domingo, 29 de dezembro de 2024

Folha empregou policiais e demitiu perseguidos políticos na ditadura

Ficha funcional informa que Rose Nogueira foi demitida por “abandono de emprego” quando estava presa | Crédito: Divulgação/UFRJ 

Antônio Aggio Junior, ligado ao Deops, comandou a Folha da Tarde e empregou inúmeros agentes da repressão; Rose Nogueira, por sua vez, foi demitida enquanto estava simultaneamente encarcerada e de licença maternidade

Léo Rodrigues, especial para a Ponte

A contratação de agentes da repressão como jornalistas foi uma prática comum no Grupo Folha durante a ditadura, segundo confirma pesquisa que investigou as relações entre a empresa e o regime militar. O estudo também cita violações trabalhistas, incluindo a demissão de profissionais que sofreram perseguição política no período.

A pesquisa foi conduzida por especialistas de diversas universidades. A coordenação foi da professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ana Paula Goulart, que é referência em estudos envolvendo mídia e memória social. O grupo foi selecionado em um dos editais abertos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) para investigar o envolvimento de diferentes empresas em violações durante a ditadura.

Os recursos que financiam essas pesquisas são provenientes de um acordo com a Volkswagen. Em 2020, a montadora admitiu sua cumplicidade na perseguição de seus trabalhadores durante o regime militar e pactuou com o MPF um conjunto de medidas para reparação de danos. Entre elas, foram destinados R$ 4,5 milhões para as pesquisas coordenadas pela Unifesp. Dentre as empresas investigadas, a Folha de S. Paulo é a única empresa de mídia. Além de mergulhar em acervos já existentes em busca de documentos vinculados ao assunto, os pesquisadores entrevistaram mais de 40 pessoas.

Segundo concluíram, o alinhamento ao regime ganhou contornos mais explícitos após o Ato Institucional número 5 (AI-5). Decretado no final de 1968, ele abriu caminho para que as violações de direitos se aprofundassem. No Grupo Folha, a autocensura teria sido adotada de forma sistemática a partir de então, através de um rígido controle interno. De acordo com os pesquisadores, o policial civil Luiz Carlos Rocha Pinto, contratado como jornalista na Agência Folha, atuava como interlocutor dos censores.

A Folha da Tarde, atualmente extinta, foi a publicação do Grupo Folha mais enfática na manifestação de apoio ao regime militar. Ela foi entregue ao comando de Antônio Aggio Junior, que anos antes ocupava um cargo na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e guardava ligações com o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), órgão envolvido na repressão. Segundo a pesquisa, foi sob a gestão de Aggio que o jornal empregou como jornalistas diversos policiais e agentes do regime.

Um inquérito produzido pelo Superior Tribunal Militar (STM) em 1973 e agregado ao estudo evidencia a jornada dupla de agentes do Deops. Nele, consta que o carcereiro Messias Ayrton Scatena era também jornalista do Última Hora, um dos periódicos do Grupo Folha. Ele foi investigado e detido pelos militares por supostamente vazar informações sobre as ações da polícia à sua amante na época, Helena Miranda de Figueiredo, jornalista da Folha de S. Paulo.

A pesquisa coordenada por Ana Paula Goulart teve o mérito de reunir nomes de diversos policiais empregados e descrever de forma mais detalhada como se davam essas contratações. Mas essa prática, comum não apenas na Folha da Tarde mas também em outros veículos do Grupo Folha, já foi citada em outros estudos anteriormente. No livro Cães de guarda: jornalistas e censores, publicado em 2004 como resultado da pesquisa de doutorado de Beatriz Kushnir na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), menciona-se que “existiram policiais que cumpriram expediente nas redações, narrando e assinando colunas e artigos”.

A própria Folha de S. Paulo assume a prática. Em junho do ano passado, quando tomou conhecimento de achados da pesquisa, o jornal publicou trechos de um memorial interno escrito pelo jornalista Oscar Pilagallo. Embora produzido em 2005, ele não foi publicado na época. Segundo a Folha, boa parte das informações foi usada pelo jornalista no livro História da Imprensa Paulista, de 2011.

No memorial, Pilagallo atesta que houve um núcleo de funcionários ligados à polícia trabalhando nas redações da empresa. Ele cita inclusive que um deles circulava com uma pistola automática entre os colegas. Em pelo menos um caso, ele assegura que o contratado recebia dois salários: um do Grupo Folha e um do órgão policial. O texto divulgado pela Folha, no entanto, sinaliza que o contexto em que a prática foi adotada oferece uma justificativa: “Não haveria como resistir a pressões. Enfrentar o governo seria bravata”.

André Bonsanto, pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFG) e um dos envolvidos na nova pesquisa, contesta um papel passivo do jornal. “A nossa investigação mostra o contrário. A Folha teve sim um protagonismo político muito claro”, disse durante um seminário para apresentação do estudo realizado no final do ano passado. Além de policiais, o Grupo Folha apostaria também na contratação de ex-militantes de esquerda que, quando estiveram presos, colaboraram com os militares. Segundo aponta a pesquisa, o pedido por emprego para estes “arrependidos” era, ocasionalmente, feito por agentes da repressão que tinham trânsito fácil na Folha.
Direitos trabalhistas

Ao mesmo tempo, foram mencionados casos específicos de demissão de trabalhadores que foram alvos de perseguição política pelos militares. Um deles envolve a jornalista Rose Nogueira, que foi demitida enquanto estava simultaneamente encarcerada e de licença maternidade. Segundo comprovaram os pesquisadores, em sua ficha funcional, foi registrado abandono de emprego.

A jornalista trabalhava na redação da Folha da Tarde quando foi presa em novembro de 1969, apenas 34 dias após o nascimento de seu filho. O próprio periódico fez referência à sua prisão e de outros jornalistas em matéria intitulada “Contra a subversão, polícia arma jogo da paciência”. De acordo com os pesquisadores, o Grupo Folha sabia do caráter político das prisões de seus empregados, mas mesmo assim os classificavam como terroristas.

Rose só soube da demissão por abandono de emprego quando foi solta em julho de 1970. “Quem preso vai trabalhar no jornal? Quem na licença maternidade vai? Eu estava com as duas coisas: licença maternidade e prisão”, questionou em seu depoimento para a pesquisa.

Ela também afirmou que houve adulteração da sua ficha cadastral. “Meu filho nasceu em 30 de setembro de 1969, no hospital 9 de Julho, na rua Peixoto Gomide. Eu fiquei internada 24 dias porque tive grande movimento de bexiga no parto. Eu trabalhei até um dia antes dele nascer. E aqui a Folha escreve que meu filho nasceu em 9 de agosto. Meu filho nasceu em 30 de setembro. Para que [a adulteração]? Para me dar o abandono de emprego no começo de dezembro.”

Procurado pela reportagem, o Grupo Folha afirmou, através de sua ombudsman Alexandra Moraes, que tudo o que o jornal apurou sobre os temas tratados pela pesquisa constam no conteúdo publicado em junho do ano passado que com base no memorial escrito pelo jornalista Oscar Pilagallo. Ele escreveu sobre o caso de Rose Nogueira. “Não é possível afirmar que, nesse caso, o Grupo Folha tivesse agido de acordo com os interesses da repressão. Não existem indícios suficientes de que isso tenha de fato ocorrido. O que há, apenas, é uma suspeita levantada pela vítima, com base em coincidência de datas. Por outro lado, não existe explicação para a versão que consta de sua ficha profissional”, diz o texto.



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