quinta-feira, 18 de julho de 2024

Organizações da América do Sul e da Europa alertam sobre danos combinados à saúde humana e ao meio ambiente

Fontes: Resumo Latino-Americano/Brasil por Fato


O glifosato é o principal princípio ativo dos agrotóxicos, amplamente utilizado em todo o mundo e o mais vendido no Brasil. A substância começou a ser produzida na década de 1970 para matar ervas daninhas, que são aquelas plantas que crescem espontaneamente nas lavouras e prejudicam a aparência de produtos cultivados, como soja e milho. Porém, posteriormente, estudos científicos apontaram as primeiras ligações entre a substância e a ocorrência de doenças graves em humanos, bem como danos ao meio ambiente.

O uso do glifosato só foi possível com o surgimento das sementes geneticamente modificadas, pois, ao bloquear a capacidade da planta de absorver nutrientes, a substância também destruiu as plantas que se pretendiam cultivar. Porém, com as mudanças nas sementes, passou a ser utilizado em larga escala.

A substância foi descoberta pelo químico suíço Henri Martin, da farmacêutica Cilag, em 1950, e comercializada como produto de limpeza de metais pela empresa americana Stauffer Chemical. Após 20 anos, o glifosato começou a ser utilizado em herbicidas produzidos pela Monsanto .

Somente em 1995, com a chegada ao Brasil das sementes transgênicas de soja, milho e algodão Roundup Ready, também da Monsanto, o agrotóxico passou a ser amplamente utilizado no país. Em 2000, quando expirou a patente do glifosato da Monsanto, o produto foi incorporado por diversas empresas nacionais em outras composições. Atualmente, mais de 100 agrotóxicos possuem glifosato em sua composição.

Foto: O herbicida Roundup tem como princípio ativo o glifosato; Nos Estados Unidos, trabalhador exposto ao produto desenvolveu câncer / Mike Mozart/Flickr

Hoje, o Roundup é referência em agrotóxicos à base de glifosato. A empresa bioquímica foi comprada em 2018 pela empresa alemã Bayer por 66 bilhões de dólares (o equivalente a 346 bilhões de reais, segundo o câmbio atual), tornando-se a maior empresa de agrotóxicos e sementes do mundo.

Danos à saúde e ao meio ambiente.

Se por um lado o uso do glifosato permitiu ao agronegócio aumentar a rentabilidade, por outro, passou a ser associado ao aparecimento de doenças como o câncer e aos danos ambientais.

Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (AIPC), organização ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou um relatório afirmando que o glifosato é um agente potencialmente cancerígeno , mais precisamente o linfoma não-Hodgkin. considerando a literatura existente.

No primeiro semestre deste ano, quatro organizações de países latino-americanos e uma da Alemanha uniram-se para denunciar a Bayer perante a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pelos impactos do pesticida glifosato no ambiente e na saúde humana.

Segundo as organizações, os impactos do glifosato violam os direitos humanos nos países do Cone Sul “O uso intensivo de agrotóxicos contamina rios, alimentos, animais e povos indígenas. Os pesticidas são usados ​​como arma química para confinar os povos indígenas a uma faixa de terra cada vez menor. Dependentes de rios e nascentes para ter acesso à água, os municípios relatam doenças frequentes, como vômitos, dores de cabeça, abortos espontâneos, dificuldade para respirar, entre outras, principalmente entre idosos e crianças”, relatam as organizações.

Afirmam ainda que há “o desaparecimento de espécies silvestres de pássaros, abelhas, borboletas, animais de caça e diminuição do número de peixes nos rios e perda da capacidade de produção de alimentos devido às águas e rios contaminados, gerando impactos na soberania alimentar” dessas pessoas. Existem áreas fumigadas com agrotóxicos perto de casas ou estradas indígenas.

Foto: Ação de organizações latino-americanas denuncia Bayer perante a OCDE pelos danos causados ​​pelo glifosato / Caroline Oliveira / Brasil de Fato

Jaqueline Andrade, advogada da Terra de Direito, uma das organizações que denunciaram a Bayer à OCDE, explica que no Brasil “o nível de contaminação do solo e da água e as intoxicações agudas e crônicas são latentes. Soma-se a isso a perda de biodiversidade, a perda de culturas de subsistência, como a mandioca, o milho e o feijão, porque os pesticidas afectam estas plantas, estas plantas murcham, as raízes apodrecem e os frutos não endurecem”, afirma.

Nas palavras do advogado, é também um estado de “insegurança alimentar” somado a questões de saúde. Há “casos relatados de coceira na pele, febre, vômito, dor de cabeça, que são sintomas clássicos de intoxicação aguda, além de muitos casos de depressão e suicídio. De acordo com os estudos que já realizamos em profundidade, os pesticidas desempenham um papel relevante na contribuição para as doenças mentais.”

“Também há registros de abortos espontâneos justamente por deriva de agrotóxicos. “Existem vários estudos que mostram que a presença de agrotóxicos nessas áreas representa um risco justamente porque há influência de doenças endócrinas e carcinogênicas, doenças que influenciam na contaminação, inclusive a do leite materno”.

No mesmo ano em que comprou a Monsanto, a Bayer foi condenada a pagar 289 milhões de dólares (1,1 mil milhões de reais) ao antigo defensor externo Dewayne Johnson, que sofria de cancro após exposição prolongada ao glifosato. No ano seguinte, ela foi condenada a pagar mais 80 milhões de dólares (315 milhões de reais), desta vez ao americano Edwin Hardeman, que também sofria de câncer, por não alertar sobre os riscos do produto.

Este ano, a empresa perdeu outro processo e teve que pagar US$ 2,25 milhões a John McKivison, 49, que foi diagnosticado com linfoma não-Hodgkin após anos de uso do Roundup em sua propriedade. O Tribunal dos EUA concluiu que o Roundup “é um produto defeituoso e cancerígeno, que a Monsanto foi negligente e que a Monsanto não alertou sobre os perigos”.

Após sucessivas condenações , o valor de mercado das ações da Bayer despencou. Em 2015 atingiu um preço médio de 140 euros por ação. Em 2018, ano em que comprou a Monsanto, caiu para 98,94 euros. Hoje, em 2024, diminuiu para 26,22 euros, segundo dados do Centro Europeu dos Direitos Constitucionais e Humanos.

Brasil

No Brasil, em dezembro de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu algumas restrições ao glifosato, mas manteve a autorização do produto. No ano anterior, em março de 2019, a agência publicou parecer afirmando que o glifosato “não apresenta características mutagênicas e cancerígenas” e que “não é um desregulador endócrino”, ou seja, não interfere na produção de hormônios. Em 2021, a agência realizou uma nova avaliação do agrotóxico e manteve sua posição.

Hoje, as regras para utilização de produtos que contenham glifosato dependem de cada marca. A bula da marca Glyphosate Nortox 480 NA, por exemplo, determina que há faixa de contenção de 30 metros de distância de corpos d'água sem aplicação do produto. Determina também que recipientes ou equipamentos de aplicação não sejam lavados em lagos, fontes, rios e outros corpos d’água.

O herbicida Glifosato Fersol 480 NA, por sua vez, também determina que o produto não deve ser aplicado em “áreas localizadas a distância inferior a 500 metros da zona urbana e de mananciais públicos e a 250 metros de mananciais isolados”. casas, grupos de animais e vegetação suscetível a danos”, segundo o folheto.

No entanto, não existe legislação nacional que regule a aplicação de pesticidas. Cada estado e município podem editar suas próprias regras. Por enquanto, por exemplo, apenas o Ceará proíbe a fumigação aérea com agrotóxicos, por meio da Lei Zé Maria do Tomé, em referência ao ativista ambiental assassinado em 2010, no interior do estado. A prática está proibida na União Europeia desde 2009.

A supervisão da aplicação do produto também é deficiente. Uma pesquisa de 2023 realizada pela Comissão Guarani Yvyrupá (CGY), que reúne coletivos do povo Guarani das regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra, mostrou que, com exceção de três aldeias localizadas na zona urbana, Todos os demais povos Avá-Guarani estão próximos às plantações e sofrem danos com o glifosato.

Em alguns casos, a distância entre as plantações e as casas dos indígenas é inferior a dois metros, bem abaixo do que determina a Portaria 129/2023, do governo do Paraná, que exige distância mínima de 50 metros das fontes . de água, centros populacionais, escolas, entre outros, para aplicação terrestre de agroquímicos. A pesquisa mostra ainda que as aldeias têm cerca de 60% de seus territórios apropriados para o agronegócio, sendo apenas 1,3% ocupados por fazendas e moradias indígenas e 12% por áreas florestais.

Larissa Bombardi, professora associada do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a regulamentação brasileira sobre o glifosato “não é suficiente”. O pesquisador cita os valores de referência toxicológica da Anvisa para o glifosato, que permitem um limite de agrotóxicos cinco mil vezes superior ao limite autorizado na União Europeia para água potável.

“Especificamente, a União Europeia autoriza um limite máximo para o glifosato e qualquer outra substância de 0,1 microgramas por litro de resíduo de glifosato, e o Brasil autoriza 500 microgramas por litro de resíduo de glifosato, o que é cinco mil vezes mais”, explica. “Obviamente, não é razoável pensarmos que um ser humano no Brasil possa suportar cinco mil vezes mais resíduos de glifosato no seu próprio corpo do que uma pessoa na União Europeia.”

O autor do atlas “Uma geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e suas relações com a União Europeia” afirma que, além da legislação insuficiente, houve retrocessos. “Não há evolução no cenário regulatório, porque existe um lobby enorme das indústrias agroquímicas em associação com os grandes proprietários rurais que obriga a legislação, além de não evoluir, a retroceder”, diz Bombardi.

Como exemplo, a professora cita a aprovação e sanção do Projeto de Lei (PL) 1.459/2022, em dezembro do ano passado, apelidado de “PL Veneno” por flexibilizar as leis que regulamentam o uso de agrotóxicos no país. Na prática, a nova legislação concentra toda a autoridade sobre os agrotóxicos no Ministério da Agricultura, historicamente controlado por ruralistas. Na verdade, o PL foi redigido pelo ex-senador Blairo Maggi, conhecido como o “rei da soja” no Mato Grosso.

O membro do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos chama a atenção para as isenções fiscais concedidas aos produtos. Hoje há redução de 60% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) e isenção total do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para determinados agrotóxicos.

Ambos os tributos deverão ser substituídos por novos tributos, de acordo com a reforma tributária aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro do ano passado. No entanto, já não se espera que os pesticidas sejam isentos ao abrigo das regras de reforma atualmente em debate. “Entendo que é necessário que isso faça parte da reforma tributária, ou seja, que eles deixem de usufruir dessa isenção. Acredito que essas isenções são imorais, frívolas e um atentado à saúde humana e ambiental”, argumenta o pesquisador.

Segundo Bombardi, “as indústrias operam com muita força, tanto no Brasil quanto no exterior. Também não temos boas notícias da Europa em termos de regulamentação. A Europa deu agora um passo atrás em relação ao Acordo Verde, cedendo à pressão dos movimentos agrícolas associados a estas indústrias agroquímicas, afastando-se da ideia de reduzir o uso de pesticidas em 50% nos próximos anos. “Também deu um passo atrás ao renovar a licença do glifosato.”

É nesse cenário que, no Brasil, a Bayer lidera o mercado de agrotóxicos, bem como de sementes geneticamente modificadas. Segundo relatório de 2022 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), o glifosato é o agrotóxico mais vendido em território brasileiro. Cerca de 800 mil ingredientes ativos de pesticidas foram vendidos somente naquele ano, incluindo 230.519 toneladas de glifosato. Só no Paraná, foram 31.270 toneladas do ativo.

Na mesma linha, dados da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida mostram que dos 2.007 novos agrotóxicos registrados no governo Bolsonaro, de 1º de janeiro de 2019 a 20 de novembro de 2022, 30% são proibidos na União Europeia. Outro dado utilizado na denúncia contra a Bayer é que em 2019 foram registradas 8.412 intoxicações por agrotóxicos, o que representa um aumento de 109% em relação a 2010. Entre crianças de zero a 14 anos, ocorreram 9.806 intoxicações entre 2010 e 2021, das quais dos quais 91 morreram.

A Europa e o conflito de interesses

Na União Europeia, em 2023, os 27 estados membros que compõem o bloco se reuniram para decidir sobre a proibição de pesticidas. Longe de um consenso, porém, a autorização para produção e comercialização de glifosato foi prorrogada por mais 10 anos, até dezembro de 2033. A autorização anterior, renovada em 2017 por cinco anos, expirou em dezembro de 2022. A licença, então, foi prorrogado por mais um ano, enquanto se aguarda uma análise científica e da União Europeia sobre sua proibição.

Naquela época, a Alemanha foi o país que apresentou o relatório para análise de renovação. Karen Friedrich, especialista em Toxicologia e Saúde Ambiental do Departamento de Imunologia da Fiocruz, afirma que tanto a agência reguladora alemã quanto a União Europeia deram maior peso aos estudos sobre os impactos do glifosato produzido pelas próprias empresas bioquímicas, ignorando as descobertas científicas de a Agência Internacional. Conselho de Pesquisa do Câncer.

“A Europa se renovou num contexto em que os agricultores europeus, principalmente na França, fizeram movimentos exigindo a flexibilização das leis ambientais na Europa justamente para serem mais competitivos no mercado internacional. Todo esse avanço de destruição ambiental e a linha ideológica da extrema direita avança para destruir a legislação”, afirma Friedrich.

“Na Europa, houve uma pressão muito forte sobre a agência reguladora alemã, primeiro, e depois sobre a agência reguladora europeia como um todo, para manter o registo do glifosato”, conclui o investigador.

Em suas palavras, as decisões não têm base científica. “As empresas têm espaço e voz nesses processos de tomada de decisão. Isso é permitido dentro do sistema capitalista. Mas não vemos o mesmo espaço, por exemplo, para organizações de trabalhadores e organizações de proteção ambiental”.

O caso alemão

Na Alemanha, uma das promessas do primeiro-ministro Olaf Scholz, do Partido Social Democrata (SPD), em dezembro de 2021 – ano em que foi eleito Chanceler da Alemanha – foi acabar com a produção e comercialização de glifosato. As organizações atribuem o atraso principalmente ao Partido Liberal, que juntamente com o Partido Verde forma a coligação governamental de centro-esquerda, por bloquear projetos que visam a proibição de pesticidas.

Christian Schliemann-Radbruch, do Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos, organização alemã que aderiu à denúncia contra a Bayer, explica que a Lei da Cadeia de Abastecimento, aprovada em 2021 e em vigor desde o ano passado, obriga as empresas alemãs a ter mais de mil funcionários será responsável pelo cumprimento dos direitos humanos nas cadeias de abastecimento globais. Isto envolve, por exemplo, a proteção contra o trabalho infantil, a saúde humana e o ambiente.

Apesar de estar em vigor, as organizações argumentam que as operações da Bayer, que conta com 100 mil funcionários, dos quais 22 mil só na Alemanha, não atendem aos critérios estabelecidos pela legislação.

Foto: Manifestação em frente à sede da Bayer no Brasil / Telesur

“Em termos de responsabilidade corporativa, não só da Bayer, mas também de outras grandes empresas que têm o mesmo negócio, espera-se que as empresas garantam que os direitos humanos não serão violados na sua cadeia de valor a jusante, ou seja, desde a produção até à alimentação. consumo. usuário final”, diz Schliemann-Radbruch.

O advogado explica que, embora as sementes transgênicas sejam proibidas na Alemanha, a tecnologia para esse tipo de produto vem de quatro empresas que têm maior poder de mercado. “Duas destas empresas, Bayer e Basf, são alemãs e produzem este tipo de sementes. Existem relações contratuais e com esta tecnologia as empresas têm influência sobre toda a cadeia de valor destes países”, afirma.

“Dado esse poder, há também uma responsabilidade pelos impactos. Com esta perspetiva, temos que voltar à Alemanha para analisar o que podemos fazer, porque a sede é aqui, o dinheiro que as empresas ganham vai para a Alemanha. Portanto, também tem a ver com a sociedade alemã. Se aqui é seguro, não é a mesma coisa quando exportamos e produzimos impactos negativos na saúde e outros impactos diretos em outros países.”

Outros países europeus têm algum nível de restrição ao produto químico, mas sem uma proibição total, uma vez que não há consenso sobre se os países membros da União Europeia podem legislar sobre o assunto, apesar das decisões do Comité Europeu. Em França, a sua utilização por particulares está proibida desde 2019, assim como nos Países Baixos e na Bélgica. Em Portugal, a proibição aplica-se a espaços públicos.

Edição: Nathallia Fonseca



 

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