Marcelo Camargo/Agência Brasil
Marcio Sotelo Felippe
Uma pergunta ao Procurador Geral da República: o que vale mais, um conjunto de itens masculinos, caneta, anel, abotoadura e mais duas estatuetas, ou a vida de 400 mil pessoas? A julgar pelas manchetes dos últimos dias o escroque Jair Bolsonaro está perto de ser pego. No entanto o genocida Jair Bolsonaro vai se safando impune.
O Procurador Geral da República prepara denúncia pela apropriação das joias enquanto o relatório da CPI da Covid dorme nos escaninhos do seu gabinete. Paulo Gonet, no cargo há seis meses, segue omisso diante das acachapantes 1.200 páginas de provas dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo ex-presidente e seus cúmplices na pandemia. Bolsonaro desfila todo pimpão sua sordidez pelo país, mas a memória do extermínio de pelo menos 400 mil pessoas não vai se perder na esquina do tempo. Não esqueceremos.
É trivial o conceito jurídico de que fatos notórios independem de prova. Gonet, a rigor, nem precisaria das 1.200 páginas do relatório da CPI. O genocídio e seu móvel foram confessados por Jair Bolsonaro desde os primórdios da pandemia: o distanciamento e isolamento social prejudicariam as atividades econômicas, com o ônus político recaindo sobre seu governo (e seu então projeto de reeleição). Adotou a “tese” da chamada “imunidade de rebanho”, uma falácia científica que necessariamente tinha que levar à perda de milhares de vidas. A população deveria se contagiar para que se atingisse imunidade natural o mais rapidamente possível e, afinal, “todos vamos morrer”. Os que tinham, como ele (!), condição de “atleta” sentiriam no máximo uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”. Os que não eram atletas e os idosos, portanto, que morressem.
Mas não foi apenas esse o móvel do assassinato em massa perpetrado pelo governo Bolsonaro. O seu fascismo responde por outros motivos. Assumir, com tal naturalidade, que os idosos, ou mais frágeis de algum modo, seriam as vítimas da pandemia, poupando os “atletas”, escancarava a eugenia que faz parte da mentalidade fascista. Outro móvel consistiu na necessidade, típica de líderes fascistas, de cultivar uma base de apoio político com um discurso que apela para a irracionalidade da parcela fascista da sociedade, mantendo-a coesa. Para o que é preciso ter bandeiras, e, no caso, ainda, agregando aqueles que não compreendiam o alcance das medidas ou que viam seus interesses econômicos contrariados pelo distanciamento social e por isso mesquinhamente o combatiam.
Esse aspecto político-ideológico foi patente na última fase da pandemia quando, disponível a vacina, o prejuízo para a atividade econômica tenderia a desaparecer rapidamente. Era preciso, no entanto, cultivar o discurso negacionista, combater a vacina, adiá-la o quanto possível para manter o “cimento” ideológico que sustenta a tensão fascista no seio da sociedade.
Toda a política de Estado na pandemia foi “uma estratégia institucional de propagação do vírus”, como constatou a pesquisadora Daysi Ventura, operada mediante atos normativos da União, atos de obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia e propaganda contra a saúde pública. Que, nas palavras da pesquisadora, consistiu em um “discurso político que mobilizava argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da Covid-19”.
Ventura apresentou uma estimativa que cobre até junho de 2021: 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas até junho de 2021, isto é, quatro a cada cinco mortes, caso o Brasil tivesse mantido a média mundial de mortalidade por Covid-19. Impressionantemente, no segundo semestre de 2021 tínhamos 2,7 % da população mundial e 1/3 de todas as mortes.
A propaganda de remédios que desde logo se revelaram inócuos ou nocivos (chegando a provocar mortes pela ingestão) como hidoxicloroquina, cloroquina ivemerctina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina era parte da estratégia de contaminar rapidamente a população. O FDA, órgão sanitário estadunidense, havia alertado que a cloroquina e a hidroxicloroquina tinham efeitos cardíacos adversos e efeitos colaterais como lesões nos rins, problemas no fígado e morte. Combinadas com azitromicina havia duas vezes mais chances de sofrer um ataque cardíaco. Bolsonaro tratava o uso desses remédios ideologicamente: “quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”
No depoimento à CPI da Covid o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta afirmou que o governo federal tinha consciência de que estava induzindo o uso de medicamento sem evidência científica. Outro ex-ministro da Saúde, Nelson Tech, declarou que a responsabilidade pela persistência na indicação de tais remédios seria exclusivamente do Presidente Jair Bolsonaro, “o que motivou sua saída do Ministério, pois divergia do Presidente em relação à defesa da cloroquina.”
O Relatório da CPI concluiu que a aquisição de imunizantes não foi uma prioridade do Ministério da Saúde, que postergou ao máximo a conclusão das negociações”: “optou-se por priorizar a cura via medicamentos, e não vacinação, e expor a população ao vírus, para que fosse atingida mais rapidamente a imunidade de rebanho pela contaminação natural”.
Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, disse à CPI que o Brasil poderia ter sido o primeiro país do mundo a começar a vacinação. Em julho de 2020 o Instituto Butantan fez uma oferta de 60 milhões de doses a serem entregues no último trimestre de 2020, sem resposta. Em outubro desse mesmo ano nova oferta de 100 milhões de doses, sendo 45 milhões até dezembro de 2020, 15 milhões até o final de fevereiro e 40 milhões até maio. Bolsonaro interveio e desautorizou essa negociação: não seria comprada a “vacina chinesa”.
A vacinação no Brasil somente se iniciou em 17 de janeiro para os mais idosos, evoluindo lentamente para outras faixas etárias. No mundo começou em 8 de dezembro de 2020. A regulamentação pela ANVISA deu-se em dezembro de 2020. Em outros países já estava regulamentada desde meados de 2020. “Nas negociações da CoronaVac, foram dois meses de atraso e 45 milhões de doses perdidas em 2020. Nas negociações da Pfizer, foram três meses de atraso e 4,5 milhões de doses perdidas em dezembro de 2020 e no primeiro semestre de 2021 (1,5 milhões em dezembro de 2020 e 3 milhões no primeiro trimestre de 2021)”. Isto significou milhares de vidas perdidas ao longo de 2021.
O Relatório da CPI concluiu que o vírus foi “a arma mais mortífera da política anti-indigenista” do governo Bolsonaro. Houve mais vítimas em todas as faixas etárias do que no restante da população, com exceção da que vai de 30 a 39 anos. “O governo se recusou a fornecer insumos vitais, como a água, e usou a pouca assistência oferecida como álibi para tentar esconder as omissões deliberadas no seu dever de proteger. Sempre que foi instado, mesmo judicialmente, a criar planos robustos de proteção, manteve uma atitude ambígua e recalcitrante”.
Parecer da Comissão de Juristas constituída por Miguel Reale Jr., Sílvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich, incorporado ao Relatório da CPI da COVID, disse que “o ataque foi generalizado na medida em que atingiu vários grupos e comunidades indígenas” e implantado de forma sistemática, “obedecendo a um planejamento deliberado”.
A CPI apontou os crimes de tentativa de homicídio, perigo para a vida ou saúde de outrem, epidemia, infração de medida sanitária preventiva, omissão de notificação de doença, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, falsidade ideológica, uso de documento falso, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa, usurpação de função pública, tráfico de influência, corrupção ativa, fraude em licitação ou contrato, fraude processual, crime de organização criminosa e crime contra humanidade, nos termos do Estatuto de Roma, art. 7º, 1, k., que rege o Tribunal Penal Internacional. Crimes contra a humanidade não podem ser anistiados e não prescrevem.
O fascismo mata. A História mostra que segundo a ideologia fascista o Estado está autorizado a aniquilar uma parte do povo. Judeus e comunistas na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini. Idosos, doentes ou “não atletas” no Brasil de Bolsonaro porque atrapalhavam o seu projeto fascista de poder. Denunciar o ladrão de joias mas ignorar o extermínio de 400 mil pessoas é vilipendiar os mortos, é contribuição à barbárie, é violar os mais triviais princípios civilizatórios.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP
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