quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Metafísica dos costumes

Clarisa Cassiau, Inter-relação, 2017

Por ARTHUR SCHOPENHAUER*

Trecho do livro recém-editado

Da afirmação da vontade de viver

A afirmação da vontade é a própria vontade constante, não perturbada por nenhum conhecimento, pois preenche a vida do homem em geral. Assim, a vida do homem do ponto de vista da natureza: o real secundum naturam vivere. Consideraremos a natureza dessa vontade mais de perto, embora sempre apenas em geral. Visto que o corpo do homem já é a objetidade da vontade tal como aparece nesse estágio e nesse indivíduo; assim, sua vontade, que se desenvolve com o tempo, é, por assim dizer, apenas a paráfrase do corpo, a explicação do significado do todo e de suas partes; é outro modo de representação da mesma coisa em si, cuja aparência já é o corpo.

Portanto, em vez de afirmar a vontade, podemos dizer também a afirmação do corpo. O tema básico de todos os múltiplos atos da vontade é a satisfação de necessidades, que são inseparáveis da existência do corpo em sua saúde e, portanto, já têm sua expressão no próprio corpo: elas podem ser rastreadas até a preservação do indivíduo e a propagação do sexo. Mas indiretamente, os mais diversos motivos ganham poder sobre a vontade e produzem os mais diversos atos de vontade.

Cada um desses atos de vontade, no entanto, é apenas uma amostra, espécime, exemplo da vontade que aparece aqui em geral. Que tipo de amostra é esta, que forma o motivo tem e se comunica com ele, não é essencial; mas o que acontece aqui é apenas que há vontade e com que grau de veemência. A vontade só pode se tornar visível nos motivos, pois o olho só pode expressar seu poder de visão na luz.

O motivo em geral está diante da vontade como um Proteu multiforme: ele sempre promete satisfação completa, saciando a sede da vontade: mas, quando é alcançado, ele imediatamente volta a estar ali de outra forma, e nisto move novamente a vontade, sempre de acordo com o grau de sua veemência e sua relação com o conhecimento, ambos os quais, justamente por meio desses testes e exemplos, se evidenciam como caráter empírico.

Desde o início de sua consciência, o homem se vê carente, e, como regra, seu conhecimento permanece em constante relação com sua vontade. Ele primeiro procura conhecer completamente os objetos de sua vontade; depois, os meios para estes. Agora ele sabe o que tem que fazer e, como regra geral, não se esforça por outros conhecimentos. Ele age e impulsiona: a consciência de que ele está sempre trabalhando para o objetivo de sua vontade o mantém reto e ativo: seu pensamento diz respeito à escolha dos meios.

Tal é a vida de quase todos os homens: eles querem, sabem o que querem, lutam por isso, com tanto sucesso quanto os protegerá do desespero e tanto fracasso quanto os protegerá do tédio e de suas consequências. Daí surge então certa serenidade, pelo menos uma compostura: a riqueza e a pobreza não mudam realmente nada nisto: para os ricos, como os pobres, eles não desfrutam do que têm, já que isto, como já foi demonstrado, só tem um efeito negativo; mas o que eles esperam alcançar através de sua atividade.

É assim que eles avançam, com muita seriedade, mesmo com um ar importante: é também assim que as crianças brincam. – É sempre apenas uma exceção quando tal curso de vida sofre uma perturbação, na medida em que de um reconhecimento independente do serviço da vontade, que, portanto, é dirigido à essência do mundo em geral, surge ou o chamado estético à contemplação, ou mesmo o chamado ético à renúncia.

Dois caminhos que levam além da mera afirmação do corpo individual

Assim, a afirmação do corpo, ou da vontade de viver, é precisamente a continuação da atuação de acordo com motivos cujo tema básico são as necessidades que o próprio corpo já expressa através de sua natureza. O corpo dá as necessidades, mas também as forças para trazer sua satisfação. A simples afirmação do corpo, no verdadeiro sentido, consiste no fato de que o corpo é mantido pelo trabalho dos poderes desse organismo. – Mas raramente a vontade permanecerá nesses limites da mera afirmação do corpo.

Existem duas maneiras de querer que levam além disso: (i) a afirmação da vontade além do próprio corpo; (ii) a afirmação da própria vontade por meio da negação da vontade representada em outros indivíduos. – A primeira é a satisfação do instinto sexual e, portanto, a procriação de um novo indivíduo (illustratio). Consideremos ambos em detalhes. A primeira (satisfação do instinto sexual) ainda pertence a este capítulo da afirmação da vontade de viver ou do corpo: pois é meramente a afirmação além da aparência do próprio corpo. – O segundo, injustiça, consideraremos então em um capítulo separado, que conterá ao mesmo tempo as principais características da doutrina de direito. (loco)

Afirmação da vontade além do próprio corpo (procriação)

A simples afirmação da vontade, na medida em que aparece como um corpo vivo, consiste assim na preservação desse corpo, por meio dos poderes desse mesmo corpo, ou seja, a aquisição das necessidades prementes através do trabalho. Obviamente, este é um grau muito pequeno de afirmação da vontade. O alimento do corpo sempre satisfaz a vontade e é um prazer, ou seja, uma afirmação da vontade: mas esse prazer é totalmente superado pelo esforço e labuta do trabalho. Comer o seu pão com o suor de seu rosto.

O querer não vai além do que a preservação do corpo o torna necessário: consequentemente, o querer aqui só é provocado pela existência do corpo, é condicionado por ele e é limitado a ele: portanto, com a abolição da existência desse corpo, a vontade também seria abolida. Portanto, podemos supor que se em um indivíduo não é apenas a força, mas a própria vontade que não vai além da preservação do corpo por meio de seu trabalho, ou seja, o indivíduo limita voluntariamente seus propósitos à preservação do corpo por meio do trabalho dessa mesma coisa corpo, então com o corpo a vontade também cessa, então, através da morte do corpo, a vontade que apareceu nele também será extinta.

Como o homem pode vir a restringir voluntariamente sua vontade a tal ponto, examinaremos mais tarde. Mas agora falarei sobre ir além deste ponto. Da afirmação da vontade para além da existência do corpo. Pois esta é a gratificação do impulso sexual. Esse impulso já é dado pela existência e natureza do corpo. Mas sua satisfação não é o mero desejo de existir, a preservação de seu próprio corpo; mas um desejo de voluptuosidade, isto é, uma afirmação da vontade de viver em grau muito superior: a satisfação se mostra como uma potência superior do conforto do sentimento de vida; luxúria.

A afirmação da vontade não se limita aqui à conservação do corpo: antes se afirma a vontade de viver em geral; ele afirma além da existência do indivíduo, que ocupa tão pouco tempo: a vida como tal afirma-se em potência acrescida, para além da morte do próprio indivíduo num período de tempo completamente indefinido. O significado interno do ato de procriação é, portanto, a afirmação da vida como tal, e não apenas a afirmação do próprio indivíduo.

A natureza, sempre verdadeira e consistente, mesmo que aqui ingênua, expõe abertamente diante de nós o significado interior do ato de procriação, expressa-o vividamente. Nomeadamente assim: a própria consciência, a veemência do impulso, o prazer em sua satisfação, nos ensina que nesse ato a afirmação mais decisiva da vontade se expressa, puramente e sem nenhuma adição, por exemplo, a da negação de outros indivíduos (injustiça).

E agora a natureza apresenta vividamente a mesma coisa para a representação: o que assim acontece no ser em si mesmo, na vontade, ela mostra no mundo como representação, como a imagem daquele ser em si: ou seja, no tempo e na série causal, uma nova vida, um novo indivíduo aparece como consequência do ato de procriação: a repetição da aparência da vida. O ser gerado está diante do seu genitor; eles são diferentes na aparência, mas idênticos em si mesmos (como vontade) ou em ideia (como homem).

Em relação ao genitor, a procriação é apenas a expressão, o sintoma, de sua decidida afirmação da vontade de viver em geral: em relação ao gerado, ela não é a razão, a causa, da vontade que aparece nele, já que a vontade em si não conhece nem causa nem consequência; mas, como todas as causas, é apenas uma causa ocasional do aparecimento desta vontade neste momento e neste lugar. A mesma vontade como coisa em si, que se afirmou tão simplesmente no genitor, reapresenta-se no ser gerado como manifestação dessa vontade.

Como coisa em si, a vontade do genitor e do ser gerado não é diferente, pois apenas a aparência, e não a coisa em si, está sujeita ao principium individuationis. Através do ato de procriação, como a mais alta expressão da afirmação da vontade de viver, a vida é assim afirmada em geral: assim ela se apresenta como um novo indivíduo: todo o fenômeno começa de novo. A entrega do homem à natureza é assim consumada: é, por assim dizer, uma prescrição renovada à vida e à sua lei.

Com essa afirmação para além do próprio corpo, até a apresentação de um novo, também se afirma outra vez o sofrimento e a morte, como pertencentes à aparência da vida: mas existia no genitor a possibilidade de nada disso acontecer, nomeadamente através da renúncia, através da limitação voluntária de sua vontade para a preservação de seu próprio corpo e a renúncia à luxúria. Veremos ainda que isso seria a negação da vontade de vida e redenção do mundo.

Essa possibilidade de redenção existente (por meio do mais alto conhecimento, que está presente em todo ser humano) é dessa vez declarada infrutífera pelo ato de procriação: aqui está a razão profunda da vergonha sobre o ato de procriação. Essa vergonha na verdade expressa tudo o que tem sido dito até agora sobre a procriação. Por que uma vergonha profunda e, por assim dizer, uma consciência de culpa acompanham o ato de procriação? – Justamente por causa do que foi dito. É a vergonha sobre a renovada devoção à vida, sobre a afirmação dela além da própria existência.

Essa visão é apresentada miticamente no dogma da queda de Adão pelo pecado, apresentado pela doutrina cristã. Esse pecado original se refere obviamente à satisfação do desejo sexual. Todos nós devemos ser participantes dessa queda por meio do nascimento e, portanto, culpados de sofrimento e morte. Esse dogma cristão é profundo: vai além da maneira comum de ver as coisas segundo o princípio de razão e o principium individuationis: reconhece a ideia de homem, na qual todos somos compreendidos e cuja unidade se desfaz para a cognição de acordo com o princípio de razão em inumeráveis indivíduos, mas também lá é restaurado pelo vínculo da procriação, que mantém todos juntos.

Todo mundo já carrega uma culpa por sua existência, ou seja, a culpa dessa própria existência, porque ele mesmo é a vontade que aparece nessa existência. De acordo com isso, o dogma cristão vê cada indivíduo, por um lado, como idêntico a Adão, o símbolo da afirmação da vida e, nessa medida, o sofrimento e a morte como vítimas do pecado (pecado original): por outro lado, porque esse dogma compreende a ideia de humanidade, ele também vê cada indivíduo como idêntico ao Redentor, o símbolo da negação da vontade de viver e, nessa medida, como participante de seu autossacrifício, redimido e salvo dos laços do pecado e da morte, isto é, do mundo, por seu mérito (Rom., 5:12-21.) Perséfone, p. 474.

A satisfação da pulsão sexual é, portanto, a afirmação mais decisiva e mais forte da vontade de viver e, como tal, também é confirmada pelo fato de ser a meta última, a meta mais elevada da vida para os animais e também para as pessoas puramente sensuais. Sua primeira aspiração é a autopreservação; mas, assim que cuida disso, ele se esforça apenas para a procriação: ele não pode fazer mais como um ser puramente sensual.

Precisamente porque a essência interior da natureza é a própria vontade de viver, a natureza impele o homem, como o animal, a procriar com todas as suas forças. Tão logo o indivíduo tenha servido a isso, a natureza alcançou seu propósito com ele e agora está bastante indiferente à sua queda, já que, como vontade de vida em si, ela se preocupa apenas com a preservação da espécie, sendo o indivíduo nada para ela. – Porque no instinto sexual a essência interior da natureza, a vontade de viver, se expressa mais fortemente.

Os antigos poetas e filósofos – Hesíodo, Parmênides – disseram muito significativamente que Eros foi o primeiro, o criativo, o princípio do qual todas as coisas emergem (Arist., Metaph., I, 4.88). Como uma representação alegórica disto, vê-se, em obras antigas, Cupido, ou também Eros e Anteros, carregando o globo terrestre. Também a Maya dos hindus, cujo trabalho e tecido é todo o mundo ilusório, é um paralelo de Cupido. Os órgãos genitais, mais do que qualquer outro membro externo do corpo, servem apenas à vontade e não ao conhecimento (não ao arbítrio, mas à vontade cega – illustratio): de fato, a vontade se mostra aqui quase tão independente do conhecimento quanto nas partes que servem apenas à vida vegetativa, à reprodução, e nas quais a vontade funciona tão cegamente quanto na natureza sem conhecimento.

Porque a procriação é apenas a reprodução para um novo indivíduo: é, por assim dizer, a reprodução à segunda potência; como se a morte fosse apenas excreção à segunda potência. Assim, a luxúria é a potência superior do conforto do sentimento de vida que o mero alimento dá. De acordo com tudo isso, os órgãos genitais são o próprio foco da vontade e, portanto, o polo oposto do cérebro, que é o representante do conhecimento, o outro lado do mundo, o mundo como representação.

A pulsão de luxúria arde constantemente em nós porque é a expressão da base da nossa vida, do elemento radical da nossa existência, da vontade: tem de ser constantemente suprimida e reprimida pela imaginação se quisermos apenas permanecer no estado de consciência clara, isto é, do estado de conhecimento oposto ao querer: mas esse impulso aproveita todas as oportunidades para emergir: como um animal selvagem sempre se esforça para sair de sua jaula.

Os órgãos genitais são o princípio preservador da vida que assegura o tempo da vida sem fim: o conhecimento, por outro lado, dá a possibilidade da abolição do querer, da redenção pela liberdade, da aniquilação do mundo. Anteriormente, no final do capítulo 2, expliquei a afirmação da vontade de viver em geral e abstratamente, e disse: a vontade se afirma, isto é, em sua objetidade, isto é, se o mundo, ou a vida, é completa e claramente dada a sua própria natureza como uma representação, esse conhecimento de forma alguma impede o seu querer; mas precisamente esta vida assim reconhecida é também desejada como tal; antes, sem conhecimento, como um desejo cego, agora, com conhecimento, consciente e prudentemente.

Já lhes mostrei como se expressa a afirmação da vontade de viver, que modo de ação é sua expressão. Já lhes expliquei no capítulo 2 que a morte não arrebata a vida a esta afirmação, mas que a vida tem sempre a certeza da vontade de viver. Mostrei-lhes aí que relação tem a vontade na sua afirmação para com a morte, como a morte não a desafia, porque está aí como já pertencente à vida e incluída nela: o seu oposto, a procriação, equilibra-a completamente e garante-lhe e assegura, apesar da morte do indivíduo, a vontade de viver a vida por um tempo infinito.

É por isso que Shiva tem o lingam. Também expliquei a vocês como alguém que se posiciona com perfeita serenidade no ponto de vista da afirmação resoluta da vida espera a morte sem medo. Ele a enfrenta sem medo, mas também sem esperança. Pois sabe que a morte não lhe arrancará a vida e seus prazeres; mas também não pode arrancá-lo dos sofrimentos da vida. Portanto, aqui não há mais nada a dizer. Sem uma reflexão clara, a maioria das pessoas se posiciona sobre esse ponto de vista; sua vontade afirma continuamente a vida.

O mundo está ali como um espelho ou expressão dessa afirmação, com inúmeros indivíduos, em tempo e espaço sem fim e sofrimento sem fim, entre a procriação e a morte sem fim. – No entanto, não há mais nenhuma reclamação a ser feita sobre isto de qualquer lado. Pois a vontade realiza o grande jogo da tristeza e do prazer à sua própria custa, e é também seu próprio espectador. O mundo é exatamente assim porque a vontade, cuja aparência é o mundo, é tal porque assim ela o quer. A justificativa para o sofrimento é que a vontade também se afirma em resposta a essa aparência: e essa afirmação é justificada e equilibrada pelo fato de suportar o sofrimento.

Aqui já se nos abre um vislumbre da justiça eterna como um todo: mais adiante a reconheceremos mais de perto e mais claramente também em detalhes. Em relação com a afirmação da vontade de viver. Mostrei anteriormente como essa afirmação podia ser limitada à existência do próprio corpo, ou seja, que o possível para o homem não vai além do que a existência de seu corpo exige. – Depois disse que raramente fica nesse ponto, mas que o homem afirma a vontade de viver para além da existência do seu corpo de duas formas: nomeadamente, por um lado, através da satisfação da pulsão sexual, que é a afirmação da vontade de viver.

A segunda maneira pela qual o homem vai além da afirmação de seu próprio corpo é que sua afirmação de sua própria vontade se torna a negação da vontade que aparece em outros indivíduos: esta é a injustiça. Pois, ao querer seu próprio objetivo e perseguir seus próprios fins, o homem é confrontado com as vontades e os fins de outros indivíduos: então ele frequentemente procura destruir a vontade e a existência desses outros indivíduos para afirmar sua própria vontade sem impedimentos: sua afirmação de sua própria vontade torna-se uma negação da própria vontade de viver na medida em que esta é representada em outros indivíduos.

Esse processo é a injustiça, que vamos considerar agora em um capítulo separado. Da injustiça seu correlato, o direito, também se torna completamente compreensível: por isso o conteúdo desse capítulo será também a doutrina do direito. Por isso, agora lhes darei uma visão fácil e clara de toda a essência da doutrina do direito, apresentando-lhes todos os seus fundamentos e princípios essenciais. Ao tomar o caminho para esse fim, vou primeiro deixar claro para vocês a essência do egoísmo e deduzi-lo: pois ele é a fonte da luta dos indivíduos da qual surge a questão do justo e do injusto.

Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de O mundo como vontade e representação (Contraponto).

Referência

Arthur Schopenhauer. Metafísica dos costumes. Tradução: Eli Vagner Francisco Rodrigues. São Paulo, Unesp, 2024, 276 págs.


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