domingo, 26 de maio de 2024

Rússia ganha pontos entre ex-colônias portuguesas

© Foto: Domínio público
Portugal falhou, como falha a União Europeia, como falham os EUA, em ver, no mundo multipolar, um mundo sem nações indispensáveis, o seu futuro, o nosso futuro.

A luta pelo domínio das principais fontes minerais do mundo está acirrada. Como seria de esperar, esta luta é mais intensa nos locais onde a acumulação de riqueza é mais sentida: a África Subsariana e o Médio Oriente. O problema é que esta luta está a mover as placas tectônicas, causando pânico entre os anfitriões pró-EUA/NATO/UE.

O aprofundamento das relações entre a China e os países do Sul global e da África, em particular, acompanhado da intervenção da Rússia no continente africano, iniciando um combate eficaz ao terrorismo, o mesmo terrorismo que justificou, durante quase 20 anos, a presença de missões da União Europeia e dos EUA no continente, tem causado uma onda de desespero e recriminação em todo o espectro político situacionista e pró-hegemônico.

A presença militar russa — através do Corpo Russo Africano — em vários países africanos (Burkina-Faso, Mali, Chade, Líbia, Sudão, Moçambique, República Centro-Africana), suscitou, desde os partidos políticos de centro, centro-direita e neoliberais à direita, do espectro político europeu, todo um conjunto de recriminações, sendo a última a de que a Rússia está a “alinhar ditaduras” na África. Esta acusação vinda de políticos europeus que sempre estiveram alinhados com o neocolonialismo e o imperialismo, é quase caricaturada, se não fosse trágica. Fazendo-nos acreditar que a ditadura na África chega, no século XXI, com a chegada da Rússia ao terreno, depois de 500 anos de pilhagem, escravização, ocupação, corrupção, condicionamento e exploração do continente pelo Ocidente…. Diz muito sobre a razão pela qual o Ocidente coletivo não consegue encontrar o seu lugar no mundo de hoje.

A incapacidade dos EUA/NATO/UE de encontrarem um lugar no mundo multipolar, um mundo que deseja ansiosamente libertar-se do passado paternalista, neocolonialista e subserviente, em que foi colocado, ao longo de 500 anos de história, encontra eco em acontecimentos recentes em todo o mundo: em Bratislava, Robert Fico leva três tiros e está em estado crítico; no Irã, o presidente e quatro altos funcionários do Estado morrem num acidente de helicóptero; na República Democrática do Congo foi tentado um golpe de Estado e no Burkina-Faso alguém tentou atacar o palácio presidencial.

A luta pelo controle dos ativos minerais faz-se ao milímetro, baluarte a baluarte, mina a mina, concessão a concessão. Entretanto, se a China gastou 19 mil milhões de dólares em investimentos mineiros durante 2023, e a Rússia aprofundou as relações com o Senegal, a Líbia e outros, os EUA, através da Corporação Financeira para o Desenvolvimento Internacional, investiram apenas 740 milhões de dólares. A relutância pode ser vista. Habituados a obter minas a preços reduzidos ou quase de graça, os países ocidentais enfrentam agora a necessidade de também pagar. O que é um problema, porque o modelo ocidental é o que a primeira-dama da Serra Leoa mencionou numa entrevista recente. Fatima Maada Bio explicou como o Reino Unido é dono de todas as minas do seu país e gere a rede elétrica do próprio país. O Ocidente tem de garantir que eles se comportem bem.

Mas a Serra Leoa tem eleições, eleições vencidas com a melhor propaganda que as empresas mineiras ocidentais podem comprar. Se existe um exemplo para demonstrar que o problema não reside na existência de uma falsa democracia, controlada a partir de Wall Street, mas nas condições de soberania que cada Estado efetivamente tem de desenvolver… É a Serra Leoa. Veja quem lucra com esta “democracia ocidental”.

É por estas razões, por perpetrar este tipo de estereótipos e falácias, que o Ocidente coletivo continua sem compreender o que lhe acontece e sem compreender porque é que, mais de 500 anos depois da chegada dos portugueses ao continente africano, o povo africano ainda quer ser livre. 500 anos de governo foram suficientes para convencer a maioria de que, com a liderança do Ocidente, o desenvolvimento será sempre uma miragem. E os únicos que não entendem isso são os próprios ocidentais. A criação da Associação dos Estados do Sahel é, talvez, a primeira vez que, na África, as relações geográficas foram definidas sem estarem sujeitas ao paternalismo ocidental. Portanto, esta emancipação deve ser valorizada.

É neste quadro de emancipação que a indignação também explodiu em Portugal quando os recém-instalados órgãos de soberania, o governo e a direita radical, entraram em colapso nervoso ao descobrirem que uma ex-colônia portuguesa - São Tomé e Príncipe - tinha negociado, celebrado e implementou um acordo militar com a Rússia, sem pedir autorização. Se não pretendiam que a autorização fosse solicitada, não foi isso que insinuaram com o seu desespero.

Não faltaram recriminações ao ministro dos Negócios Estrangeiros e pedidos de explicações, por parte dos setores mais russofóbicos — sabe-se lá porque são russófobos, além de terem passado pela Ivy League — dentro da política portuguesa. A tal ponto que o Presidente da República, talvez pensando que ainda tinha 16 anos (antes da revolução que ditou o fim da guerra colonial e da descolonização), disse querer “ver o acordo”.

Portugal, um pequeno país da Europa Ocidental, mas um dos mais russofóbicos da União Europeia, legado de mais de 40 anos de fascismo — a mais longa ditadura da Europa -, sempre olhou para a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Portugal, Angola, Moçambique, Brasil, Cabo Verde, Timor-Leste, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe), como algo que está à mão, mas que não há necessidade de pegar, porque nunca escapará. Uma espécie de visão neocolonial, muito presente nas relações econômicas entre os vários países, com exceção do Brasil. O Brasil é um peso pesado, como sabemos.

Ligados à política externa definida pelos EUA e pela União Europeia, sem uma visão internacional soberana e independente, sucessivos governos nunca puderam, quiseram ou optaram por olhar para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) como o futuro de Portugal, como sua principal ponte para o mundo, para o mundo inteiro. Uma ponte construída com o que há de mais precioso que une pessoas, língua e cultura.

Para as autoridades portuguesas, a CPLP nunca foi mais do que uma mera porta de saída, aberta apenas por razões econômicas, sobretudo, ao sabor de interesses muito mais vastos que nem sempre coincidiam com os dos portugueses. Vejamos o caso do Memorando de Entendimento entre os EUA e a União Europeia, em apoio ao desenvolvimento do corredor do Lobito, entre Angola, Zâmbia e a República Democrática do Congo. Portugal, o segundo maior exportador para Angola, logo a seguir à China (de longe), nem sequer aparece listado na documentação que se refere à integração deste corredor do Lobito na estratégia europeia para matérias-primas críticas, o Global Gateway. No fórum de lançamento do Global Gateway em Angola, a única presença portuguesa foi a do embaixador da União Europeia em Angola.

Tal como aconteceu com os seus mestres do centro da Europa, Portugal também sempre falhou na promoção de alternativas de desenvolvimento que pudessem aproximar os países de língua portuguesa do mundo desenvolvido e, sobretudo, falhou na promoção da cooperação, entre iguais, que beneficiasse do enorme mercado disponível. dos povos de língua portuguesa, de todos eles. Um fator unificador que ainda hoje constitui um dos principais elos entre os EUA e o resto do mundo. A língua.

Em vez disso, Portugal optou sempre por virar para norte e ficar plenamente satisfeito com a ideia de um dia ser tratado como igual aos povos do Norte, tal como os africanos se perderam na ilusão de se desenvolverem através da aproximação com o Ocidente, um sonho a partir do qual eles agora estão acordando. Portugal caiu e continua a cair no mesmo erro. Portugal nunca assumirá qualquer centralidade que não se baseie na sua soberania, independência e numa visão que direcione o país para o futuro, para o sul global, para o mundo que cresce, através da cooperação, através da partilha de oportunidades de desenvolvimento. O fato é que, muitos milhões de fundos europeus depois, nem Portugal, nem qualquer país periférico da União Europeia, pretendiam convergir com os países do norte e centro da Europa, em termos de níveis mais elevados de desenvolvimento. Se ninguém o conseguiu, dezenas de anos depois, centenas de milhares de milhões de euros depois, é porque não era suposto que o conseguissem. Tal como nenhum africano o conseguiu durante 500 anos de domínio ocidental. Há coisas que a própria história se encarrega de demonstrar, apesar de todos os discursos e de todos os floreios.

Foi esta mesma subserviência, que Portugal exige às suas antigas colônias e que a União Europeia exige a Portugal, que fez com que um país com 10 milhões de habitantes, com acesso histórico privilegiado a um mercado de 300 milhões de habitantes, com mais de 2 biliões de euros de O PIB, não tem conseguido transformar este acesso numa vantagem estratégica, mesmo na perspectiva da sua integração europeia.

Em vez disso, Portugal perdeu-se em sonhos adiados, vendo a prometida “convergência” europeia cada vez mais distante. Convergência que nunca mais volta, tal como o desenvolvimento prometido nunca chega aos países africanos, aos quais o Ocidente coletivo tem acenado, desde há 500 anos decidiu ir para África para salvar almas e trazer a civilização.

As relações econômicas de Portugal com os países africanos dizem tudo. Portugal importa cerca de metade do valor que exporta, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, relativos aos anos 2018-2022. Quando se avalia a relação com o Brasil, a situação inverte-se e é Portugal que fica com um equilíbrio desequilibrado. Portugal envia produtos manufaturados, de médio valor agregado, e importa bens não processados, de baixo valor agregado. Esta relação demonstra que Portugal tem feito muito pouco para ajudar estes países a desenvolverem-se, nomeadamente através de transferências tecnológicas. Angola tem muito petróleo, não o refina, Portugal não tem petróleo, mas sabe refinar. Ambos estão nas mãos de interesses estrangeiros. Um pequeno exemplo.

É por isso que ninguém pode estranhar esta relação entre São Tomé e Príncipe e a Rússia, que também se verifica na Guiné-Bissau e em Moçambique. É, mais uma vez, a história que explica esta relação, pois foi ninguém menos que a URSS que apoiou os movimentos de libertação que lutaram contra o governo colonial português, enquanto os EUA e outros países europeus apoiaram o ignominioso Apartheid. Foi com armas e tropas soviéticas e cubanas que a África do Sul foi derrotada na batalha de Cuito Cuanavale, que se tornou o princípio do fim daquele regime genocida. Hoje, quando olham para a ameaça terrorista, os países africanos olham para o Sahel e detectam o óbvio: 20 anos de “apoio” na luta contra o terrorismo, por parte dos países ocidentais (França, EUA, Reino Unido), e os terroristas foram ainda mais e mais. Até a chegada dos russos. Então, a história foi diferente. Assim como na Síria.

Esta situação é sintomática do fracasso de toda uma política externa que afirmava querer construir “pontes” com o mundo. Tal como todo o Ocidente coletivo, Portugal também não conseguiu preservar a sua relação privilegiada com África a. Quando os governantes portugueses testemunharam o despertar dos países africanos, a sua abordagem aos BRICS, a sua recusa em aplicar sanções à Rússia, o que fizeram? Você tentou entender? Você tentou entender por que esses países perderam a fé no Ocidente? Nunca! Eles apenas recriminaram e se destacaram claramente da tendência geral.

Portugal afastou-se dos seus para se juntar aos outros. Para aqueles que lhe pagaram para destruir a indústria, a agricultura e as pescas, ele precisava de ser uma mais-valia para a CPLP. Hoje, 80% dos empregos criados são empregos pouco qualificados e com baixos salários, e Portugal tem muito pouco para oferecer a África e ao Brasil que outros não possam oferecer. Como se viu no caso do Global Gateway em Angola, as potências europeias não precisam do envolvimento de Portugal para relançar os seus acessos e redes.

Este acordo entre São Tomé e Príncipe representa, acima de tudo, a incapacidade portuguesa de ver um futuro para além da decadente e cada vez mais fascista NATO/UE/EUA. Representa a incapacidade de ver no Brasil e nos restantes países africanos de língua portuguesa um enorme mercado comum, uma fonte de industrialização, de cooperação, numa estratégia em que todos ganham: uns porque vendem, outros porque compram, outros porque produzem , outros porque trocam. A CPLP foi a ponte dos países de língua portuguesa para o mundo. Para todos.

Portugal falhou, como falha a União Europeia, como falham os EUA, em ver, no mundo multipolar, um mundo sem nações indispensáveis, o seu futuro, o nosso futuro. Não se surpreenda, portanto, que a Rússia, a China, o Irã ou mesmo a Índia continuem a expandir-se na África, nesta segunda vaga de descolonização. No primeiro, a URSS ajudou a obter a liberdade, no segundo, é a Rússia que vem colher os frutos de todo esse “soft power”, incrustado na história da humanidade em letras de ouro. Enquanto alguns queriam perpetrar a colonização, outros ajudaram, em momentos cruciais, a combatê-la.

E por mais que isso prejudique o Ocidente, é a Rússia quem está agora em posição de recolher os resultados de um investimento que os blocos imperialistas não queriam, não podiam, nem estavam preparados para desenvolver. Simplesmente não estava em sua natureza.

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