domingo, 25 de agosto de 2024

Acerca do valor da vida humana: o mal da banalidade (2)



João Carlos Graça [*]

Recordemos alguns importantes tropos do discurso ocidental acerca da Rússia e dos russos, e mais genericamente da Ásia e dos asiáticos (as sociedades ditas “despóticas” ou “totalitárias”): a perenidade e a fundamental continuidade da sua maneira de ser, para além dos regimes políticos (sempre com a mesma essência, para além das possíveis mudanças cosméticas); o seu caráter animalesco, primitivo, e por isso avesso ao ataque na guerra, mas duro de roer em modo defensivo; a sua reprodução rápida e fácil, e por isso a rápida obsolescência do material humano, o valor quase nulo da vida da “pessoa média”; enfim, a fundamental impropriedade, portanto, de pensar na aparente bravura dos russos enquanto análoga à “verdadeira” coragem dos europeus propriamente ditos.

Os poucos eleitos e os muitos: Raskolnikov versus Harari

Parece-me compreensível que a sociedade que produziu “Ivan o imbecil”, de Leão Tolstoi, considere tudo isto um desafio muito relevante. Esta personagem, recordemo-lo, a certo trecho da narrativa deixa os invasores entrarem nas suas terras, até se fartarem e irem embora. Mas nunca os repeliu ele mesmo. A Rússia sofreu, depois da escrita desse conto, pelo menos duas enormes invasões. A “abordagem Ivan o imbecil”, chamemos-lhe assim, teve de ser abandonada de vez (embora se possa argumentar que o final da URSS corresponde, de facto, substancialmente à escolha da via sugerida muito antes pela personagem de Tolstoi – mas, de novo, essa seria uma outra conversa…). A moral cristã de “dar a outra face” e praticar consistentemente a “não-violência” é talvez impecável em si mesma – mas em termos politicamente práticos é insustentável. A Rússia de oitocentos produziu uma outra importante figura literária, o famoso Rodion Romanovitch Raskolnikov, de Fiodor Dostoievski, cujo problema central pode ser enunciado sinteticamente assim:   será legítimo sacrificar um em prol dos muitos? A resposta (impecavelmente “cristã” e, de resto, também “kantiana”) é inequivocamente negativa. Aquele que se dispusesse a eliminar o tal obstáculo à felicidade dos muitos teria ele mesmo de se reclamar duma excecionalidade tal, que acabaria por se fazer equivaler moralmente ao alvo da sua fúria. Por conseguinte, nada feito. Esse não é o caminho certo, o qual só pode residir na profunda redenção moral de cada um e de todos.

Mas Dostoievski (e a fortiori Tolstoi), atrevo-me agora a sugerir, equivocava-se talvez no próprio enunciado do problema central; ou considerava apenas um dos lados do problema. Sacrificar um ou uns quantos happy few pelos muitos pode talvez ser o problema ocasional de revoluções. Mas sacrificar os muitos por um ou por uns poucos, isso sim, corresponde ao tradeoff da existência normal das sociedades, segundo vários outros filósofos sociais. Deveremos tirar algo aos poucos para o redistribuir pelos muitos, perguntava-se Malthus? E a resposta era, também aqui, um rotundo não. Se distribuíssemos mais pelos pobres com base no que tirássemos aos ricos, isso conduziria apenas a que houvesse mais pobres ainda, porque estes reproduzir-se-iam indefinidamente, como coelhos, fazendo o nível dos salários descer até que o seu rendimento per capita voltasse ao começo, ao mero nível de subsistência. Malthus, e ainda mais Nietzsche, invertem o problema de Dostoievski. Segundo o filósofo alemão:

“A corrupção, como expressão de uma ameaça de anarquia nos instintos pela qual está abalado o fundamento dos afetos a que se chama ‘vida’: a corrupção varia de maneira fundamental consoante a forma de vida em que se manifesta. Quando, por exemplo, uma aristocracia como a da França, no início da Revolução, deita fora, com um nojo sublime, os privilégios, e se sacrifica aos excessos do seu sentimento moral, isto é corrupção. Foi, no fundo, apenas o ato final daqueles séculos de corrupção permanente, graças à qual ela tinha cedido, passo a passo, os seus direitos senhoriais e se tinha reduzida a uma função da realeza (por fim até somente a um falso aparato, a uma pompa exterior). O essencial duma aristocracia boa e sã, porém, é ela não se sentir como função (seja do reino, seja da comunidade), mas como sentido e suprema justificação desta, — é ela aceitar, por isso, e com a consciência tranquila, o sacrifício de inúmeros homens que, por amor dela, têm de ser oprimidos e reduzidos a homens incompletos, a escravos, a instrumentos. A sua fé básica deve, precisamente, ser a de que a sociedade não devia existir por amor da sociedade, mas apenas como alicerces e andaimes sobre os quais um tipo de seres de ‘elite’ se consiga erguer até à sua missão superior e, também, a uma existência superior, em geral; comparável àquelas plantas trepadeiras ávidas do sol — em Java chamam-lhes ‘cipó matador’ — que envolvem com os seus braços um carvalho durante tanto tempo e tantas vezes até que, por fim, muito acima dele, mas nele apoiadas, possam alargar a sua copa em plena luz, patentear a sua felicidade”.
(Para além do Bem e do Mal, Lisboa, Guimarães Editores, 1974, pp. 192-3, tradução de Alfredo Margarido).

Pode ser argumentado que alguma teoria social mais recente, designadamente algumas das cogitações que tornaram famoso Yuval Harari, pelo menos parecem seguir o mesmo caminho trilhado por Nietzsche. Mas não é esse o ponto central do meu argumento. O que pretendo aqui destacar é que este mesmo esquema relacional elite-massa, referível a cada sociedade politicamente organizada, é também transponível (e usualmente aplicado) num sentido geográfico, recobrindo as relações entre a Europa (incluindo a sua extensão nos EUA, mas excluindo a Rússia) e o resto do mundo; ou, noutros termos, o Ocidente (e aquilo a que Domenico Losurdo chamou o seu “espaço sagrado”) e o Resto. Ao primeiro espaço referem-se as vidas que vale realmente a pena viver, os valores da personalidade e da individualidade, o qualitativo inefável, etc; ao Resto, tudo o que apela ao quantitativo e à ideia de vida enquanto algo indefinidamente replicável, meramente instrumental, rapidamente obsolescente e, em definitivo, descartável.

O soldado Ryan e o soldado Ivan

Regresso ao meu problema de partida. A contagem das vítimas de conflitos está inegavelmente dependente de muitíssimas circunstâncias. A Armênia terá direito a reclamar a posição de vítima coletiva dum genocídio? Isso depende, como é óbvio, daquilo que for reconhecido como tal, ou não, por Hollywood. Tal operação seria de todo impensável nos tempos soviéticos, bem entendido. Todavia, se os dirigentes de Ierevan continuarem a afastar-se de Moscovo e a aproximar-se de Bruxelas e Washington, é provável que sim; e obviamente ainda mais se, em movimento oposto, Ankara continuar a afastar-se destes e a aproximar-se dos BRICS. Mas devo dizer que duvido muito que alguma vez o país da Transcaucásia venha a dispor dum ascendente moral comparável ao de Israel. O mesmo se aplica também ao holocausto fake que é o chamado “Holodomor”, já acarinhado por Hollywood e pelo mainstream das academias ocidentais em nome da “solidariedade com a Ucrânia”, apesar de repetida e contundentemente denunciado como impostura. (Quanto a isso, ver Douglas Tottle).

Mais importante, porém, é compreender que este “campeonato de falhados” – que num certo sentido é sempre a busca do “holocausto privado” por parte de cada grupo étnico – deixa de lado aquilo que é talvez o fundamental: a íntima relação quantidade-valor. Quantas foram as vítimas dos EUA na II Guerra Mundial: 420 mil, dos quais 407 mil militares – isso, evidentemente, deixando de lado o milhão e 100 mil filipinos mortos, muitos deles por “fogo amigo” dos próprios EUA, talvez o império mais bem escondido do mundo, se dermos crédito aos argumentos expostos por Daniel Immerwhar. Esse facto torna a participação dos EUA na II Guerra Mundial menos importante do que a soviética? Claro que não, bem pelo contrário! A vida do soldado Ryan, do famosíssimo filme de Steven Spielberg, era reconhecidamente preciosa por aquele ser o último duma blood line, ao passo que a do soldado Ivan, facilmente descartável por indefinidamente replicável, não o é e nunca o será. De resto, Hollywood mais rapidamente se emocionará ou verterá “lágrimas na chuva” por replicants-robots-escravos, como acontece no excelente Blade Runner de Ridley Scott, do que alguma vez aconteceria a respeito de russos-trabalhadores-eslavos.

Os círculos políticos norte-americanos encontraram, mais recentemente, forma de refinar e aperfeiçoar este dispositivo fundamental. Tal como Lindsey Graham, Mitch McConnell e muitos outros admitiram candidamente, o conflito na Ucrânia permite obter muitos russos mortos (o referido tema de “fazê-los sangrar…”) em troca não de poucos, mas de (imagine-se) zero norte-americanos regressados a casa em body bags. Os ucranianos, que morrem muito mais ainda do que os russos, aceitam fazer isso pelos EUA. Jacques Brel, na sua famosa canção, referia mordazmente que “Les toros s'ennuient le dimanche/ Quand il s'agit de mourir pour nous” (“Os touros aborrecem-se aos domingos / Quando se trata de morrer por nós”). Mas os súbditos da entidade política que passa por “Ucrânia” continuam a aceitar representar esse papel, para gáudio das populaças ocidentais, na psique das quais os media continuam a injetar não dois minutos, mas mais que duas horas diárias de ódio pela Rússia e pelos russos. The show must go on: se não os touros, então os ucranianos (que, finalmente, são apenas outros eslavos, mas úteis por se terem virado contra os seus irmãos do Norte) e os russos que continuem a “sangrar” tanto e por tanto tempo quanto possível.

Mas isso não é tudo, porque, como o mesmo Lindsay Graham também esclareceu, todo o dinheiro gasto pelo orçamento dos EUA nesta guerra volta aos EUA, através de encomendas militares e de favores vários em inúmeras outras negociatas. Gasta-se pouco dinheiro, que aliás regressa a casa, e consegue-se matar muitos russos, em troca de muito mais ucranianos ainda (que não importam), mas de zero norte-americanos mortos. Melhor do que esta outra “grande e maravilhosa guerra”, todavia esplendidamente pequena pelos seus custos, e mesmo a “custo zero” para os EUA, seria portanto impossível imaginar.

Valores, quantidades, elasticidades: o mal da banalidade

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-1935), enunciou há cerca de um século a relação entre o valor da vida humana e o número de vítimas duma forma talvez inultrapassável, na sua atitude provocatoriamente paradoxal: o valor de cada vida pode, de acordo com a sua linha de raciocínio (exposta, entendamo-nos, com algo mais do que um grão de sal) ser considerado função da quantidade, à maneira do dispositivo habitual da economics marginalista; isto é, o valor marginal é obviamente decrescente, cada caso significando menos que o anterior. Mas a isso acrescenta Campos que a “elasticidade” da relação do valor de cada vida relativamente à quantidade é tão grande, que não apenas o valor de cada vida adicional tende para zero, mas ele atinge realmente zero. E, se cada vida vale, a partir duma “ordem n” dada, rigorosamente zero, então, de forma retroativa, todas as vidas passam a valer zero, mesmo no seu conjunto, dado que a multiplicação de zero por um inteiro finito, ainda que muito elevado (ou justamente por isso), produz também um zero:   “E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente / Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece”.

Por conseguinte, as coisas (em particular as desgraças) não valem mais por acontecerem a muitos; pelo contrário, valem infinitamente e indizivelmente menos. Os reféns israelenses do Hamas, recordemo-lo, são frequentemente mencionados pelos seus nomes, e não é raro o recurso a fotos. Fala-se de cada um deles; não tanto de quantos são. As crianças palestinas, pelo contrário, são invariavelmente anônimas — para além de tenderem a ser também factualmente uma mera massa informe de carne e ossos, na qual nenhuma face é já identificável. Por violento e ofensivo que isso possa parecer da minha parte, na minha opinião erram aqueles que, pensando defender a causa dos palestinos, põem o foco no número de vítimas. Colocar a ênfase na quantidade e na enormidade do sucedido induz, ou reforça, uma certa variedade não de “banalidade do mal”, mas, talvez mais exatamente, de “mal da banalidade”. Os palestinos morrem em catadupas? Mas não é isso o que lhes acontece sempre? O que sempre aconteceu? Que novidade há realmente aí?

É impossível não recordar, quanto a isto, a beleza gelidamente “lúcida” das palavras de Álvaro de Campos:   “E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente / Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece”. Eis aí um poema que, em minha opinião, deveria ser meditado por todos os que hoje, um século volvido depois de estas linhas terem sido escritas, se consideram adversários das guerras e defensores da paz.

Poema de Álvaro de Campos: “Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa…

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida —
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos
tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: Sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: Sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

22/Agosto/2024

A primeira parte encontra-se aqui.

[*] Sociólogo.

Este artigo encontra-se em resistir.info




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