Maria da Conceição Tavares Créditos: Agência Brasil
O legado de Delfim Netto deve ser estudado de forma crítica e o de Maria da Conceição Tavares deve ser celebrado e levado adiante
Luciano Alencar
O ano de 2024 foi marcado pela perda de dois gigantes da economia brasileira: Maria da Conceição Tavares e Antônio Delfim Netto. Ambos desempenharam papéis fundamentais na vida social do país desde meados do século XX, com trajetórias acadêmicas e políticas de enorme relevância, não apenas influenciando de forma decisiva os rumos da economia nacional, como também contribuindo intensamente para sua compreensão.
Em termos acadêmicos, as contribuições de Tavares e Delfim se destacam pela vastidão e profundidade, sempre abrangendo os temas mais importantes da economia brasileira. A tese de professor livre-docente de 1959 de Delfim sobre a economia cafeeira permanece como referência incontornável para a historiografia econômica do país e se destaca em sua produção acadêmica, ao lado de outras análises sobre a economia agrícola, a relação entre planejamento e desenvolvimento econômico, e sobre a política monetária e o fenômeno inflacionário. A obra de Tavares é ainda mais vasta, abrangendo temas que vão desde o colapso do modelo primário exportador até a economia política internacional, passando por questões estruturais da industrialização brasileira em contexto periférico, pela análise da dinâmica cíclica da economia, pelo processo de financeirização e os desajustes macroeconômicos a partir do final da ditadura.
Para além da contribuição acadêmica própria, ambos tiveram voz ativa no debate público e foram fundamentais na produção e reprodução do conhecimento das ciências econômicas, ajudando a formar diversas gerações de economistas e sendo peças-chave no desenvolvimento institucional de alguns dos principais centros de ensino do país. Delfim foi, indiscutivelmente, personagem crucial na consolidação da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo (FEA-USP), enquanto Tavares contribuiu decisivamente para a criação dos programas de pós-graduação em economia dos dois principais centros heterodoxos do país, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Se dentro dos muros da universidade a contribuição de tais economistas foi ímpar, fora deles o destaque também foi imensurável. Para além da vida acadêmica, Tavares trabalhou no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, atual BNDES), ajudando no planejamento e execução do Plano de Metas, integrou os quadros da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), foi da executiva nacional do MDB na década de 1980 (contribuindo inclusive para os trabalhos da Constituinte) e, a partir da década de 1989, se filiou ao PT, partido pelo qual chegou a ser deputada federal entre 1995 e 1998.
Delfim Netto, por sua vez, foi o todo poderoso Ministro da Fazenda no período que ficaria conhecido como “Milagre Econômico”, caracterizado pelas maiores taxas de crescimento da história do país. Depois de um período como embaixador do Brasil na França, seria Ministro da Agricultura e do Planejamento nos últimos anos da ditadura. Posteriormente, Delfim buscaria se reinventar, sendo eleito para deputado federal diversas vezes e chegando a assessorar diferentes presidentes da Nova República, sendo um interlocutor importante de Lula.
O “Milagre”, inclusive, diz muito sobre nossos dois personagens. Delfim, que o capitaneou, foi elemento central da ditadura militar, tendo assinado o AI-5 e mantido a regra de correção salarial herdada do governo Castelo Branco. Esta implicava clara tendência de queda dos salários reais (o chamado “arrocho salarial”) e, consequentemente, em um forte processo de concentração de renda. Tavares, por outro lado, apesar se extremamente crítica a tal política e suas consequências sociais, não deixou que isso contaminasse sua análise do processo, e no clássico “Além da estagnação”, escrito com José Serra em 1971, mostrou como a concentração de renda não atrapalharia o crescimento econômico do período (como afirmava a tese estagnacionista de Celso Furtado de meados da década de 1960), mas poderia ser funcional à dinâmica capitalista.
Desse modo, se a proeminência acadêmica e na vida pública é um elemento comum a ambos, é fundamental destacar suas diferenças. Delfim, envolvido em diversas denúncias de corrupção, foi partícipe central e contribuiu ativamente para a ditadura em seu período mais autoritário, adotando políticas que claramente favoreciam a classe capitalista e os estratos mais abastados da sociedade. Por outro lado, Tavares – que chegou a ser presa por esta mesma ditadura – sempre defendeu os interesses da classe trabalhadora, e energicamente combateu a estratégia de Delfim que, no limite, é uma metonímia do sistema capitalista. No “Milagre” – como no modo de produção capitalista em geral – a economia cresceu de forma vigorosa, mas os frutos de tal crescimento foram apropriados de forma extremamente (e crescentemente) desigual. O bolo cresceu muito, mas sua divisão foi mesquinha.
Assim, as trajetórias de Tavares e Delfim evidenciam a importância fundamental de economistas na sociedade, no sentido de desenvolver as ciências econômicas, e também no de utilizá-las em favor do desenvolvimento econômico brasileiro em diferentes direções possíveis. Neste sentido o legado de Delfim Netto deve ser reconhecido e estudado de forma crítica; o de Maria da Conceição Tavares celebrado e levado adiante.
Luciano Alencar é professor do Instituto de Economia da UFRJ.
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