Foto publicada pelo site CTXT
Relações sociais criadas nas últimas décadas remetem aos campos nazistas. Agora, explorados estão tão submetidos, material e psiquicamente, que a solidariedade torna-se quase impossível. Este inferno tragará até as classes médias do Ocidente
Por Franco ‘Bifo’ Berardi, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues
“Caliban: Você me ensinou a línguae meu benefício é que eu sei amaldiçoar.“A peste vermelha leva você por me ensinar sua língua.”Shakespeare: A Tempestade
Colonialismo histórico: extrativismo de recursos físicos
A história do colonialismo é uma história de depredação sistemática do território. O objeto da colonização são os locais físicos ricos em recursos de que o Ocidente colonialista necessitava para a sua acumulação. O outro objeto da colonização são as vidas de milhões de homens e mulheres explorados em condições de escravatura no território sujeito ao domínio colonial, ou deportados para o território da potência colonizadora.
Não é possível descrever a formação do sistema capitalista industrial na Europa sem ter em conta o fato de que este processo foi precedido e acompanhado pela subjugação violenta de territórios não europeus e pela exploração em condições de escravatura da força de trabalho subjugada em os países colonizados ou deportados para países dominantes. O modo de produção capitalista nunca poderia ter sido estabelecido sem extermínio, deportação e escravidão.
Não teria havido desenvolvimento capitalista na Inglaterra da era industrial se a Companhia das Índias Orientais não tivesse explorado os recursos e o trabalho dos povos do continente indiano e do Sul da Ásia, como relata William Dalrymple em The Anarchy, The relentless rise of the East India Company (2019).
Não teria havido desenvolvimento industrial em França sem a exploração violenta da África Ocidental e do Magreb, para não mencionar os outros territórios sujeitos ao colonialismo francês entre os séculos XIX e XX. Não teria havido desenvolvimento industrial do capitalismo estadunidense sem o genocídio dos povos nativos e sem a exploração escravista de dez milhões de africanos deportados entre os séculos XVII e XIX.
A Bélgica também construiu o seu desenvolvimento na colonização do território congolês, acompanhada por um genocídio de brutalidade inimaginável. Martin Meredith escreve a esse respeito:
“A fortuna do rei Leopoldo veio da borracha bruta. Com a invenção dos pneus, para bicicletas e depois para automóveis, por volta de 1890, a procura pela borracha cresceu enormemente. Utilizando um sistema de trabalho escravo, as empresas que detinham concessões e partilhavam os seus lucros com Leopoldo saquearam das florestas equatoriais do Congo toda a borracha que puderam encontrar, impondo cotas de produção aos aldeões e fazendo reféns quando necessário. Aqueles que não cumpriram as suas cotas eram chicoteados, presos e até mutilados, cortando-lhes as mãos. Milhares de pessoas morreram resistindo ao regime da borracha de Leopoldo. Muitos mais tiveram que abandonar as suas aldeias…” (Martin Meredith: The State of Africa, Simon & Schuster, 2005, p. 96).
Muitos autores contemporâneos insistem nesta prioridade lógica e cronológica do colonialismo sobre o capitalismo.
“A era das conquistas militares precedeu em séculos o surgimento do capitalismo. Foram precisamente estas conquistas e os sistemas imperiais que delas derivaram que promoveram a ascensão imparável do capitalismo” (Amitav Gosh: La maldición de la nuez moscada, p. 129).
E segundo Cedric Robinson: “A relação entre o trabalho escravo, o tráfico de escravos e a formação das primeiras economias capitalistas é evidente” ( Marxismo Negro ).
Poucos, porém, observaram como as técnicas utilizadas pelos países liberais para subjugar os povos do Sul global são exatamente as mesmas utilizadas pelo nazismo de Hitler nas décadas de 1930 e 1940, com a única diferença de que Hitler usou técnicas de extermínio contra a população europeia, e contra os judeus que eram parte integrante da população europeia.
Um desses poucos é, surpreendentemente, o ex-secretário de Estado dos EUA Zbigniew Brzeziński que, num artigo de 2016 intitulado Rumo a um realinhamento global, teve a honestidade intelectual de escrever: “Massacres periódicos deram origem, nos últimos séculos, a extermínios comparáveis aos dos nazistas durante a Segunda Guerra Guerra Mundial”. O artigo de Brzezinski conclui com estas palavras: “Tão impressionante quanto a escala destas atrocidades é a rapidez com que o Ocidente as esquece.”
A memória histórica é muito seletiva quando se trata dos crimes da civilização branca. Em particular, a memória do extermínio das populações não europeias não recebe atençãe não faz parte da memória coletiva, enquanto um culto obrigatório é dedicado à Shoah em todos os países ocidentais.
A civilização branca considera Hitler como o Mal Absoluto, enquanto os britânicos Warren Hastings e Cecil Rhodes, o alemão Lothar von Trotha, exterminador do povo Herrero, ou o rei Leopoldo II da Bélgica são esquecidos, se não perdoados, pela memória branca.
Como o general Rodolfo Graziani, torturador da Líbia e da Etiópia, que foi gravemente ferido num ataque em Adis Abeba, mas infelizmente salvou a sua vida, e que depois da guerra foi perdoado pelo governo italiano para que pudesse tornar-se presidente honorário do Movimento Social Italiano, o partido dos assassinos que agora governa novamente em Roma.
Exterminaram populações inteiras para impor o domínio econômico da Grã-Bretanha, Bélgica, Alemanha ou França, para não mencionar a Itália. Porém, não são lembrados, pois só Hitler merece ser execrado para sempre, já que suas vítimas não tinham pele negra.
Quanto aos exterminadores dos povos das pradarias norte-americanas, são mesmo objeto de um culto heróico que Hollywood decidiu celebrar.
A colonização agiu de forma irreversível não só a nível material, mas também a nível social e psicológico. Contudo, o principal legado do colonialismo é a pobreza endêmica de áreas geográficas que foram saqueadas e devastadas a tal ponto que não conseguem escapar à sua condição de dependência. A devastação ecológica de muitas áreas africanas e asiáticas empurra hoje milhões de pessoas à procura refúgio através da emigração. Depois, encontram a nova face do racismo branco: a rejeição, ou uma nova escravatura, como ocorre na produção agrícola ou no setor da construção e logística em países europeus.
Dado que o processo de descolonização não conseguiu transformar a soberania política em autonomia econômica, cultural e militar, o colonialismo surge no novo século com novas técnicas e modalidades, essencialmente desterritorializadas, embora as formas territoriais do colonialismo não sejam anuladas pela soberania formal dos que desfrutam (por assim dizer) dos países do Sul global.
Com o termo hipercolonialismo refiro-me precisamente a estas novas técnicas, que não suprimem as antigas baseadas no extrativismo e no roubo (de petróleo ou de materiais essenciais para a indústria eletrônica, como o coltan [de onde se extrai o nióbio e o tântalo]), mas antes dão origem a uma nova forma de extrativismo que tem a rede digital como meio e como objeto tanto os recursos físicos da força de trabalho capturada digitalmente quanto os recursos mentais dos trabalhadores que permanecem no Sul global, mas produzem valor de forma desterritorializada, fragmentada e tecnicamente coordenada.
Hipercolonialismo: extrativismo de recursos mentais
Desde que o capitalismo global foi desterritorializado através das redes digitais e da financeirização, a relação entre o Norte e o Sul globais entrou numa fase de hipercolonização.
A extração de valor do Sul global ocorre em parte na esfera semiótica: captura digital de mão de obra muito barata, escravatura digital e criação de um circuito de trabalho escravo em setores como a logística e a agricultura. Estes são alguns dos modos de exploração hipercolonial integrados no circuito do Semiocapital.
A escravatura – que há muito consideramos um fenômeno pré-capitalista e que foi uma função indispensável da acumulação original de capital – reaparece hoje de forma generalizada e onipresente graças à penetração do comando digital e da coordenação desterritorializada. A linha de montagem do trabalho foi reestruturada de forma geograficamente deslocalizada: os trabalhadores que dirigem a rede global vivem em locais a milhares de quilómetros de distância, pelo que não conseguem lançar um processo de organização e autonomia.
A formação de plataformas digitais lançou sujeitos produtivos que não existiam antes da década de 1980: uma força de trabalho digital que não consegue se reconhecer como sujeito social devido à sua composição interna.
Este capitalismo de plataforma funciona em dois níveis: uma minoria da força de trabalho dedica-se à concepção e comercialização de produtos imateriais. Cobram salários elevados e se identificam com a empresa e com os valores liberais. Por outro lado, um grande número de trabalhadores geograficamente dispersos dedica-se a tarefas de manutenção, controle, etiquetagem, limpeza, etc. Trabalham online por salários baixíssimos e não possuem nenhum tipo de representação sindical ou política. No mínimo, não podem sequer ser considerados trabalhadores, porque estas formas de exploração não são de forma alguma reconhecidas e os seus escassos salários são pagos de forma invisível, através da rede celular. No entanto, as condições de trabalho são geralmente brutais, sem horários ou direitos de qualquer tipo.
O filme The Cleaners (2018), de Hans Block e Moritz Riesewick, narra as condições de exploração e esgotamento físico e psicológico a que está submetida esta massa de semitrabalhadores precários, recrutados online segundo o princípio da plataforma Mechanical Turk, criadas e gerida pela Amazon.
Entre os anos 1990 e a primeira década do novo século, formou-se esta nova força de trabalho digital, operando em condições que tornam quase impossíveis a autonomia e a solidariedade.
Houve tentativas isoladas de trabalhadores digitais de se organizarem em sindicatos ou de contestarem as decisões das suas empresas. Penso, por exemplo, na revolta de oito mil trabalhadores do Google contra a subordinação ao sistema militar.
Estas primeiras demonstrações de solidariedade ocorreram, no entanto, onde a força de trabalho digital está reunida em grande número e recebe salários elevados. Mas, em geral, o trabalho em rede parece não regulamentado, porque é precário, descentralizado e porque, em grande medida, ocorre em condições de escravidão.
No livro Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi escreve que quando foi internado no campo de extermínio “ele esperava pelo menos a solidariedade entre os companheiros de sofrimento”, mas depois teve que reconhecer que os internados eram “mil mônadas seladas, entre as que há uma luta desesperada, oculta e contínua.” Esta é a “zona cinzenta” onde a rede de relações humanas não se reduz a vítimas e perseguidores, porque o inimigo estava por perto, mas também por dentro.
Em condições de extrema violência e terror permanente, cada indivíduo se vê forçado a pensar constantemente na sua própria sobrevivência e é incapaz de criar laços de solidariedade com outras pessoas exploradas. Tal como nos campos de extermínio, como nas plantações de algodão dos estados escravistas da Terra da Liberdade, também no circuito escravista imaterial e material que a globalização digital contribuiu para criar, as condições de solidariedade parecem estar banidas.
É o que eu chamaria de Hipercolonialismo, função dependente do Semiocapitalismo: extração violenta de recursos mentais e de tempo de atenção em condições de desterritorialização.
Hipercolonialismo e migração. O genocídio que vem
Mas o Hipercolonialismo não é apenas a extração do tempo mental, mas também o controle violento dos fluxos migratórios resultantes da circulação ilimitada de fluxos de informação.
Dado que o Semiocapitalismo criou as condições para a circulação global da informação, em territórios distantes das metrópoles, pode-se receber toda a informação necessária para se sentir parte do ciclo de consumo e do próprio ciclo de produção.
Primeiro se recebe a publicidade, depois um acúmulo ingente de imagens e palavras que buscam convencer todo ser humano da superioridade da civilização branca, da extraordinária experiência que representa a liberdade de consumo e da facilidade com que todo ser humano pode acessar o universo de bens e oportunidades.
Claro que tudo isto é falso, mas bilhões de jovens que não têm acesso ao paraíso publicitário aspiram a colher os seus frutos. Ao mesmo tempo, as condições de vida nos territórios do Sul global tornaram-se cada vez mais intoleráveis, porque estão efetivamente piorando com as mudanças climáticas, mas também porque enfrentam inevitavelmente as oportunidades ilusórias que o ciclo imaginário projeta na mente colectiva.
Assim, por necessidade e desejo, uma massa crescente de pessoas, especialmente jovens, desloca-se fisicamente em direção ao Ocidente, que reage a este cerco com medo, agressão e racismo. Por um lado, a infomáquina envia mensagens sedutoras e chama ao centro, de onde emanam fluxos de atração. Por outro lado, porém, aqueles que acreditam nisso e se aproximam da fonte da ilusão acabam em um processo massacrante.
A população do Norte global, cada vez mais idosa, pouco prolífica, economicamente em declínio e culturalmente deprimida, vê as massas migrantes como um perigo. Temem que os pobres da terra levem a sua miséria às metrópoles ricas. Eles são apresentados como a causa dos infortúnios sofridos pela minoria privilegiada: uma classe de políticos especializados em semear o ódio racial ilude os velhos brancos, fazendo-os acreditar que se alguém pudesse acabar com aquela perturbadora massa de jovens que pressionam as portas da fortaleza, se alguém pudesse eliminá-los, destruí-los, aniquilá-los, então os bons tempos voltariam, os Estados Unidos seriam grande novamente e a moribunda pátria branca recuperaria a sua juventude.
Na última década, a linha que divide o Norte do Sul, a linha que vai da fronteira entre o México e o Texas até ao Mar Mediterrâneo e às florestas da Europa Central e Oriental, se converteu numa zona onde uma guerra infame é travada: o coração turvo da guerra civil mundial. Uma guerra contra pessoas desarmadas, exauridas pela fome e pelo cansaço, atacadas por policiais armados, cães farejadores, fascistas sádicos e, sobretudo, pelas forças da natureza.
Apesar dos cintilantes anúncios de mercadorias que encorajam os idiotas consumistas, e apesar da propaganda dos porcos neoliberais, a lógica do Semiocapital funciona apenas de uma maneira: o Norte global infiltra-se no Sul através dos incontáveis tentáculos da rede: uma ferramenta para capturar fragmentos de trabalho desterritorializado.
Mas a penetração física do Sul, que pressiona para aceder a territórios onde o clima ainda é tolerável, onde há água, onde a guerra ainda não chegou com toda a sua força destrutiva, é repelida pela força e pelo genocídio. Uma parte significativa, senão majoritária, da população branca decidiu entrincheirar-se na fortaleza e utilizar todos os meios para repelir a onda migratória. Os colonialistas de ontem – aqueles que nos séculos passados atravessaram os mares para invadir os territórios-presas – clamam agora contra a invasão, porque milhões de pessoas estão pressionando as fronteiras da fortaleza.
Esta é a principal frente de guerra que se desenvolve desde o início do século e que se expande, assumindo por toda parte os contornos do extermínio. Não é a única frente de guerra: outra frente da caótica guerra mundial é a interbranca, que confronta a democracia liberal imperialista com a soberania autoritária fascista.
A desintegração do Ocidente, e em particular da União Europeia, como resultado da guerra interbranca, corre paralelamente à guerra genocida na fronteira: dois processos distintos entrelaçados no cenário da década de 1920.
Como sair vivo? Esta é a pergunta que todos os desertores se fazem.
Precisamos nos organizar para desertarmos juntos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12