quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Estranha luta de classes nas eleições dos EUA

Ilustração: Lindsey Bailey/Axios. Fotoa: Andrew Caballero-Reynolds, Andrew Harnik via Getty Images

No coração de um sistema em crise, duas facções dominantes estão em choque. Uma é corporativa e “domesticada”; outra, mafiosa. Ambas praticam o rentismo, odeiam a democracia e querem a guerra. Roteiro para entender o que está em jogo

Por Chris Hedges, em seu blog | Tradução: Antonio Martins

A escolha nas eleições norte-americanas é entre o poder corporativo e o poder oligárquico. O poder corporativo precisa de estabilidade e de um governo tecnocrático. O poder oligárquico prospera no caos e, como diz Steve Bannon, na “desconstrução do Estado administrativo”. Nenhum dos dois é democrático. Ambos compraram a classe política, a academia e a imprensa. Ambos são formas de exploração que empobrecem e desempoderam a população. Ambos canalizam dinheiro para as mãos da classe bilionária. Ambos desmantelam regulamentações, destroem sindicatos, cortam serviços públicos em nome da austeridade, privatizam todos os aspectos da sociedade, desde a infraestrutura até as escolas, perpetuam guerras permanentes, incluindo o genocídio em Gaza, e neutralizam uma mídia que deveria, se não fosse controlada por corporações e ricos, investigar seu saque e corrupção. Ambas as formas de capitalismo dilaceram o país, mas o fazem com ferramentas diferentes e têm objetivos diferentes.

Kamala Harris, ungida pelos doadores mais ricos do Partido Democrata sem receber um único voto nas primárias, é a face do poder corporativo. Donald Trump é o mascote bufão dos oligarcas. Esta é a divisão dentro da classe dominante. É uma guerra civil interna ao capitalismo que se desenrola no palco político. O público é pouco mais do que um adereço em uma eleição onde nenhum dos partidos avançará os interesses ou protegerá os direitos das maiorias.

George Monbiot e Peter Hutchison, em seu livro Invisible Doctrine: The Secret History of Neoliberalism [“Doutrina invisível – A história secreta do neoliberalismo”, ainda sem tradução para o português”], referem-se ao poder corporativo como “capitalismo domesticado”. Os capitalistas domesticados precisam de políticas governamentais consistentes e de acordos comerciais sólidos porque fizeram investimentos que demoram às vezes anos para amadurecer. As indústrias de manufatura e agricultura são exemplos de “capitalismo domesticado”. Você pode ler minha entrevista com Monbiot aqui.

O capitalismo de máfias

Monbiot e Hutchison referem-se ao poder oligárquico como “capitalismo das máfias”1. Ele busca a erradicação total de todos os impedimentos à acumulação de lucros, incluindo regulamentações, leis e impostos. Ele gera lucro cobrando rentas, erguendo pedágios para cada serviço de que precisamos para sobreviver e coletando taxas exorbitantes.

Os ídolos políticos do capitalismo das máfias são os demagogos da extrema direita, incluindo Trump, Boris Johnson, Giorgia Meloni, Narendra Modi, Victor Orban e Marine Le Pen. Eles semeiam a dissensão promovendo ideias absurdas, como a teoria da “Grande Substituição”, e desmontando estruturas que proporcionam estabilidade, como a União Europeia. Isso gera incerteza, medo e insegurança. Aqueles que orquestram essa insegurança prometem que, se abrirmos mão de ainda mais direitos e liberdades civis, eles nos salvarão de inimigos fantasmas, como imigrantes, muçulmanos e outros grupos demonizados.

Os epicentros do capitalismo das máfias são as empresas de gestão de ativos [“private equity”]. Fundos como Blackstone, Carlyle, Apollo e Kohlberg Kravis Roberts compram e saqueiam empresas. Acumulam dívidas. Recusam-se a reinvestir. Reduzem drasticamente o quadro de funcionários. Levam intencionalmente as empresas à falência. O objetivo não é sustentar as companhias, mas depená-las como ativos para obter lucro de curto prazo. Os dirigentes dessas empresas, como Leon Black, Henry Kravis, Stephen Schwarzman e David Rubenstein, acumularam fortunas pessoais de bilhões de dólares.

O grupo de apoiadores de Trump no Vale do Silício, liderado por Elon Musk, foi descrito pelo The New York Times como “cansados dos democratas, dos reguladores, da estabilidade, de tudo isso. Eles passaram a optar, em vez disso, pelo caos desenfreado que gera fortunas, algo que conheciam do mundo das startups.” Eles planejavam “implantar dispositivos no cérebro das pessoas, substituir moedas nacionais por tokens digitais não regulamentados, [e] substituir generais por sistemas de inteligência artificial.”

O bilionário Peter Thiel, fundador do PayPal e apoiador de Trump, declarou guerra aos “impostos confiscatórios”. Ele financia um comitê de ação política [“PAC”, nos Estados Unidos] contra impostos e propõe a construção de nações flutuantes, que não imporiam tributos obrigatórios sobre a renda.

A bilionária israelense-americana Miriam Adelson, viúva do magnata dos cassinos Sheldon Adelson, com uma fortuna estimada em US$ 35 bilhões, doou US$ 100 milhões para a campanha de Trump. Embora Adelson, que nasceu e foi criada em Israel, seja uma fervorosa sionista, ela também faz parte do clube dos oligarcas que buscam reduzir impostos para os ricos, impostos que já foram cortados pelo Congresso ou diminuídos por meio de uma série de brechas legais.

O economista Adam Smith alertou que, a menos que a renda dos rentistas fosse fortemente tributada e reinvestida no sistema financeiro, ela seria autodestrutiva.

A destruição orquestrada pelas empresas de gestão de ativos e pelos oligarcas recai sobre os trabalhadores, que são forçados a entrar em uma economia de “bicos” e veem salários estáveis e benefícios serem erradicados. Isso também afeta os fundos de pensão, que são esgotados devido a taxas usurárias ou simplesmente abolidos. Afeta nossa saúde e segurança. Por exemplo: os residentes de asilos que pertencem a empresas de gestão de ativos, estão sujeitos a 10% mais mortes — sem mencionar as mensalidades mais altas — devido à escassez de pessoal e à redução no cumprimento dos padrões de cuidado.

As empresas de gestão da ativos são uma espécie invasora. Também são onipresentes. Adquirem instituições educacionais, empresas de serviços públicos e cadeias de varejo, ao mesmo tempo em que drenam centenas de bilhões em subsídios dos contribuintes, auxiliados por promotores, políticos e reguladores comprados. O que é particularmente revoltante é que muitas das indústrias tomadas por empresas de gestão de ativos — água, saneamento, redes elétricas, hospitais — foram pagas com fundos públicos. Elas canibalizam os países, deixando para trás de si indústrias fechadas e falidas.

Gretchen Morgenson e Joshua Rosner documentam como as empresas de private equity funcionam no livro “These are the Plunderers: How Private Equity Runs-and Wrecks-America, [“Os que pilham: Como a Private Equity governa e devasta os Estados Unidos”]

“Sempre endeusados pela imprensa financeira por seus acordos, e elogiados por suas doações ‘caritativas’, esses capitalistas sem freitos lançam campanhas de lobby caras para garantir seu próprio enriquecimento contínuo, por meio de leis fiscais favoráveis”, escrevem os autores.

“Doações generosas garantiram a eles posições de poder em conselhos de museus e think tanks. Publicaram livros sobre liderança exaltando ‘a importância da humildade e da humanidade’, no topo enquanto dizimam estes valores na base. Suas empresas organizam-se para que evitem pagar impostos sobre bilhões em ganhos, gerados por suas participações acionárias. E, claro, raramente mencionam que as empresas que possuem estão entre as maiores beneficiárias de investimentos governamentais em rodovias, ferrovias e educação básica, colhendo enormes benefícios de subsídios e políticas fiscais que lhes permitem pagar taxas substancialmente mais baixas sobre seus ganhos”, explicam o livro.

“Esses homens são os barões ladrões da era moderna dos Estados Unidos. Mas, ao contrário de muitos de seus predecessores do século XIX, que acumularam riquezas espantosas extraindo os recursos naturais de uma nação jovem, os barões de hoje extraem sua riqueza dos pobres e da classe média por meio de transações financeiras complexas.” Você pode ver minha entrevista com Morgenson aqui.

O capitalismo “domesticado”

Os capitalistas “domesticados” são representados por políticos como Joe Biden, Kamala Harris, Barack Obama, Keir Starmer e Emmanuel Macron. Mas o “capitalismo domesticado” não é menos destrutivo. Ele aprovou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), a maior traição à classe trabalhadora norte-americana desde o Ato Taft-Hartley de 1947, que impôs restrições debilitantes à organização sindical. Revogou a Lei Glass-Steagall, de controle sobre bancos (de 1933), que separava a banca comercial da banca de investimento. Desmantelar a barreira entre os bancos comerciais e de investimento levou ao colapso financeiro global em 2007 e 2008, provocando a falência de quase 500 bancos. Ele aprovou a eliminação da Doutrina do Tratamento Justo [Fairness Doctrine] pela Comissão Federal de Comunicações sob Ronald Reagan, bem como a Lei de Telecomunicações durante a presidência de Bill Clinton, permitindo que um punhado de corporações consolidasse o controle dos meios de comunicação. Destruiu o antigo sistema de bem-estar, do qual 70% dos beneficiários eram crianças. Dobrou a população carcerária dos EUA e militarizou a polícia. No processo de transferência de indústrias para países como Bangladesh, onde os trabalhadores labutam em condições desumanas, 30 milhões de norte-americanos foram submetidos a demissões em massa, segundo dados compilados pelo Labor Institute. Enquanto isso, acumularam-se déficits massivos — o déficit orçamentário dos EUA subiu para US$ 1,8 trilhão em 2024, com a dívida nacional total se aproximando de US$ 36 trilhões — e negligenciou-se nossa infraestrutura básica, incluindo redes elétricas, estradas, pontes e transporte público. No mesmo período, os EUA gastaram mais com seu exército do que todas as outras grandes potências da Terra juntas.

Essas duas formas são variantes de capitalismo totalitário, ou o que o filósofo político Sheldon Wolin chama de “totalitarismo invertido”. Em ambas as formas de capitalismo, os direitos democráticos são abolidos. O público está sob vigilância constante. Os sindicatos são desmantelados ou neutralizados. A mídia serve aos poderosos, e vozes dissidentes são silenciadas ou criminalizadas. Tudo é transformado em mercadoria, desde o mundo natural até nossos relacionamentos. Movimentos populares e de base são proibidos. O ecocídio continua. A política é uma farsa.

A servidão por dívidas e a estagnação salarial garantem o controle político e a concentração contínua da riqueza. Bancos e financiadores corporativos escravizam não apenas indivíduos endividados, mas também cidades, municípios, estados e o governo federal. O aumento das taxas de juros, aliado à queda das receitas públicas, especialmente por meio da tributação, é uma maneira de extrair os últimos vestígios de patrimônio dos cidadãos, bem como do Estado. Quando indivíduos, estados ou agências federais não conseguem pagar suas contas — e para muitos norte-americanos isso significa frequentemente contas médicas — os ativos são vendidos a corporações ou apreendidos. Terras públicas, propriedades e infraestrutura, juntamente com as aposentadorias, são privatizados. Os indivíduos são expulsos de suas casas e levados ao colapso financeiro e pessoal.

“O chefe da Goldman Sachs declarou que os trabalhadores da corporação são os mais produtivos do mundo”, disse o economista Michael Hudson, autor de Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy (“Matando o Hospedeiro: Como Parasitas Financeiros e Dívidas destroem a economia global”, ainda sem tradução em português). “É por isso que eles ganham tanto. O conceito de produtividade nos EUA é renda dividida por trabalho. Por isso, se você é da Goldman Sachs e paga a si mesmo 20 milhões de dólares por ano em salário e bônus, considera-se que você acescentou 20 milhões ao PIB, e isso é considerado enormemente produtivo. Estamos lidando com uma tautologia, com um raciocínio circular.”

“A questão é se a Goldman Sachs, Wall Street e as empresas farmacêuticas predatórias realmente adicionam ‘produto’ ou se estão apenas explorando outras pessoas”, continua Hudson. “É por isso que usei a palavra parasitismo no título do meu livro. As pessoas pensam em um parasita como algo que tira dinheiro, tira sangue de um hospedeiro ou recursos da economia. Mas, na natureza, é muito mais complicado. O parasita não pode simplesmente entrar e tirar algo. Primeiro, ele precisa anestesiar o hospedeiro. Ele tem uma enzima que faz com que o hospedeiro não perceba sua presença. Além disso, o parasita tem outra enzima que toma o controle do cérebro do hospedeiro. Este imagina que o parasita faz parte de seu próprio corpo – na verdade, parte de si mesmo e, portanto, deve ser protegido. Basicamente, é isso que Wall Street fez. Ela se retrata como parte da economia. Não como algo externo, mas como parte que está ajudando o corpo a crescer, e que, de fato, é responsável pela maior parte do crescimento. Mas, na verdade, é o parasita que está tomando o controle do hospedeiro.”

“O resultado é uma inversão da economia clássica”, diz Hudson. “Ela vira Adam Smith de cabeça para baixo. Afirma que o que os economistas clássicos disseram ser improdutivo – o parasitismo – na verdade é a economia real. E que os parasitas são o trabalho e a indústria.”

A weimarização da classe trabalhadora americana é intencional. Trata-se de criar um mundo de senhores e servos, de elites oligárquicas e corporativas empoderadas e uma sociedade desempoderada. E não é apenas nossa riqueza que nos é tirada. É nossa liberdade. O chamado mercado autorregulado, como escreve o economista Karl Polanyi em A Grande Transformação, sempre termina com o capitalismo mafioso e um sistema político mafioso. Um sistema de autorregulação, Polanyi alerta, leva à “demolição da sociedade.”

Se você votar em Kamala Harris ou Trump — eu não tenho intenção de votar em nenhum candidato que sustente o genocídio em Gaza — você estará votando numa forma de capitalismo predatório ou em outra. Todas as outras questões, desde o direito à posse de armas até o aborto, são tangenciais e usadas para distrair o público da guerra civil dentro do capitalismo. O pequeno círculo de poder que essas duas formas de capitalismo encarnam exclui o público. São clubes de elite – cujos membros muito ricos habitam cada um dos lados da cerca e, às vezes, transitam entre ambos. Mas são impenetráveis para outsiders.

A ironia é que a ganância desenfreada dos corporativos, os “capitalistas domesticados”, criou um pequeno número de bilionários que se tornaram sua nêmesis: os capitalistas de máfias. Se o saque não for interrompido, se não restaurarmos o controle sobre a economia e o sistema político por meio de movimentos populares, o capitalismo de máfias triunfará. Seus partidários consolidarão o neo-feudalismo, enquanto o público estará distraído e dividido pelas palhaçadas declowns assassinos como Trump.

Não vejo nada no horizonte que possa evitar esse destino.

Trump, por enquanto, é a figura de proa do capitalismo de máfias. Mas ele não o criou, não o controla e pode ser facilmente substituído. Kamala Harris, cujas divagações sem sentido podem fazer Biden parecer focado e coerente, é o figurino vazio e sem substância que os tecnocratas adoram.

Escolha seu veneno. Destruição pelo poder corporativo ou destruição pela oligarquia. O resultado final é o mesmo. Isso é o que os dois partidos dominantes nos EUA oferecem em novembro. Nada mais.

Nota:

1No original, “warlords capitalism”. Evitei adotar a tradução mais óbvia (“capitalismo dos senhores de guerra”) porque ela tende a associar apenas os partidários de Trump ao “partido da guerra” – ou seja, aos setores que têm interesse nas agressões militares dos EUA. Como o texto demonstra, tanto republicanos quanto democratas apoiam os conflitos em que Washington se envolve em todo o mundo. [Nota do tradutor]




 

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