segunda-feira, 29 de julho de 2024

O império em seu labirinto

Imagem: Wendelin Jacober

Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

Nos últimos dez anos os EUA entraram na sua mais profunda crise institucional

Gabriel Garcia Márquez vislumbrou Simon Bolívar na sua busca incessante por uma terra de liberdade, porém já perdido entre inimigos e a perda inevitável de sua cognição, assim preso em “seu labirinto”, o general perdeu grande parte de seu vislumbre histórico. Parece ruim comparar o general Simon Bolívar e sua importância histórica para América Latina e usá-lo para visualizar a atual perda de cognição do Império estadunidense, mas o uso metafórico me pareceu interessante.

O objetivo deste texto é fazer breve análise do processo eleitoral e da crise institucional estadunidense em três atos. A construção comparativa de um labirinto aparece ao se observar às saídas possíveis do Império: uma continuidade frenética de guerras e a inevitabilidade, ao nosso ver, de um projeto fascista. O primeiro ato ensejará o contexto de crise do imperialismo estadunidense; o segundo tratará do avanço da disputa entre os novos blocos internacionais, especialmente o novo bloco da Eurásia (China e Rússia) e o desfalecimento do dólar; por fim, o terceiro ato tratará dos limites da democracia liberal e os riscos fascistas e belicistas.

A crise prolongada do império

Os EUA saíram da segunda guerra mundial como um poder global, imperial no sentido leninista, ou seja, controle dos fluxos mundiais de capital, base tecnológica e organização do sistema militar. A rivalidade com a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) se dava curiosamente nos três campos, por mais que no caso da União Soviética se tratasse de uma forma econômica híbrida (o Socialismo Real).[i]

A URSS possibilitava fluxos de investimentos (capital fixo e circulante) para um conjunto de países, assim como base tecnológica e estrutura militar (o Pacto de Varsóvia). Poderíamos afirmar, com certo grau de exatidão, que a disputa EUA/URSS, era uma disputa total e de permanente repercussão na reorganização econômica do capitalismo central e periférico.[ii]

A derrota da URSS foi assim um duro golpe em qualquer projeto atenuador das relações burguesas mais críticas. Tanto é assim que somente com o fim da URSS e com a queda do Muro de Berlim em 1989 e 1991, observa-se o avançar definitivo do credo neoliberal.[iii]

Mesmo com a sua vitória dobre o Socialismo real o preço pago pelo imperialismo estadunidense foi elevado. Para superar a União Soviética se fez necessário recompor o capitalismo europeu e antigos rivais serem recolocados na disputa concorrencial capitalista, especialmente Alemanha e Japão. Assim como estabelecer uma ponte com a China Revolucionária (Henry Kissinger refaz os laços com a China ainda em 1976). Aqui o objetivo era isolar a URSS. Mal sabiam que recriariam o antigo dragão.

O declínio estadunidense se deu aos poucos e ainda se dá lentamente, isso pelo controle quase que monopólico do “dinheiro mundial” e pelas forças de transferência de valor da periferia capitalista para o centro imperial e, também, pelo último ciclo tecnológico sobre seu controle, o ciclo das “big techs“, o que, ao nosso ver, está se encerrando e, provavelmente, inaugurará uma nova e fratricida corrida tecnológica e militar.

A nova disputa de blocos econômicos e sociais

Eric Hobsbawm (2012, p. 479) notava que a Rússia, seja como um império czarista ou na forma da União Soviética tinha sido uma “grande potência desde o século XVIII, sua desintegração tinha deixado um vazio entre Trieste e Vladivostok”. Da leitura do historiador inglês parece surgir claramente que o tempo histórico de uma Rússia frágil seria muito curto e que logo se estabeleceria relações de poder que retomariam a conflitualidade entre Moscou e as forças do imperialismo estadunidense. De fato, após o fim da URSS se impôs um forte cerco ideológico e econômico, inclusive buscando desfazer a Federação Russa, tal como se fez com a antiga Iugoslávia, à custa de bombardeios que praticamente destruiu Belgrado.

Durante os anos 1990 se interpôs o chamado “princípio do novo século americano”, uma tentativa de dar continuidade à pax firmada após a Segunda Guerra em torno do poder nuclear estadunidense, porém a permanência do questionamento russo, mesmo depois da sofrida derrota da Guerra Fria, tornou o cenário sempre crítico para o capitalismo bélico estadunidense. No quadro posterior aos anos 1990 seis elementos são importantes de serem visualizados e tratados:

(i) A afirmação do dólar como moeda mundial. O sistema financeiro firmado em Breton Woods já tinha entrado em declínio desde meados dos anos 1960, porém os arranjos comerciais internacionais e o poder econômico estadunidense mantiveram o dólar como principal referência nas trocas, inclusive pela ausência de qualquer instituição monetária alternativa.

O dólar como moeda de transação possibilita importantes vantagens aos EUA, quatro delas são notáveis: (a) o poder de “senhoriagem”, o que implica ganhos com o controle da moeda e que são apropriados diretamente pelo Tesouro dos EUA; (b) vantagem na incorporação de instrumentos financeiros de controle e regulação sistêmica, o principal é o Sistema Swift, que controla as movimentações e fluxos entre moedas; (c) ganhos na paridade de troca; (d) base nominal para emissão dos títulos do tesouro estadunidense, fator chave no financiamento fiscal e organizador do duplo déficit (fiscal e comercial).[iv]

Aspecto que nos interessa aqui se refere ao custo transacional em dólar, em função dos três elementos acima, que estimula diversos países a reverem ou adotarem novas opções, claro que esse poder monetário estadunidense se enfraquece em conformidade aos outros aspectos que trataremos. Um ponto colateral chave foi que esse poder monetário e de produção de déficits fiscais e comerciais também encadeou uma crescente desindustrialização nos EUA, algo que voltaremos depois.

(ii) Nenhuma outra potência militar rival. Esse ponto comparece com uma sombra pós-guerra do Vietnam e teve vários episódios críticos. O principal foi a tentativa malsucedida de desmantelamento do Exército russo, algo que levou já em 2007 há uma forte reação do Urso euroasiático com sua intervenção no conflito da Síria e, posteriormente, a retomada da Crimeia. Em 2018 os russos revelam ter domínio tecnológico de mísseis hipersônicos com tecnologia superior aos EUA e OTAN.[v]

A capacidade interventora militar dos EUA pressiona seu orçamento fortemente, sendo uma taxa média superior a 5% do PIB, em parte financiado com dívida pública o que estabelece os contornos da crise fiscal. Dificilmente uma potência imperial se mantém durante muito tempo com gastos de guerra tão elevados, por mais que uma parte deste financiamento venha de transferências da periferia capitalista para o centro.

(iii) Controle sobre as estruturas de comércio mundial. O centro do financiamento estadunidense, além do primeiro ponto já tratado, foi seu controle sobre a estrutura de comércio mundial que envolvia dois aspectos interligados: o controle sobre as instituições multilaterais (OMC, Banco Mundial e FMI) e, também, dos mecanismos de imposição e controle das taxas de juros de financiamento mundial. Algo importante e ilustrativo foi o “choque Volker” que elevou fortemente as taxas de juros e refez os fluxos de empréstimos rumo ao centro, aliado a quebra financeira da periferia. Essa arquitetura não consegue mais se manter e o principal motivo é a ascensão da China e do bloco eurasiano.

(iv) Globalização reprodutiva do capital. As alterações ainda nos anos 1980 e 1990 foram no sentido de uma corrida por “menores salários”. A lógica do capital era e é por uma taxa de exploração maior e estímulo à elevação da taxa de lucro, uma das consequências foi o “outsourcing global” e uma descentralização industrial principalmente rumo à Ásia.

A China realiza uma estratégia diferenciada, primeiramente capta os referentes fluxos industriais, estabelecendo grandes plataformas/cidades de produção exportadora para o centro capitalista e, ao mesmo tempo, implementa uma planejada e acurada estratégia tecnológica de “catching up“, com enorme sucesso na utilização de políticas fiscais expansionistas, ao lado de uma adoção somente cosmética da fórmula de valorização cambial e restrição monetária do “Consenso de Washington”.

O resultado foram taxas de crescimento econômico acima de 10% na média para quase três décadas (1980/2010), somente se atenuando, para taxas médias em torno de 5% a.a. no período 2010/2020. Como resultado disso estava dado o estabelecimento de uma grande frente de disputa internacional entre o imperialismo estadunidense e um novo e gigantesco “player” mundial.[vi]

(v) Livre fluxo financeiro. O livre fluxo financeiro visava principalmente a periferia do sistema, sendo o Brasil, por exemplo, um desses portos centrais para especulação e ganho rentista. Novamente neste caso a China não caiu na cantilena e o resultado dos controles que o Estado impôs no caso do país asiático foi o fortalecimento de Bancos locais e enorme capacidade de reinvestimento produtivo, o que levou a China a se tornar a grande base industrial do planeta e estabelecer um plano de globalização própria, a chamada “Nova Rota da Seda”.

(vi) Estado mínimo social. A figura de um Estado sem intervenção social foi uma das resultantes da dupla ideológica central do neoliberalismo: Hayek e Friedman. O problema conformado desde então foi a elevação da desigualdade social e enorme concentração de renda, uma das consequências, somada a desindustrialização, foi o reforço do discurso ideológico contra os migrantes, elevação da xenofobia e uso destas falácias ideológicas pelo neoliberalismo e pelo fascismo.

Três consequências deste quadro são resultantes: (a) a confirmação do declínio do dólar e da crescente crise fiscal dos EUA; (b) a emergência de um superbloco alternativo: tanto militar (Rússia), quanto comercialmente (China), quanto tecnológico (Rússia e China) e; (c) o fortalecimento do discurso xenófobo no interior dos EUA e na Europa.

O labirinto

Nos últimos dez anos os EUA entraram na sua mais profunda crise institucional. Episódios ainda do governo Obama já marcavam as dificuldades da democracia liberal de dois partidos, um desses episódios foi a enorme dificuldade de votar o orçamento requerido pelo executivo, algo que fez com que os títulos estadunidenses fossem questionados impondo grave risco ao regime fiscal do Império.

A institucionalidade liberal estadunidense foi firmada ainda logo após a guerra de secessão (1860/1865), apoiada numa forte interação de interesses dos quatro principais grupos da burguesia (industrial, agrária, comercial, financeira). A lógica bipartidária (por mais que existam outros partidos, porém de capacidade insignificante de influência) repousa num consenso em torno do Estado enquanto forma social de controle e gestão dos interesses comuns da burguesia, utilizando aqui a fórmula de Friedrich Engels.[vii]

Os fatores já expostos de reorganização do padrão econômico estadunidense tiveram severa influência na sua capacidade estatal de gestão das desigualdades sociais internas. Vale notar que o Estado norte-americano passa por três ordens de crise: a crise fiscal em função do padrão de gastos bélicos; a crise de representação política, com elevada perda de reconhecimento dos dois partidos do sistema e, por fim, uma crise de lideranças, havendo ausência de personalidades carismáticas e propositivas.

A crise fiscal remonta a década de 1970, sendo que o enfraquecimento da base produtiva (pagadora de impostos) e o fortalecimento do rentismo neoliberal (não pagadora de impostos) levou a uma crescente dependência do poder de senhoriagem do dólar e do sistema de endividamento não reprodutivo[viii]. Aspecto chave no atual ciclo refere-se a busca de ganhos e ativos via “acumulação por despossessão”, impondo novas rodadas de transferência de riquezas da periferia capitalista para o centro, sem nenhum tipo de projeto nacional possível em contraposição.

Justamente este quadro conjuntural estrutural que tornam democratas e republicanos muito semelhantes. A perspectiva de guerras continuadas (para garantir rentabilidade ao capital belicista), a pressão sobre os diversos países, até europeus, para garantir fluxos de transferência de renda para os EUA, inclusive com o uso de sabotagem terrorista (Nord Stream é um exemplo); expropriação ilegal de fundos de países classificados, pela burguesia estadunidense, de “países perigosos” (Cuba, Irã, Venezuela, Rússia, Coreia do Norte); uso espoliativo de sanções econômicas, no caso da Rússia, por exemplo, foram aplicadas as mais pesadas sanções econômicas e expropriação de fundos soberanos.[ix]

A esse conjunto de piratarias legitimadas pela ordem do sistema imperialista se somam a subordinação dependente de um conjunto variado de países que consensualmente suas burguesias transferem riqueza na forma de pagamento de juros, lucros expatriados e despossessão de ativos locais, isso tudo fruto de elevada exploração de suas populações. O caso brasileiro é um excelente exemplo disso, seja com os pagamentos extorsivos de juros da dívida pública (o segundo maior do mundo), seja privatizando e transferindo bens públicos para fundos internacionais (Black Rock, por exemplo). Assim, observamos que não há diferença sensível entre democratas e republicanos, mesmo considerando uma figura repulsiva como a de Donald Trump.

O império capitalista estadunidense se encontra em um labirinto, a exemplo do personagem de Garcia Márquez. O labirinto é tão complexo que parece prolongar o desfalecimento do seu prisioneiro, a consequência será uma longa agonia e riscos existenciais não somente para o povo estadunidense, mas para toda humanidade.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais (Paka-Tatu).

Referências

David Harvey. O Neoliberalimo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

Eric Hobsbawm. Era do Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das letras, 2012.

Ernest Mandel. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

Gabriel García Márquez. O general em seu Labirinto. Rio de Janeiro: Record, 2019.

Istvan Mészáros. Totalidade. In: BOTTOMORE, T. (editor). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

James O’Connor. The fiscal crisis of the State. Transation Publishers, New Jersey (2002).

José Luís Fiori (organizador). O poder americano. Petrópolis: Vozes, 2004.

José Raimundo B. Trindade. Crítica da Economia Política da Dívida Pública e do Sistema de Crédito: uma abordagem marxista. Curitiba: CRV, 2017.

Luiz Alberto Moniz Bandeira. Formação do Império americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Michael Moffitt. O dinheiro do mundo. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1985.

Paul Sweezy. Socialismo. In: BOTTOMORE, T. (editor). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

Yanis Varoufakis. O Minotauro Global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

Notas

[i] Segundo Paul Sweezy (1988, p. 319) a noção de “socialismo real” aparece inicialmente nas proposições de Rudolf Bahro, no livro “A alternativa pra uma crítica ao socialismo real”. Refere-se ao modelo que se estabelece na antiga URSS após a “nova política econômica” e se consolida no regime “stalinista”.

[ii] A noção de totalidade expressa uma condição histórica que define as diversas épocas sociais, considerando seus atores e conflitualidades centrais. Mészáros (1988, p. 381) define totalidade social na teoria marxista como “um complexo geral estruturado e historicamente determinado. Existe nas e através de mediações e transições múltiplas pelas quais suas partes específicas e complexas – isto é, as ‘totalidades parciais’- estão relacionadas entre si, numa série de inter-relações e determinações recíprocas que variam constantemente e se modificam”.

[iii] Excelentes relatos sobre os fatos acima vocês encontram em Hobsbawm (2012); Mandel (1985); Harvey (2008) e Varoufakis (2017).

[iv] Quatro boas indicações de leitura trata-se de Fiori (2004), Moffit (1985), Trindade (2017) e Varoufakis (2017).


[vi] Conferir para uma excelente análise não convencional do desempenho econômico chinês o site de Michel Roberts que recentemente publicou: https://thenextrecession.wordpress.com/2024/07/24/chinas-third-plenum/

[vii] Sobre a formação institucional e bélica estadunidense vale conferir Bandeira (2005).

[viii] Sobre o histórico da crise fiscal estadunidense o trabalho marxista clássico é de James O’Connor: “The fiscal crisis of the State”. Conferir o texto que publicamos neste site: https://aterraeredonda.com.br/rigidez-fiscal/



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