Imagem: Şahin Sezer Dinçer
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
O sistema é caracterizado por crises periódicas, inovações disruptivas e mudanças rápidas, com padrões emergentes de crescimento e colapso. A estabilidade costuma ser uma exceção temporária, não uma regra
1.
Para realizar uma análise do sistema capitalista contemporâneo a partir dos princípios da complexidade, instabilidade e intersubjetividade, é necessário ir além dos modelos tradicionais lineares e reducionistas para incorporar uma abordagem mais dinâmica e interconectada. No contexto da nova ciência paradigmática, enfatiza-se a natureza emergente e multifacetada desse sistema complexo.
Metodologicamente, estruturarei a análise abaixo em três partes: elementos constituintes, interconexões e propósito do sistema capitalista.
Os elementos são os componentes individuais constituintes do sistema. No capitalismo contemporâneo, esses elementos incluem, entre outros: (i) empresas e corporações transnacionais: os principais agentes econômicos organizadores da produção e venda de bens e serviços, em escala nacional e internacional, coordenam grandes cadeias de suprimentos globais; (ii) trabalhadores e famílias consumidoras: atuam como mão de obra produtiva e consumidores de bens e serviços, influenciam o custo das empresas e a demanda agregada do mercado e acumulam sobra de renda para enriquecimento financeira.
(iii) Estados e governos: regulam o sistema, intervêm em crises, determinam políticas fiscais e monetárias, participam como grandes agentes econômicos via empresas estatais inclusive exportadoras e lançam títulos de dívida pública; (iv) bancos e demais instituições financeiras: destacadamente o mercado de ações de empresas transnacionais, são plataformas para a alocação de capital na economia mundial, a especulação a respeito dos valores de mercado dos diferentes ativos existentes e a acumulação de riqueza financeira de trabalhadores e capitalistas, integrando investidores institucionais como fundos de pensão, bancos de investimento internacional e fundos mútuos (hedge funds).
(v) Tecnologia e inovações digitais: motores de transformação produtiva via empreendimentos, redefinem relações de trabalho, consumo e comércio global; (vi) meio ambiente e recursos naturais: base material de onde são extraídos insumos para a produção, mas também um elemento natural sofredor das consequências danosas do sistema produtivo; (vii) instituições internacionais e organizações supranacionais: FMI, Banco Mundial, OMC, ONU etc. regulam a governança global e mediam conflitos econômicos; (viii) movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs): representam agentes de contestação e transformação social, reagindo a desigualdades ou injustiças geradas pelo sistema através de lutas identitárias.
Esses elementos são interdependentes. Seu comportamento sistêmico capitalista não pode ser compreendido isoladamente, pois estão em constante interação uns com os outros, gerando efeitos de feedback ou retroalimentação.
As interconexões são as relações dinâmicas entre os elementos do sistema. Produzem comportamentos emergentes e muitas vezes não lineares. As principais interconexões do capitalismo contemporâneo incluem: (a) fluxos de capital global: o capital flui livremente entre mercados, setores produtivos e países, movido por especulações sobre valores de mercado, políticas de investimento e diante crises econômicas. Decisões de investimento em um país hegemônico, como os EUA ou a China, têm impactos globais como a GCF 2008; (b) Cadeias Globais de Valor (CGV): produtos são produzidos em diversos países com economias de escala em sistemas de produção de seus componentes fragmentados, envolventes de mão de obra mais barata, tecnologia acessível e recursos naturais de diferentes partes do mundo mais acima da linha do Equador.
(c) Políticas públicas e regulação: governos locais influenciam o mercado através de regulações, políticas fiscais e monetárias. Em contrapartida, as corporações influenciam os governos por meio de lobby e financiamento de campanhas; (d) inovações tecnológicas e suas externalidades: a inovação tecnológica redefine as interações entre capital e trabalho (como automação, robotização e Inteligência artificial), alterando a distribuição de renda e o emprego, ao mesmo tempo sendo capaz de criar mercados e destruir setores econômicos obsoletos.
(e) Interdependência ambiental: a relação entre o sistema produtivo e o meio ambiente está conectada de forma crítica. A extração de recursos naturais gera externalidades (como mudança climática e perda de biodiversidade) e elas retroalimentam o sistema por meio de impactos sociais e econômicos globais; (f) desigualdade e conflito social: o sistema capitalista contemporâneo gera e sustenta desigualdades sociais e econômicas alimentadores de ciclos de conflito social, movimentos de resistência e políticas redistributivas, as quais, por sua vez, afetam as condições de estabilidade política e social do sistema.
2.
Essas interconexões no capitalismo contemporâneo são caracterizadas por feedback loops – ciclos de retroalimentação, onde a saída de um sistema é usada como entrada para operações futuras –, tanto positivos quanto negativos. Amplificam ou estabilizam certos comportamentos.
Por exemplo, a globalização aumenta a interdependência entre os países e amplifica as crises. Foram os casos da Grande Crise Financeira (GCF) de 2008 e do “pandemônio da pandemia” de 2020-2021 com choque comercial e inflacionário.
O propósito do sistema capitalista contemporâneo é visto, de maneira reducionista ou marxista, como apenas a maximização do lucro e da acumulação de capital. Entretanto, ao adotar uma visão mais complexa, entendemos esse propósito ser múltiplo, adaptativo e emergente. Eu ousaria dizer: ingovernável e/ou incontrolável.
O objetivo imediato das corporações transnacionais e dos participantes de mercados de ações, em bolsa de valores globais, é a acumulação persistente de capital por meio da exploração de recursos, trabalho e inovação tecnológica. Por isso, o capitalismo contemporâneo está continuamente em busca de novos mercados, recursos e mão de obra, para se expandir, sendo atraído por desregulamentação de fronteiras e normas em uma integração econômica global.
Parte do dinamismo do capitalismo está em sua capacidade de gerar inovações tecnológicas disruptivas. Reestruturam a economia e a sociedade, criando formas de produção automatizadas e consumo via comércio eletrônico, por exemplo.
Ele busca criar e atender à demanda por consumo das famílias. Por sua vez, a expansão de mercado alimenta novos ciclos de produção, inovação e acumulação.
Embora o sistema gere crises periódicas e instabilidade, de acordo com as oscilações entre os valores de ativos existentes e os custos de produção de ativos novos, ele também tem um propósito adaptativo de autossustentação. As crises são vistas como oportunidades para reestruturação e inovação dentro do sistema, sugerindo uma capacidade resiliente de adaptação.
O propósito do sistema é contestado por movimentos sociais e reage em re-evolução sistêmica sem comando central. Movimentos sociais, questões ambientais e debates sobre desigualdade estão reformulando os caminhos do capitalismo, porque forças internas e externas o pressionam para se adaptar a novas realidades sociais, políticas, culturais, demográficas e naturais.
Para seguir os princípios da complexidade, instabilidade e intersubjetividade, a análise desse sistema não deve assumir a hipótese de ele estar em busca de equilíbrio econômico e/ou possuir uma lógica determinista de progresso linear. Ao contrário do dito pela ortodoxia econômica ou a marxista, é necessário reconhecer ele estar transcendendo os pressupostos tradicionais.
O capitalismo contemporâneo é um sistema altamente interconectado, com múltiplos agentes, interesses e forças agindo de maneiras não lineares. Pequenas alterações, em um ponto do sistema (como políticas governamentais ou inovações tecnológicas), costumam ter grandes impactos globais e imprevisíveis.
O sistema é caracterizado por crises periódicas, inovações disruptivas e mudanças rápidas, com padrões emergentes de crescimento e colapso. A estabilidade costuma ser uma exceção temporária, não uma regra.
Ele é moldado por percepções, expectativas e decisões de diversos agentes com conflitos de interesses, incluindo governos, corporações, investidores institucionais, trabalhadores e consumidores. Os valores, ideologias e percepções de risco, por exemplo, influenciam o comportamento dos agentes, refletindo uma natureza intersubjetiva e adaptativa do sistema sem ser “economia de comando”.
Para uma intervenção eficaz no sistema capitalista contemporâneo, é essencial compreender ele ser complexo, adaptativo e mutável. A intervenção, mesmo local, deve ser pensada de maneira sistêmica, levando em conta as interconexões globais, a natureza emergente dos comportamentos e as dinâmicas de feedback geradoras de instabilidade.
Qualquer tentativa de intervenção ou regulação deve ser consciente das limitações da previsibilidade e do potencial de consequências não intencionais. Os agentes dentro do sistema, sejam governos, corporações ou movimentos sociais, atuam de maneira interdependente e com graus variados (e variáveis) de influência e poder.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb].Veja neste link todos artigos de
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