Imagem: Julian Vera Film
Por ELIZABETH SCHMIDT*
A presença da China na África vem desde meados do século passado, inicialmente por simpatia política, hoje mais ligada a perspectivas econômicas
A crescente presença da China na África chamou a atenção global. À medida que seus acordos comerciais e investimentos eclipsaram os do Ocidente, políticos dos EUA e da União Europeia deram o alarme: Pequim, dizem eles, está explorando os recursos do continente, ameaçando seus empregos e apoiando os seus ditadores; ademais, está deixando de lado as considerações políticas ou ambientais.
As organizações da sociedade civil africana fazem muitas das mesmas críticas, ao mesmo tempo em que apontam que os países ocidentais há muito se envolvem em práticas semelhantes. Na mídia anglófona, a maioria das avaliações das perspectivas da China é obscurecida pela retórica da Nova Guerra Fria, que enquadra Xi Jinping como um sujeito que visa dominar o mundo. Pede-se, assim, às forças da civilização que o detenham. Ora, como se poderia fazer uma análise mais sóbria? Como se deve entender o papel da África nessa matriz geopolítica hostil?
Os interesses chineses na África – assim como as preocupações ocidentais sobre a influência de Pequim – não são novidade. Compreender o impasse atual exige que a sua história do imperialismo na África seja rastreada. Em abril de 1955, representantes de 29 nações e territórios asiáticos e africanos se reuniram para uma conferência histórica em Bandung, na Indonésia. Eles resolveram arrancar a própria autonomia do núcleo capitalista, promovendo a cooperação econômica e cultural, bem como a descolonização e a libertação nacional, em todo o Sul Global.
Nesse sentido, o envolvimento chinês com a África foi guiado inicialmente por esse espírito de solidariedade. Do início dos anos 1960 a meados dos anos 1970, a China ofereceu doações e empréstimos a juros baixos para projetos de desenvolvimento na Argélia, Egito, Gana, Guiné, Mali, Tanzânia e Zâmbia. Também enviou dezenas de milhares de “médicos descalços”, técnicos agrícolas e brigadas de solidariedade trabalhadora para países africanos que rejeitaram o neocolonialismo e, por isso, haviam sido rejeitados pelo Ocidente.
Na África Austral, onde o domínio da minoria branca persistiu em certas colônias, Portugal resistiu às demandas de independência, Pequim forneceu aos movimentos de libertação em Moçambique e na Rodésia treinamento militar, conselheiros e armas. Quando os países ocidentais ignoraram os apelos da Zâmbia para isolar efetivamente os regimes renegados, a China criou em empresa ferroviária na Tanzânia e Zâmbia, que construiu uma ferrovia que permitiu à Zâmbia exportar seu cobre através da Tanzânia, em vez da Rodésia e da África do Sul, governadas por brancos. Ao longo desse período, as políticas chinesas foram determinadas principalmente por imperativos políticos, pois o país buscava aliados em uma conjuntura global moldada pela Guerra Fria.
Após o colapso da URSS, porém, as suas prioridades mudaram. A China respondeu ao advento da unipolaridade americana embarcando em um programa maciço de industrialização e liberalização, na esperança de evitar o destino de outros projetos estatais comunistas. Com essa mudança, a África não era mais vista como um campo para iniciativas com teor ideológico, mas como uma fonte de matérias-primas e um mercado para produtos chineses, que vão de roupas a eletrônicos. A simpatia política deu lugar à perspectiva da utilidade econômica. As nações africanas foram valorizadas de acordo com seu significado material e estratégico para os planos de desenvolvimento do Partido Comunista Chinês.
Na primeira década do século XXI, a China ultrapassou os EUA como o maior parceiro comercial da África e recentemente se tornou a quarta maior fonte de investimento estrangeiro direto do continente. Em troca de acesso garantido a recursos energéticos, terras agrícolas e materiais para dispositivos eletrônicos e veículos elétricos, a China gastou bilhões de dólares em infraestrutura nesse continente: construção e reforma de estradas, ferrovias, barragens, pontes, portos, oleodutos e refinarias, usinas de energia, sistemas de água e redes de telecomunicações.
As empresas chinesas também construíram hospitais e escolas e investiram nas indústrias de vestuário e processamento de alimentos, juntamente com agricultura, pesca, imóveis comerciais, varejo e turismo. Os investimentos mais recentes se concentraram em tecnologia de comunicação e energia renovável.
Ao contrário das potências ocidentais e das instituições financeiras internacionais, Pequim não fez da reestruturação política e econômica uma condição para seus empréstimos, investimentos, ajuda ou comércio. Eles não estão também condicionados a proteções trabalhistas e ambientais. Embora essas políticas sejam populares entre os governantes africanos, elas são frequentemente contestadas por organizações da sociedade civil, que observam que as empresas chinesas expulsaram empresas de propriedade africana do mercado e empregaram trabalhadores chineses em vez de trabalhadores locais.
Quando contratam mão de obra africana, as empresas chinesas muitas vezes os forçam a trabalhar em condições perigosas por salários miseráveis. Os projetos de infraestrutura da China também resultaram em dívidas maciças que aprofundaram a dependência africana. No entanto, os países africanos ainda devam muito mais ao Ocidente.
O mais danoso é que Pequim garantiu seu acesso irrestrito a mercados e recursos apoiando elites corruptas, fortalecendo regimes que roubam a riqueza de seus países, reprimem a dissidência política e travam guerras contra estados vizinhos. Os governantes africanos, por sua vez, deram à China o apoio diplomático muito necessário nas Nações Unidas e em outras organizações internacionais.
Durante décadas, a China se opôs à interferência política e militar nos assuntos internos de outras nações. No entanto, à medida que os interesses econômicos de Pequim na África cresceram, ela adotou uma abordagem mais intervencionista, envolvendo operações de socorro em desastres, antipirataria e contraterrorismo.
No início dos anos 2000, a China aderiu aos programas de manutenção da paz da ONU em países e regiões onde tinha interesses econômicos. Em 2006, a China pressionou o Sudão, um importante parceiro petrolífero, a aceitar a presença da União Africana e da ONU em Darfur. Em 2013, aderiu à missão de manutenção da paz da ONU no Mali, motivada pelos seus interesses no petróleo e no urânio dos países vizinhos. Em 2015, trabalhou com potências ocidentais e organizações sub-regionais da África Oriental para mediar as negociações de paz no Sudão do Sul.
Durante este período, a China inicialmente se absteve de se envolver militarmente em áreas dominadas por conflitos, preferindo contribuir com trabalhadores médicos e engenheiros. Mas isso não durou muito. Houve uma notável presença militar chinesa nas missões de paz da ONU no Burundi e na República Centro-Africana.
A missão da ONU no Mali marcou a primeira vez que as forças de combate chinesas se juntaram a uma operação desse tipo, ao lado de cerca de 400 engenheiros, pessoal médico e policial. Pequim também enviou um batalhão de infantaria composto por 700 soldados armados para o Sudão do Sul em 2015. No ano seguinte, estava contribuindo com mais militares para as operações de manutenção da paz da ONU do que qualquer outro membro permanente do Conselho de Segurança.
A tendência de maior envolvimento político e militar na África culminou em 2017, quando a China se juntou à França, EUA, Itália e Japão no estabelecimento de uma instalação militar em Djibuti: assim nasceu a primeira base militar chinesa permanente fora das fronteiras do país. Estrategicamente localizada no Golfo de Aden, perto da foz do Mar Vermelho, a instalação tem vista para uma das rotas marítimas mais lucrativas do mundo.
Isso permitiu que Pequim reabastecesse embarcações chinesas envolvidas em operações antipirataria da ONU e protegesse os cidadãos chineses que vivem na região. Também permitiu o monitoramento do tráfego comercial ao longo da Rota da Seda Marítima do Século XXI da China, que liga países da Oceania ao Mediterrâneo em uma vasta rede de produção e comércio. Isso ajudará a China a proteger seu suprimento de petróleo, metade do qual se origina no Oriente Médio e transita pelo Mar Vermelho e pelo Estreito de Bab el-Mandeb até o Golfo de Aden. A maioria das exportações da China para a Europa segue a mesma rota.
Embora Washington condene o que chama de imperialismo chinês, sua própria pegada militar na África é muito mais profunda e dolorosa, consistindo em 29 bases em áreas ricas em recursos. Os EUA prometem afastar os “impérios do mal” enquanto ostentam mais de 750 bases em pelo menos 80 países, em comparação com as três da China. Lutou em pelo menos 15 guerras estrangeiras desde 1980 – a China aderiu a apenas uma – e os regimes fiscais que impôs às nações africanas, baseados na privatização, desregulamentação e restrições de gastos, foram ruinosos.
O establishment de segurança dos EUA agora visa conter a ascensão da China, reforçando alianças militares, especialmente com regimes que receberam investimentos chineses. No entanto, um número crescente de estados africanos, cientes desse histórico desastroso, está se recusando a tomar partido na Nova Guerra Fria e, em vez disso, está tentando jogar seus combatentes uns contra os outros.
A verdade é, porém, que enquanto a África for tratada como um meio para as potências rivais expandirem seus mercados ou influência, em colaboração com as elites locais, o povo do continente não exercerá a verdadeira soberania. Hoje, os legados de Bandung são escassos.
*Elizabeth Schmidt é professora de história na Loyola University Maryland.Tradução: Eleutério F. S. Prado.Publicado originalmente no blog Sidecar da New Left Review.Veja neste link todos artigos de
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