quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Entender a queda do sistema

 O fascismo a aproximar-se

Chris Hedges [*]
resistir.info/
Cartoon de Mr. Fish.

Por mais de duas décadas, eu e um punhado de outros — Sheldon WolinNoam ChomskyChalmers JohnsonBarbara Ehrenreich e Ralph Nader — temos alertado que a crescente desigualdade social e a erosão constante de nossas instituições democráticas, incluindo os media, o Congresso, o trabalho organizado, as universidades, os tribunais, inevitavelmente levariam a um estado autoritário ou fascista cristão. Meus livros – "American Fascists: The Christian Right and the War on America" (2007), "Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle" (2009), "Death of the Liberal Class" (2010), "Days of Destruction, Days of Revolt" (2012), escritos com Joe Sacco, "Wages of Rebellion" (2015) e "America: The Farewell Tour" (2018) foram uma sucessão de apelos apaixonados para levar a decadência a sério. Não me alegro por estar correto.

"A cólera daqueles abandonados pela economia, os medos, as preocupações de uma classe média sitiada e insegura e o isolamento entorpecente que vem com a perda do sentido de comunidade, serão o catalisador de um perigoso movimento de massas", escrevi em "American Fascists" em 2007. "Se esses desapossados não forem reintegrados socialmente, se eventualmente perdessem toda a esperança de encontrar empregos bons e estáveis e oportunidades para si e seus filhos – em suma, a promessa de um futuro melhor – o espectro do fascismo americano assediaria a nação".

Esse desespero, essa perda de esperança, essa negação de um futuro, levou os desesperados para os braços daqueles que prometeram milagres e sonhos de glória apocalíptica. Donald Trump não anuncia o advento do fascismo. Ele anuncia o colapso do verniz que mascarou a corrupção dentro da classe dominante e a sua pretensa democracia.

Ele é o sintoma, não a doença. A perda de normas democráticas básicas começou muito antes de Trump, abrindo caminho para um totalitarismo americano. Desindustrializaçãodesregulamentaçãoausteridadecorporações predatórias descontroladas, incluindo a indústria dos cuidados de saúdevigilância por atacado de todos os americanosdesigualdade social, um sistema eleitoral praguejado por suborno legalizadoguerras intermináveis e fúteis, a maior população encarcerada do mundo, mas acima de tudo sentimentos de traição, estagnação e desespero, são uma mistura tóxica que culmina num ódio incipiente à classe dominante e às instituições que eles deformaram para servir exclusivamente aos ricos e poderosos. Os democratas são tão culpados quanto os republicanos.

"Trump e seu círculo de multimilionários, generais, gente estúpida ou enlouquecida, fascistas cristãos, criminosos, racistas e desviantes morais desempenham o papel do clã Snopes em alguns romances de William Faulkner", escrevi em "America: The Farewell Tour". "Os Snopes preencheram o vácuo de poder do Sul decadente, impiedosamente assumiram o controlo das elites aristocráticas degeneradas e ex-esclavagistas. Flem Snopes e sua extensa família – que inclui um assassino, um pedófilo, um bígamo, um incendiário, um homem com deficiência mental que copula com uma vaca e um parente que vende ingressos para testemunhar a bestialidade – são representações fictícias da escória agora elevada ao mais alto nível do governo federal. Eles incorporam a podridão moral desencadeada pelo capitalismo irrestrito".

"A referência habitual à "amoralidade", embora precisa, não é suficientemente distinta e por si só não nos permite colocá-los, como deveriam ser colocados, num momento histórico", escreveu o crítico Irving Howe sobre os Snopes. "Talvez a coisa mais importante a ser dita é que eles são o que vem depois: as criaturas que emergem da devastação, com o lodo ainda em seus lábios".

"Deixe um mundo desmoronar, no Sul ou na Rússia, e aparecem figuras de ambição grosseira abrindo caminho do fundo social, gente para quem as reivindicações morais não são tanto absurdas quanto incompreensíveis, filhos de salteadores ou mujiques à deriva do nada e assumindo poder pelos excessos da sua força monolítica". "Eles tornam-se presidentes de bancos locais, presidentes de comités regionais do partido e, mais tarde, um pouco mais escorregadios, abrem caminho para o Congresso ou para o Politburo. Ambiciosos sem inibição, eles não precisam acreditar no código oficial de sua sociedade em ruínas; eles só precisam aprender a imitar seus sons".

O filósofo político Sheldon Wolin chamou ao nosso sistema de governança de "totalitarismo invertido", que manteve a antiga iconografia, símbolos e linguagem, mas entregou o poder a corporações e oligarcas. Agora mudamos para a forma mais reconhecível do totalitarismo, dominada por um demagogo e uma ideologia baseada na demonização do outro e pensamento mágico.

O fascismo é sempre o filho bastardo de um liberalismo em bancarrota.

"Vivemos num sistema legal de dois níveis, onde os pobres são assediados, presos e encarcerados por infrações absurdas, como a venda de cigarros avulsos – o que levou Eric Garner a ser sufocado até a morte pela polícia de Nova York em 2014 – enquanto crimes de magnitude terrível por oligarcas e corporações, de derrames de petróleo a fraudes bancárias na casa das centenas de milhares de milhões de dólares, eliminando 40% da riqueza mundial, são tratados por meio de controlos administrativos suaves, multas simbólicas e execução civil que dão a esses perpetradores ricos imunidade de processo criminal", escrevi em "America: The Farewell Tour".

A ideologia utópica do neoliberalismo e do capitalismo global é uma grande fraude. A riqueza do mundo, em vez de ser distribuída equitativamente, como os neoliberais prometeram, foi canalizada para cima, para as mãos de uma elite oligárquica voraz, alimentando a pior desigualdade económica   desde a era dos barões ladrões.[NT]

Os trabalhadores pobres, despojados dos seus sindicatos e direitos e cujos salários estagnaram ou diminuíram nos últimos 40 anos, foram empurrados para a pobreza crónica e o subemprego. Como Barbara Ehrenreich narrou em "Nickel and Dimed", as suas vidas são uma emergência longa e cheia de stresse. A classe média está a evaporar-se. Cidades que antes fabricavam produtos e ofereciam empregos na indústria, são terrenos baldios fechados com tábuas. As prisões estão sobrelotadas. As corporações orquestraram a destruição de barreiras comerciais, permitindo-lhes esconder em bancos estrangeiros, 1,42 milhões de milhões de dólares de lucros para evitar o pagamento de impostos.

O neoliberalismo, apesar de sua promessa de construir e difundir a democracia, rapidamente destruiu as regulamentações e esvaziou os sistemas democráticos para transformá-los em monstros empresariais. Os rótulos "liberal" e "conservador" não têm sentido na ordem neoliberal, tal como evidenciado por um candidato presidencial democrata (Kamala Harris) que se gabou do apoio de Dick Cheney, um criminoso de guerra que deixou o cargo (de vice-presidente) com um índice de aprovação de 13%. A atração de Trump é que, embora vil e bufão, ele zomba da falência da farsa política.

"A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo", escrevi em "America: The Farewell Tour": "Não importa mais o que é verdade. Importa apenas o que é "correto". Os tribunais federais estão repletos de juízes imbecis e incompetentes que servem a ideologia "correta" do corporativismo e os rígidos costumes sociais da direita cristã. Eles desprezam a realidade, incluindo a ciência e o Estado de Direito. Eles procuram banir aqueles que vivem num mundo baseado na realidade e definido pela autonomia intelectual e moral. O governo totalitário sempre eleva o brutal e o estúpido. Estes idiotas reinantes não têm filosofia nem objetivos políticos genuínos. Usam clichés e slogans, a maioria dos quais são absurdos e contraditórios, para justificar a sua ganância e desejo de poder. Isso é tão verdadeiro para a direita cristã quanto para os corporativistas que pregam o livre mercado e a globalização. A fusão dos corporativistas com a direita cristã é o casamento de Godzilla com Frankenstein".

As ilusões vendidas nos nossos ecrãs – incluindo a personagem fictícia criada para Trump em O Aprendiz – substituíram a realidade. A política é burlesca, como ilustrou a campanha vazia e cheia de celebridades de Kamala Harris. É fumo e espelhos criados pelo exército de agentes, publicitários, departamentos de marketing, promotores, roteiristas, produtores de televisão e cinema, técnicos de vídeo, fotógrafos, guarda-costas, consultores de guarda-roupa, preparadores físicos, pesquisadores, locutores públicos e personalidades de televisão. Somos uma cultura inundada de mentiras.

"O culto do eu domina a nossa paisagem cultural", escrevi em "Empire of Illusion": "Este culto tem em si os traços clássicos dos psicopatas: charme superficial, grandiosidade e auto-importância; uma necessidade de estímulo constante, uma propensão para mentir, enganar e manipular, e a incapacidade de sentir remorso ou culpa. Essa é, obviamente, a ética promovida pelas corporações. É a ética do capitalismo irrestrito. É a crença equivocada de que estilo pessoal e promoção pessoal, confundidos com individualismo, são o mesmo que igualdade democrática".

"Na verdade, o estilo pessoal, definido pelas mercadorias que compramos ou consumimos, tornou-se uma compensação pela nossa perda de igualdade democrática. Temos o direito, no culto do eu, de obter tudo o que desejamos. Podemos fazer qualquer coisa, até mesmo desprezar e destruir as pessoas ao nosso redor, incluindo nossos amigos, para ganhar dinheiro, ser felizes e nos tornarmos famosos. Uma vez que a fama e a riqueza são alcançadas, elas se tornam a própria justificação, a própria moralidade. Como alguém chega lá é irrelevante. Quando se chega lá, essas perguntas já não são feitas mais".

Meu livro "Empire of Illusion" começa na Madison Square Garden numa turné da World Wrestling Entertainment. Eu entendia que o wrestling profissional era o modelo para a nossa vida social e política, mas não sabia que produziria um presidente. "As lutas são rituais estilizados", escrevi, no que poderia ter sido uma descrição de um comício de Trump: "São expressões públicas de dor e um desejo fervoroso de vingança. As sagas sinistras e detalhadas por trás de cada luta, em vez das lutas em si, são o que leva as multidões ao frenesim. Essas batalhas ritualizadas dão aos que se aglomeram nas arenas uma libertação temporária e inebriante das suas vidas. O fardo dos problemas reais é transformado em ração para uma pantomina cheia de energia".

Mas não vai melhorar. As ferramentas para acabar com a dissidência foram cimentadas. Nossa democracia desmoronou-se há anos. Estamos nas garras do que Søren Kierkegaard chamou de "doença até a morte" – o entorpecimento da alma pelo desespero que leva à degradação moral e física. Tudo o que Trump precisa fazer para estabelecer um estado policial sem disfarces é apertar um botão. E ele vai fazê-lo.

"Quanto pior a realidade se torna, menos uma população cercada quer ouvir falar disso", escrevi na conclusão de "Império da Ilusão", "e mais ela se distrai com pseudo-eventos sórdidos de celebridades, mexericos e trivialidades. Estes são os divertimentos depravados de uma civilização moribunda.

[NT] O autor recorda que desde a época dos Carnegies, Rockefellers e Vanderbilts, na viragem do século XX, tanto não pertencia a tão poucos.

23/Dezembro/2024

[*] Jornalista, estado-unidense.

Este artigo encontra-se em resistir.info



 

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