sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Dançando ao som do Disco Inferno de Trump

Trump e Putin (Foto: REUTERS/Kevin Lamarque)


"Pode acontecer de a fagulha realmente quente ser detonada não por Mr. Disco Inferno, mas por seu parceiro de dança Vladimir Putin", escreve Pepe Escobar

Pepe Escobar

Em fins da década de 1970, Donald Trump, com trinta e poucos anos, tão exibido quanto é hoje e recém-casado com Ivana em 1977, podia, de vez e quando, ser visto na elétrica noite de Nova York, principalmente na balada glamurosa e pesada do Studio 54.

Para lotar a pista de dança do Studio 54, nada como o Disco Inferno pelos The Trammps, mixado pelo bruxo da dança Tom Moulton e lançado em 1976, dois anos antes do perene favorito de Trump, YMCA – agora ressuscitado em furor global como a trilha sonora das dancinhas do Trump 2.0.

Para todos os fins práticos, Trump é agora o DJ que transforma o planeta inteiro em um Disco Inferno (“tem gente berrando descontrolada”) porque “tudo é tão divertido quando o boogie começa a explodir”. E as explosões em série do “boogie” de Trump não são nada menos que o som amplificado e ininterrupto do caos teatral, bombástico e fora de controle.

O espetáculo de som e fúria de Trump – uma enxurrada de ordens executivas, operações fotográficas, truques de ilusionismo cuidadosamente preparados, manchetes de tirar o fôlego – significando... alguma coisa... disfarça a velha mentalidade imperial, agora berrada a céu aberto como um circo de três picadeiros transformado em arma de guerra. Técnicas teatrais invariavelmente vencem a substância, uma vez que cada sorriso e cada cara-feia é usado como uma arma frente a espectadores deslumbrados e sedentos por sangue.

Mr. Disco Inferno ganhou uma mini-guerra contra a Colômbia em apenas 10 horas, depois de postar uma imagem mostrando a si próprio como um chefão da Máfia ao estilo Al Capone, vestido de terno de risca de giz e chapéu fedora, postado ao lado de um cartaz com os dizeres “FAFO”, que significa “Fuck Around and Find Out” (“Faça merda e veja o que acontece”).

Ele irá vencer a guerra por procuração na Ucrânia. Em 24 horas. Desculpe, em 100 dias. Desculpe, talvez um pouco mais. E “se eles não resolverem essa guerra logo, assim tipo quase que imediatamente, vou impor tarifas pesadas à Rússia, e também impostos pesados, e também sanções muito fortes”. Por quê? “Porque, você sabe, eu amo o povo russo”.

Ele se gaba de que os Estados Unidos “têm a maior quantidade de petróleo e gás” (não têm) e que ele vai fazer uso dela; ele vai “pedir que a Arábia Saudita e a OPEC baixem o preço do petróleo” (eles dirão que não); porque “se o preço do petróleo baixar, a guerra na Ucrânia terminaria imediatamente” (esse, definitivamente, não é um caso de “causa e efeito”).

Ele fará “os maiores cortes de impostos da história dos Estados Unidos”. Os Estados Unidos conseguem garantir o fornecimento de GNL para a Europa (é claro, a preços altíssimos); os Estados Unidos “não precisam do Canadá para fabricar carros, nem do petróleo e gás canadenses”; as “imensas reservas de petróleo e gás dos Estados Unidos” permitirão que o país se torne uma superpotência industrial e a capital mundial da IA e das criptomoedas”.

Oculto no som e na fúria está o fato de que os Estados Unidos podem contar com um fluxo ininterrupto de gás para atender às necessidades internas, mas que a coisa fica problemática quando se trata das exportações. Daí a obsessão com a expropriação – querendo dizer Saque Imperial descarado: os Estados Unidos precisam muito das reservas iraquianas, sírias, venezuelanas, mexicanas, iranianas e russas. Porque, mesmo se cuidadosamente exportadas, as instalações de liquefação nos Estados Unidos são insuficientes para atender a União Europeia. E é por essa razão que a Europa continua, em grande parte, dependente do GNL russo e de outras fontes, desde a sabotagem dos Nordstreams.

“A satisfação…veio em uma reação em cadeia”

Sim: irá jorrar sangue na pista de dança. Para entender corretamente o Disco Inferno, o melhor seria focar os três maiores desafios para o Trump 2.0: a guerra tecnológica contra China, a guerra geoeconômica contra a Maioria Global e a guerra por procuração na Ucrânia.

A irrupção no cenário mundial da start-up chinesa DeepSeek, sediada em Hangzhou, foi um marco histórico, dizimando instantaneamente a tão propalada estratégia americana de “quintal pequeno, cerca alta” (“small yard, high fence”) visando a esmagar os avanços tecnológicos da China.

O DeepSeek deve ser visto como o maior azarão no domínio do Grande Modelo de Linguagem (Large Language Model - LLM) de fonte-aberta, hoje considerado, de Jacarta à Wall Street e ao Vale do Silício, como a arma secreta potencial de Pequim na guerra da IA contra os Estados Unidos. Até mesmo Mr. Disco Inferno foi forçado a admitir que o grande avanço representado pelo DeepSeek foi um “chamado de alerta”.

No cerne da questão encontramos dois modelos mutuamente contraditórios: o hipercapitalismo neoliberal versus o socialismo meritocrático.

O dirigente da DeepSeek, Liang Wenfeng, é um geek fascinante. Seu primeiro nome (Wenfeng) significa “Vanguarda da Cultura”, e um dos significados de seu nome de família (Liang) é “ponte”. Ele, portanto, pode ser visto – como o é na China – como o Sr. Ponte para a Vanguarda da Cultura. Aqui temos o Sr. Ponte em uma excelente entrevista, em chinês (pode-se usar o auto-traduzir).

O Sr. Ponte, de forma espetacular, deu uma de Sun Tzu nas sanções americanas sobre as exportações de unidades de processamento gráfico avançado (GPUs), principalmente os chips avançados Nvidia’s. Além disso, as empresas de Big Tech chinesas não conseguem competir com o poder de fogo financeiro da Big Tech dos Estados Unidos.

A solução, portanto, foi desenvolver poderosos modelos LLM custo-eficientes sem acesso a literalmente centenas de milhares de chips Nvidia H100s chips. A DeepSeek afirmou ter usado apenas 2.048 Nvidia H800s e ter gastado apenas 5,6 milhões de dólares para treinar um modelo com 671 bilhões (itálicos meus) de parâmetros: essa é uma pequena fração do que a OpenAI e o Google gastaram para treinar modelos do mesmo tamanho.

E tudo foi desenvolvido localmente, por dezenas de PhDs das maiores universidades chinesas - Pequim, Tsinghua, Beihang – e não por especialistas da Ivy League dos Estados Unidos.

Então, em resumo, a DeepSeek é uma empresa de LLM 100% chinesa, que foi capaz de criar modelos de fonte-aberta e um app que pode ser baixado para o uso pessoal de cada consumidor. Isso, em si, destrói o atual modelo de negócios neoliberal e hipercapitalista no campo da IA imposto pelos Estados Unidos.

As regras do jogo estão de fato sendo reescritas. Então, qual seria a – previsível – reação americana? Pedir mais sanções. Paralelamente, a DeepSeek foi forçada a suspender novos registros porque o site sofreu um ciberataque maciço. E por falar no preço a ser pago por eviscerar a gigantesca quantia de um trilhão dos tecnofeudalistas reunidos na Bolsa de Valores de Nova York.

Mr. Disco Inferno, é claro, é a favor da comodificação da totalidade dos dados, em vez de dados grátis para todos. Logo antes do choque DeepSeek, ele havia - teoricamente – conseguido um trilhão de dólares junto aos sauditas, consistindo, em grande parte, em investimentos para desenvolver IA e centros de dados nos Estados Unidos.

O novo jogo, é claro, está apenas começando. A Stargate, a joint venture da OpenAI com o SoftBank do Japão, também fortemente promovida por Trump, planeja gastar pelo menos 100 bilhões em infraestrutura de IA nos Estados Unidos. Paralelamente, a xAI de Elon Musk vem expandindo maciçamente o supercomputador Colossus para conter mais de um milhão de GPUs para ajudar a treinar seus modelos Grok de IA.

“Eu não consegui o bastante, então tive que me autodestruir”

Agora, passemos à guerra contra a Maioria Global. O inestimável Professor Michael Hudson é peremptório: em um ensaio absolutamente indispensável, ele explicou em termos concisos que: “quando Trump prometeu a seus eleitores que os Estados Unidos tinham que sair “vencedores” em qualquer acordo financeiro ou de comércio internacional, ele estava declarando guerra econômico ao resto do mundo”.

A principal conclusão de Hudson: se os países do Sul Global pretenderem salvar suas economias de serem “mergulhadas em austeridade, inflação de preços, desemprego e caos social”, elas terão que suspender os pagamentos das dívidas externas denominadas em dólares”.

Trata-se de um trabalho em andamento: “Circunstâncias vêm forçando o mundo a romper com a ordem financeira centrada nos Estados Unidos. A taxa de câmbio do dólar americano irá aumentar vertiginosamente no curto prazo como resultado do bloqueio por Trump as importações com tarifas e sanções comerciais. Essa mudança nas taxas de câmbio irá arrochar países estrangeiros que tenham dívidas em dólar da mesma forma que o México e o Canadá sofrerão arrocho. Para proteger a si mesmos, esses países terão que suspender o serviço das dívidas em dólar”.

Talvez haja graves problemas a espera de Mr. Disco Inferno: “O teatro político do America First que elegeu Trump talvez venha a derrubar sua gangue, à medida que as contradições e consequências de sua filosofia operacional forem sendo reconhecidas e substituídas. Sua política de tarifas irá acelerar a inflação dos preços nos Estados Unidos e, o que é ainda mais fatal, causar pânico nos mercados financeiros internos e externos. As cadeias de suprimento serão destruídas, interrompendo a totalidade das exportações americanas, desde aeronaves até tecnologia da informação. E outros países se verão obrigados a fazer com que suas economias deixem de depender das exportações dos Estados Unidos e do crédito em dólar”.

O Prof. Hudson observa que Trump “pensa que a economia americana é como um buraco negro cósmico, quer dizer, um centro de gravidade capaz de puxar para si todo o dinheiro e todos os superávits econômicos do mundo. Esse é o objetivo explícito do America First. É isso que faz com que o programa econômico de Trump seja uma declaração de guerra econômica contra o resto do mundo. Deixou de haver a promessa de que a ordem econômica patrocinada pela diplomacia dos Estados Unidos irá trazer prosperidade para outros países. Os ganhos com o comércio e os investimentos internacionais deverão ser enviados e concentrados na América”.

A União Europeia, no Norte Global, é ainda mais vulnerável ao “America First”. Davos aconteceu e terminou como um mero blip na tela, além das bravatas do estranho banqueiro americano sobre “o pico de pessimismo” na Europa – ligado ao tsunami tarifário de Trump que vem por aí. A dirigente do Banco Central Europeu, Christine “Vejam minha echarpe Hermés nova” Lagarde dizendo que talvez “não fosse pessimista” afirmar que a Europa vem enfrentando uma “crise existencial”.

A balança comercial dos Estados Unidos encontra-se no forte patamar de 1,5 trilhão de euros anuais, incluindo os enormes fluxos de investimento atlanticistas. Mas o que realmente importa é o caos financeiro reinante em países europeus, principalmente nos dois maiores, Alemanha e França, cuja Via Dolorosa se prolongará ad infinitum quando o custo de seus empréstimos for afetado pelos cortes de impostos nos Estados Unidos.

“Eu ouvi alguém dizer (Queima Queima) queima essa mulher”

E agora, para o front das Guerras Eternas.

Mr. Disco Inferno, posando de humanitário para o incessante clique das câmeras, pediu que seus vassalos Jordânia e Egito se tornem cúmplices de facto da limpeza étnica, absorvendo até 1,5 milhões de pessoas de Gaza. O Artigo 49 da Quarta Convenção de Genebra explicitamente “proíbe a transferência forçada de pessoas protegidas para dentro ou para fora do território ocupado”.

A transformação do genocídio em oportunidade de empreendimento imobiliário em uma “localização fenomenal” procederá paralelamente a uma vigorosa bajulação dos sauditas, após Mbs, em Riad, ter prometido, na semana passada, investir pelo menos 600 bilhões – até um possível trilhão de dólares – nos Estados Unidos.

A posição saudita oficial é a da necessidade de “investimentos estratégicos” para “estabilizar os fluxos de renda de longo prazo” – para não mencionar a consolidação dos generosos gastos nos sistemas de armamentos de fabricação estadunidense. Pode-se chamar a isso de um caso geopolítico clássico do Poder do Capital se fundindo à Estratégia do Caos.

Dizer a Riad como dançar é uma coisa. Atrair o urso russo para a pista de dança é uma proposição totalmente diferente.

Como o grande historiador francês Emmanuel Todd demonstrou brilhantemente, “a tarefa de Trump será a de administrar a derrota dos Estados Unidos contra a Rússia”. Essa é a parada mais difícil de todas. Para Trump, o anátema supremo é ser visto como um perdedor.

Há, portanto, duas opções possíveis. 1. “Por fim à guerra” sem realmente terminá-la, apenas adiando seu fim até o fim da década, surripiando uma vitória russa de facto com maciças narrativas mentirosas e uma gargantuesca campanha de RP. 2. Continuar enviando armas a Kiev – principalmente através de vassalos da OTAN e, ao mesmo tempo, posar de um pacificador que não obtém sucesso devido à Rússia. Essa será uma variante tóxica da atual “lutar até o último ucraniano”.

Truques desse tipo não irão funcionar em Moscou. Putin e o Conselho de Segurança deixam abundantemente claras as condições para o fim real da guerra – e não uma pausa para o rearmamento da OTAN.

O plano de 100 dias, autêntico-ou-não, para um possível acordo que vem circulando nas câmaras de eco de Washington-Londres-Kiev menciona algumas probabilidades: um telefonema Putin-Trump nas próximas duas semanas mais ou menos; um possível encontro bilateral (Putin-Trump) ou trilateral (incluindo o ator ucraniano, o que é pouco provável) até meados de março; início das negociações sobre os principais parâmetros; um possível cessar-fogo até a Páscoa; uma Conferência Internacional de Paz ao final de abril, mediada pelos Estados Unidos, China, alguns membros da UE e alguns do Sul Global; eleições presidenciais na Ucrânia ao final de agosto.

Principais parâmetros: a Ucrânia, como um estado neutro e não membro da OTAN; membro da União Europeia até 2030; a Ucrânia não reduz o tamanho de seu exército; não reconhece oficialmente a soberania russa sobre os territórios conquistados; “algumas” sanções contra a Rússia suspensas imediatamente após a conclusão do acordo de paz, algumas outras – no decorrer de três anos – a depender da conformidade por parte da Rússia; suspensão de todas as restrições à importação de energia russa pela União Europeia e, por último mas não menos importante, a espinhosa questão do “contingente pacificador europeu”.

A CIA está alimentando Trump com todo o tipo de informações enganosas sobre tudo, desde o estado real das coisas no campo de batalha até o estado da economia russa. Nas atuais circunstâncias, os russos assistem a todo o falatório bombástico com nada mais que um leve sorriso. Peskov: “Washington ainda não se comunicou com Moscou sobre um possível contato entre Trump e Putin... a disposição para um encontro continua existindo”.

Até agora, nada. Só jogo vazio. Talvez Trump, em segredo, esteja praticando seu plano-mestre: “O calor estava ligado, subindo até o máximo/ Todo mundo à toda, e foi aí que minha fagulha esquentou” (“The heat was on, rising to the top / Everybody going strong, and that is when my spark got hot”).

Hora de encarar a pista de dança.

Não consigo parar quando minha fagulha esquenta

Não consigo parar quando minha fagulha esquenta

Não consigo parar quando minha fagulha esquenta (Just can't stop) when my spark gets hot Just can't stop) when my spark gets hot Just can't stop) when my spark gets hot)

Bem, pode acontecer de a fagulha realmente quente ser detonada não por Mr. Disco Inferno, mas por seu parceiro de dança Vladimir Putin.

Tradução de Patricia Zimbres



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