto de programas implementados nos EUA – entre 1933 e 1937 – sucedeu à Grande Depressão e o seu objetivo foi a recuperação da economia de forma combinada com superação da crise social. Sua concepção integrava a edificação de grandes obras públicas, com a utilização extensiva de mão de obra e não se intimidava em gerar empregos aparentemente supérfluos, para combater a miséria absoluta e a pobreza, que sucedeu a Crise de 1929. Tratava-se de uma política interna do país para armar o seu futuro de nação dominante no cenário do mundo.
O Plano Marshall, determinado para superar os efeitos de uma devastação pela Guerra, tinha dois objetivos centrais: um, de natureza política e moral; outro de natureza econômica estrutural. A indigência, a fome e a diluição moral da sociedade europeia como um todo – sobretudo da sua força de trabalho – precisava ser superada, para enfrentar o prestígio do “perigo soviético” que rondava o continente, já que a URSS suportara os ônus humanos e materiais mais duros, impostos pelo nazismo a toda a região.
A barreira europeia, ao avanço da URSS, só poderia ser fundada em bases materiais sólidas, com um processo de modernização capitalista que permitisse, no futuro – pensavam os capitalistas de todo o mundo – pactos militares de contenção da expansão comunista e, ao mesmo tempo, organizasse sociedades capitalistas menos desiguais e menos sensíveis aos apelos revolucionários que vinham da Internacional Comunista.
O Plano Marshal cumpriu isso com brilhantismo e o seu resultado foi a devolução da hegemonia da Europa à Alemanha, derrotada pela Guerra, país através do qual o espectro do nazismo, não do comunismo, passa a rondar a velha Europa Iluminista. As consequências do Plano Marshall e do “New Deal” americano, todavia, foram universais e já se esgotaram, assim como o modelo soviético de socialismo também se esgotou.
O “Welfare State” europeu, portanto, teve um resultado estrutural positivo – na economia política e social da Europa – originário do “New Deal” americano e da recuperação europeia, financiada por 100 bilhões de dólares em dinheiro de hoje, pelo Plano Marshall. A ideia desenvolvida pelo general americano George C. Marshall, permitiria – em perspectiva – que EUA e URSS garantissem áreas de influência acordadas, para assegurar sua soberania, extensiva e dominante nos seus países aliados ou sobre os países antes inimigos, antes ocupados.
2.
O Brasil não está saindo de uma Guerra, não busca aliados no mundo para estender sua influência ou sua dominação econômica, a Bolsa não quebrou, seu Estado não está falido, nem está sendo ameaçado por um poder Militar imediatamente, que comprometa sua soberania interna. Tampouco está experimentando uma situação catastrófica semelhante a qualquer país, depois da Segunda Guerra, nem tem multidões – em toda a nação – desamparadas, depois uma crise econômica do seu tecido produtivo, que é assentado predominantemente nas bases da Segunda Revolução Industrial.
E mais: aqui estamos tratando de uma hecatombe climática que se derramou, literalmente, sobre uma parte de um país, o Rio Grande do Sul, que não estava preparada para o elementar: fazer funcionar minimamente um sistema antigo de contenção às cheias, numa região cujo desenvolvimento econômico, social e ambiental não superou os protocolos da Segunda Revolução Industrial e cuja sustentabilidade ambiental recebe um brutal desdém das suas classes dominantes agrárias e urbanas.
A pergunta que se coloca, portanto, não é quanto o governo irá gastar e para quem ele irá deslocar recursos, nas três etapas que teremos que enfrentar, pois ainda não superamos a primeira, a da ajuda humanitária às populações mais pobres e aos setores médios, que foram abalados nas suas pequenas posses, nos seus mais simples modos de vida, nas suas necessidades mais elementares – dos seus velhos, crianças, jovens, homens e mulheres – todos agora beirando a marginalização e assediados pela letalidade das doenças endêmicas, que sobrevém à catástrofes desta natureza.
Esta pergunta e as preocupações que dela decorrem levam a outra pergunta: é de reconstrução que necessitamos, ou é de uma construção de uma nova região e de uma nova cidade, de um novo modo de produzir e viver, que sirva de exemplo emblemático para mudar os rumos da região e do país? Simplesmente dar dinheiro a grandes empresários subsidiados, sem impor qualidade aos seus gastos e a sua integração num novo modelo de desenvolvimento eco ambiental, sustentável e moderno, é preparar uma dinâmica de repetição do que já ocorreu. Ajuda a pequenas empresas e pequenos negócios, todavia, é essencial e urgente para que a retomada seja rápida e efetiva, em todas as instâncias das economias locais.
Num processo de transição climática, que deve ser, também, um estímulo para a transição a um novo modo de viver, produzir, e sobretudo construir alternativas de energia limpa, a reconstrução não é a palavra de ordem correta. Mesmo porque o Plano Marshall e o New Deal, só podem servir de exemplos de respostas dignas a certo tipo de catástrofe e aos sofrimentos que delas decorrem, em que a única saída era realmente uma reconstrução, face às guerras impostas a todos os grandes Estados.
Na transição climática que vivemos, uma primeira fase da resposta é um correto atendimento humanitário às famílias atingidas pela catástrofe, com alimentos, água, teto, roupas e recursos para a retomada da vida comum; uma segunda fase, que deve começar fortemente de dentro da primeira – com outras equipes e chefias superiores e intermediarias – é a reconstrução das estruturas abaladas pelas cheias, com exemplos concretos de proteção das cidades devastadas, reparos aos serviços e máquinas necessárias para prevenir o pior; e uma terceira fase, a mais complexa e essencial, que é a construção de uma nova cidade e uma nova região.
Até porque o termo “reconstruir” uma região devastada é uma falsidade terminológica, porque a cidade e a região nunca mais serão as mesmas. As lembranças, os lugares, os espaços públicos, os que restaram das tragédias não mais serão os mesmos; os morros não voltarão, os jardins estarão devastados e serão outros; as casas serão diferentes, os lugares de encontros e afetos passados estarão apenas na memória: a cidade que se erguera sobre os seus escombros deve ser outra, porque a anterior deve ser superada pelas novas escolhas que seus homens e mulheres fizerem do seu destino.
Cumpre também lembrar que os padrões produtivos aqui desenvolvidos estão na sua maioria superados pelas novas tecnologias infodigitais experimentadas na própria vanguarda do desenvolvimento capitalista, nos principais lugares do mundo. Se é verdade que eles têm o que nos ensinar, tem também o que apreender, no sentido de compatibilizar o desenvolvimento econômico produtivo com a atenção eco ambiental, para uma vida conciliada com a naturalidade, o respeito aos direitos humanos e a supressão das diferenças sociais e de renda, quase bárbaras que nos caracterizam.
3.
De Porto Alegre para o Rio Grande do Sul e do nosso estado para o Brasil, pode surgir uma nova ideia de solidariedade das pessoas entre si e destas com natureza. Isso começa com a política, passa pela ciência e pela técnica, corre no leito das organizações da sociedade civil, das Universidades Públicas e privadas e abrange todas as pessoas e instituições.
O diálogo entre os poderes da República, a consciência majoritária dos partidos políticos e a solidariedade entre os entes da União, construindo aqui, podem iniciar a reconstrução do país de uma forma ousada jamais imaginada nos tempos que correm – em um mundo desolado e assediado pela Guerra.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios). [https://amzn.to/3ReRb6I]
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