segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Questões internacionais - A DEMOCRACIA NA ROLETA RUSSA




O retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos reacendeu o debate sobre o declínio da democracia liberal e tem como efeito inevitável o fortalecimento da extrema direita global. No Brasil, o bolsonarismo se reanima para as eleições de 2026, em função do “espírito do tempo” produzido pelo trumpismo e da expectativa de que isso possa se converter em apoio concreto na eleição presidencial brasileira. Simultaneamente, Lula e o Partido Democrata são criticados por suas estratégias. Em ambos os casos, a crítica tem caráter individualizado e míope, tratando como evitável e quase acidental o retorno dos extremistas. Mas a popularidade dos que querem implodir a democracia é uma realidade, e resulta não de erros táticos do campo democrático, mas de um processo longo e sistêmico, que pode ser examinado em três etapas.


Essa hegemonia foi uma forte ruptura com a era pré-globalização. Do final da Segunda Guerra Mundial até a década de 1970, período conhecido como “os anos de ouro do capitalismo”, a clivagem entre direita e esquerda se dava sobretudo na gestão da economia, com a esquerda promovendo o bem-estar social, ainda que em detrimento da inflação, e a direita priorizando a estabilidade monetária. Com a globalização financeira, essa diferenciação aos poucos se perdeu, dando lugar às pautas de costumes ou identitárias. As discordâncias remanescentes sobre a economia ficaram restritas às vicissitudes da conjuntura internacional (como um boom nos preços das commodities, a exemplo do que ocorreu nos anos 2000) e à implementação de políticas sociais tímidas, que não confrontam os parâmetros de disciplina fiscal. Embora essa tendência seja repleta de nuances e se manifeste de forma diferente em cada país, ela vem se consolidando desde o final do século XX e permanece inabalável apesar das crises que revelaram suas disfuncionalidades, como a de 2008, a pandemia de Covid e a crise ambiental em curso.

A segunda etapa do processo que nos trouxe até aqui foi a reação popular. A globalização prometeu desenvolvimento e prosperidade, mas o que se passou a observar, ao menos no mundo ocidental, foi uma crescente concentração de renda, acompanhada de recorrentes instabilidades financeiras e macroeconômicas (que inviabilizam o crescimento e o desenvolvimento) e do desmonte das políticas de bem-estar social. Sem ter a quem recorrer no establishment político, eleitores se tornaram facilmente cooptáveis pelo discurso de líderes populistas, que apontam a corrupção das elites como a causa de todo mal, apresentam-se como antissistema, reivindicam-se como legítimos representantes do povo e prometem soluções fáceis e autoritárias (a culpa é dos imigrantes, do comunismo, dos transsexuais etc.). Como resultado, populistas de extrema direita vêm se fortalecendo mundo afora, colocando em xeque instituições da democracia liberal. Isso se traduz na experiência de governos como os de Trump, Bolsonaro e Milei, e no crescimento de partidos extremistas como a Alternativa para a Alemanha e a Reunião Nacional, na França.



Sem que o verdadeiro problema seja atacado, as consequências para a democracia serão dramáticas. É um processo em curso. Na América Latina, segundo o relatório mais recente do Latinobarómetro, o apoio à democracia está abaixo da média histórica pós-redemocratização. Líderes de extrema direita, como Bolsonaro e Trump, já se mostraram dispostos a promover golpes de Estado para permanecerem no poder. Por razões circunstanciais (ou devido à força das instituições, se quisermos ser mais otimistas), o golpismo não foi bem-sucedido nem lá nem cá. Mas circunstâncias mudam e instituições se desgastam. Em 2022, os Estados Unidos sob Biden foram fundamentais na contenção do golpismo no Brasil. Como teria sido se o presidente americano fosse outro? As Forças Armadas teriam topado o golpe caso tivessem Trump na retaguarda? Esses exercícios hipotéticos nos ajudam a pensar sobre como o nosso destino enquanto país está na mão de algumas poucas variáveis, e que passamos raspando pelo abismo.


Para conter esse processo é preciso, necessariamente, reconfigurar os parâmetros do sistema financeiro internacional, alterando a relação de poder entre o mercado financeiro e os governos (um caminho para fazer isso é oferecer incentivos que alterem práticas de investidores e de suas instituições, como foi ensaiado, ainda que timidamente, por órgãos reguladores dos Estados Unidos e da União Europeia no pós-crise de 2008). Não se pode aceitar que alternativas de política econômica sejam imediatamente punidas por investidores na forma de fuga de capitais e dos efeitos deletérios dela decorrentes, como acontece no Brasil e em tantos países. O fim dessa prática não apenas ajudaria a regenerar o jogo democrático, mas também faria florescer debates de caráter existencial que hoje estão interditados, como os que dizem respeito à crise ambiental.







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