Participar ou não da reconstrução síria é um teste para a capacidade brasileira de atuar estrategicamente num ambiente global em rápida transformação
Fernando Brancoli
Em 2025, após treze anos de guerra civil, a Síria emerge devastada, transformada em um terreno disputado por potências regionais e globais interessadas não apenas em sua reconstrução, mas em influenciar seu futuro político. Estados Unidos, Rússia, Irã e China já competem nos bastidores, revelando uma dinâmica geopolítica complexa, na qual interesses estratégicos frequentemente se chocam com as necessidades humanitárias urgentes da população. Nesse cenário, mesmo países como o Brasil, aparentemente distantes, acabam envolvidos direta ou indiretamente, seja pelo impacto das ondas migratórias, pela diplomacia humanitária ou pelas posições assumidas em fóruns internacionais. Entender o papel brasileiro nesse contexto exige revisitar as primeiras iniciativas de reconstrução, que desde 2018 já revelavam dilemas e contradições que moldam o presente e o futuro da Síria.

Entrada da Feira Internacional de Reconstrução de Damasco. Crédito: Fernando Brancoli
A Feira Internacional de Reconstrução de Damasco, realizada naquele ano, simbolizava esse contraste. Enquanto pavilhões envidraçados exibiam maquetes de cidades projetadas para um futuro incerto, do lado de fora, mulheres e crianças reviravam escombros em busca de fios de cobre e fragmentos de plástico. No interior do evento, sob o zumbido constante dos sistemas de ar-condicionado, diplomatas e representantes empresariais circulavam entre estandes que prometiam uma “Síria renascida” – uma narrativa otimista que pouco dialogava com a realidade de um país devastado pela guerra e sufocado por sanções econômicas. Empresas chinesas apresentavam tecnologias de vigilância ao lado de projetos para redes elétricas, enfatizando sua intenção de integrar a Síria à iniciativa da Nova Rota da Seda. O Irã, aliado estratégico de longa data do regime Assad, oferecia investimentos em refinarias, enquanto a Rússia promovia software para “gestão urbana pós-conflito” e consolidava sua presença no país por meio de contratos em infraestrutura e segurança digital.
Em 2018, estive na Feira como observador, em trabalho de campo, acompanhando as movimentações das potências que já disputavam espaço na reconstrução síria. Naquele momento, embora a guerra ainda estivesse oficialmente em curso, países como China, Irã e Rússia projetavam ativamente seus interesses estratégicos e econômicos. Mas onde estava o Brasil, que poderia ter reivindicado uma posição entre os Brics nesse cenário? Sua ausência destacou-se claramente, especialmente diante da presença ostensiva dessas potências emergentes. Até mesmo a Venezuela, afundada em sua própria crise, tentava participar do jogo geopolítico. Já o Brasil optou por não aparecer, preferindo manter-se afastado desse roteiro.
Essa decisão, tomada em 2018 pelo governo Temer, talvez tenha refletido o receio de sanções dos Estados Unidos ou uma indefinição estratégica em sua política externa. Empresas brasileiras reconhecidas internacionalmente por sua atuação em contextos difíceis poderiam ter assumido protagonismo na reconstrução. No entanto, diante da hesitação brasileira, o espaço permaneceu vazio enquanto chineses, russos e iranianos fortaleciam suas posições no país.
Agora, sete anos depois, com a Síria em um cenário radicalmente transformado após a queda de Assad, a questão retorna com urgência: o Brasil seguirá à margem ou finalmente reivindicará um papel ativo na reconstrução e na definição do futuro sírio? Mais do que uma oportunidade econômica, trata-se de um teste para a capacidade brasileira de atuar estrategicamente num ambiente global em rápida transformação.

Ruínas em Alepo - Crédito: Fernando Brancoli
Depois da vitória, a ruína: dilemas sectários e crise humanitária
Em 2025, a guerra de treze anos levou quase tudo: metade da população foi expulsa de seus lares e cidades – cerca de 4,8 milhões de sírios fugiram do país (mais de um quinto da população) e outros 7 milhões vagam deslocados dentro da Síria, mais de 30% dos habitantes. Os sobreviventes agora tentam reconstruir vidas e casas em meio a pilhas de entulho e memórias ensanguentadas.
Em Damasco, poucos meses atrás, multidões celebraram sob a antiga bandeira tricolor da independência – símbolo da revolução – o fim de um regime ditatorial familiar que durou 54 anos. Bashar al-Assad, herdeiro de Hafez al-Assad, fugira para o exílio em dezembro de 2024, derrubado por uma incomum aliança de inimigos. Pela primeira vez desde 1970, a Síria acordou sem um Assad no poder. O principal ponto de encontro da capital, a Praça dos Omíadas, encheu-se de gritos de liberdade e disparos de armas para o ar, numa euforia comparável apenas à independência contra os franceses em 1946. Contudo, a ressaca da vitória logo chegaria. Semanas após os sírios celebrarem o “Dia da Vitória”, surgiu um relato macabro vindo do litoral: mais de mil civis da minoria religiosa alauita foram mortos em vilarejos próximos a Latakia. A violência começou com um ataque de milicianos leais a Assad – o último ato de desespero de um ditador deposto – e terminou em retaliações brutais pelas forças do novo governo, que ao caçar os responsáveis acabaram vitimando centenas de inocentes. Famílias inteiras, acusadas de serem “alauitas de Assad’, foram executadas sumariamente, seus corpos deixados nas ruas em uma cena de horror que fez ecoar memórias dos piores massacres da guerra. “A novidade é a escala dos massacres contra a população civil”, chegou a lamentar o embaixador do Brasil em Damasco, refletindo a preocupação global diante de relatos de limpeza étnica em plena aurora da paz. A queda do regime não trouxera um fim imediato ao derramamento de sangue – em vez disso, revelou o abismo de rancor sectário acumulado durante décadas.
Essa tensão expõe a ferida central da Síria: o sectarismo plantado nos anos de poder dos Assad. A minoria alauita (cerca de 10% da população) ascendera ao topo do Estado com Hafez al-Assad em 1970, dominando as forças armadas e os serviços de segurança. Por décadas, muitos sunitas – maioria no país – viam o regime como uma oligarquia sectária, enquanto os alauitas comuns temiam represálias caso o governo caísse. Agora, com Assad deposto, seus temores tornaram-se realidade em lugares como Latakia, epicentro do massacre recente e lar histórico da comunidade. O novo governo, ironicamente liderado por um grupo islamista sunita antes ligado à Al-Qaeda, o Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), promete proteger “todos os grupos religiosos”. “Garantiremos os direitos de toda a população e de todas as religiões na Síria, precisamente porque somos islâmicos”, declarou Mohammed al-Bashir, primeiro-ministro de transição indicado pelo HTS. Porém, as palavras esbarram na desconfiança: para os alauitas, drusos e cristãos que sobrevivem em meio aos escombros, a recente carnificina é prova de que promessas podem pouco contra ódios inflamados. O frágil governo interino – presidido pelo ex-comandante jihadista, Abu Mohammad al-Jolani – terá de mostrar com atos, e não apenas retórica, que não repetirá a tirania que derrubou. Caso contrário, o país arrisca trocar uma forma de opressão por outra, enquanto minorias vulneráveis esperam, temerosas, por garantias reais de inclusão e segurança.
No campo humanitário, os números da devastação são assombrosos. Mais de 500 mil sírios foram mortos desde 2011. Antes mesmo da batalha final em Damasco, a ONU estimava 16,7 milhões de pessoas necessitando de assistência básica para sobreviver, em um país cuja população atual gira em torno de 18 milhões a 20 milhões. As ruas de Homs e Idlib estão cheias de viúvas, órfãos e amputados; gerações inteiras conheceram apenas a guerra e a privação. Enquanto isso, nos acampamentos improvisados nas fronteiras da Turquia e do Líbano, famílias inteiras ponderam se já é hora de voltar. Desde a queda de Assad, um grande número de refugiados sírios começou a arriscar o retorno a partir dos países vizinhos, mesmo que suas casas não passem de ruínas. Países europeus, como Áustria, apressaram-se em suspender novos pedidos de asilo de sírios, dando a entender que consideram a guerra encerrada. Viena chegou a anunciar planos de deportar refugiados de volta para a Síria em breve. Entretanto, “paz” é uma palavra delicada aqui: voltar para quê e para onde? Sem casas, sem empregos, com cidades inteiras fantasma, os retornados encaram o mesmo cenário dos que nunca partiram – um país quebrado, no sentido mais literal.
A economia síria hoje é uma sombra do que já foi. Sob as bombas e sanções, o PIB encolheu 85% desde 2011, um colapso econômico quase sem paralelo. Em 2010, antes da revolta, a Síria tinha um PIB de cerca de US$ 60 bilhões, comparável ao da Jordânia; agora mal registra US$ 9 bilhões– equiparando-se a economias minúsculas como Chade ou territórios palestinos. A guerra retardou o desenvolvimento em quarenta anos, estimam analistas, e lançou quatro em cada cinco sírios à pobreza. Nas cidades, a libra síria vale menos que papel: a hiperinflação fez os preços dispararem mais de 50% só no último ano.
Em 2023, diante de cofres vazios, o regime Assad recorria ao tráfico da anfetamina captagon para obter divisas, transformando o país numa espécie de narco-Estado para financiar seu esforço de guerra. Essa “herança desastrosa” recai agora sobre a administração interina, que precisa fornecer pão, água, luz e combustível a um povo exausto. Não é tarefa simples reativar uma economia estilhaçada: usinas elétricas foram saqueadas ou bombardeadas, a produção de petróleo despencou, e até a agricultura sofre com equipamentos danificados e êxodo de agricultores. Em muitas aldeias, a gasolina tornou-se artigo de luxo e a eletricidade, quando vem, dura apenas poucas horas por dia.
O custo da reconstrução é difícil de calcular, tamanha a devastação. O Banco Mundial já estimava, anos atrás, que seriam necessários US$ 250 bilhões para refazer o país, mas outros analistas falam em US$ 400 bilhões a US$ 600 bilhões se contabilizarmos a perda de infraestrutura, habitações, escolas, hospitais e indústrias ao longo de toda a guerra. Em bairros inteiros de Alepo oriental, não há prédio sem marcas de tiros ou estilhaços. Trinta por cento das casas na Síria foram completamente destruídas ou danificadas, fábricas inteiras viraram sucata e a rede elétrica nacional está em frangalhos. Diante disso, a Síria pós-guerra se parece a um paciente na UTI que, além de tudo, sofre um torniquete financeiro: as sanções econômicas internacionais permanecem em vigor, embora seu alvo – o regime Assad – já não esteja mais no poder. Os Estados Unidos e a Europa, que impuseram duras sanções ao longo do conflito para isolar Assad, agora hesitam em removê-las de imediato. Washington liberou apenas licenças humanitárias e alívios pontuais – por exemplo, permitindo temporariamente a exportação de energia para a Síria – mas mantém a maior parte das restrições. A União Europeia condiciona suspender sanções à “boa governança” do novo governo. Na prática, isso significa que a ajuda financeira ocidental e investimentos privados continuarão bloqueados enquanto houver dúvidas sobre a direção política de Damasco. Manter essas punições agora, quando Assad já se foi, é visto por muitos como “puxar o tapete justamente quando a Síria tenta se levantar”. Afinal, se a ideia original era estrangular a máquina de guerra de Assad, punindo seu círculo de apoiadores, essa razão desapareceu com sua queda. Restam, porém, os escombros e um povo passando necessidade – estes, sim, sofrendo o impacto contínuo do embargo econômico. Uma Síria livre de sanções seria “fundamental para iniciar o imprescindível processo de reconstrução” em melhores condições, argumentam analistas, mas a geopolítica torna a decisão complexa.

Mercado central de Damasco. Crédito: Fernando Brancoli
Disputas pela reconstrução: geopolítica e interesses no futuro da Síria
No tabuleiro internacional, as potências tateiam suas próximas jogadas. Quem reconstruirá a Síria? Essa pergunta é feita em Damasco e nos gabinetes de Washington, Moscou, Ancara e Pequim. Durante a guerra, os aliados de Assad – Rússia, Irã e China – posicionaram-se para assumir a dianteira da reconstrução. A Rússia, que chegou a gastar cerca de US$ 3 milhões por dia sustentando a campanha militar pró-Assad, firmou acordos iniciais de mais de US$ 1 bilhão em projetos de infraestrutura e energia com o antigo governo, de olho em portos, fosfato e petróleo sírios. O Irã, por sua vez, assegurou contratos no setor de telecomunicações e forneceu linhas de crédito para Damasco, ao mesmo tempo em que gastava bilhões financiando milícias no front. A China enviou delegações de trinta empresas de construção civil a Damasco ainda em 2017, sondando oportunidades para quando a artilharia silenciasse – Pequim vislumbrava a Síria integrada à sua Nova Rota da Seda, por meio de ferrovias ligando o Mediterrâneo à Ásia Central. No entanto, com os combates prolongados e o Ocidente fechando as portas financeiras, esses planos ficaram em espera. Agora, com a mudança no cenário político, Moscou e Teerã precisam redefinir suas estratégias. Assad era seu principal aliado em Damasco e, sem ele, sua influência sobre o futuro sírio torna-se incerta. Ainda assim, ambos os países buscam preservar os investimentos já feitos e garantir algum nível de controle sobre os rumos da reconstrução. Em Teerã, discute-se ansiosamente se o novo governo honrará a dívida de mais de US$ 30 bilhões que Assad contraiu durante a guerra. O Ministério das Relações Exteriores iraniano tratou rapidamente de estabelecer contatos diplomáticos com a administração transitória – afinal, o Irã deseja manter ao menos uma parte de seus “interesses de longa data na Síria”, mesmo com a perda de seu aliado.
Já a Rússia, que abrigou o fugitivo Assad em Moscou, dá sinais de que tentará acomodar-se à nova realidade. Tropas russas ainda estão estacionadas na base aérea de Hmeimim e no porto de Tartus, no Mediterrâneo – enclaves estratégicos obtidos sob Assad. Para não perdê-los, Putin deve negociar com Al-Sharaa e Al-Bashir garantias de manutenção dessas bases e contratos previamente firmados. Fontes indicam que emissários russos em Amã e Ancara abriram conversas com representantes da oposição síria assim que o regime caiu, numa tentativa de “salvar o que for possível” dos interesses russos. Em suma, Rússia e Irã procuram se adaptar à queda de Assad, garantindo que, mesmo sem seu antigo cliente no poder, terão voz na futura ordem síria.
Do outro lado desse grande jogo, Estados Unidos e Europa observam com cautela. Paradoxalmente, o objetivo que Washington perseguia desde 2011 – remover Assad – foi alcançado não por uma intervenção americana, mas pela insurgência islamita e pelas pressões indiretas. Ainda assim, Washington não comemora abertamente. O chefe do novo governo de fato, Ahmad al-Jolani, carrega o estigma de ex-líder da Al-Qaeda síria e continua na lista de terroristas dos Estados Unidos. Por isso, o Ocidente mantém certa cautela: o reconhecimento formal do novo regime depende de ele provar que romperá com o extremismo e protegerá minorias. O G7 – grupo das principais democracias ocidentais – reuniu-se logo após a queda de Assad e adotou uma linha comum: apoiar “uma transição ordenada, rumo a um governo inclusivo, não extremista ou sectário”. Em outras palavras, os olhos estão postos em como o HTS se comportará no poder e se incorporará outras facções, como os curdos e liberais, num futuro arranjo político. Conferências urgentes juntaram diplomatas ocidentais e árabes em Amã e em Bruxelas para discutir condições ao auxílio internacional. Há quem defenda liberar fundos congelados e convocar um “Plano Marshall” para a Síria assim que possível, argumentando que deixar o país em ruínas seria receita para mais radicalização. Outros, porém, freiam a mão: ninguém quer investir bilhões para ver jihadistas no comando, tampouco legitimar um governo nascido das armas sem garantia de eleições livres adiante. O novo primeiro-ministro Bashir insiste que o HTS “rompeu com o jihadismo” e será dissolvido após garantir a transição, mas a desconfiança ocidental só diminuirá com passos concretos – participação de líderes civis seculares, garantia de direitos para mulheres e minorias, e, em prazo razoável, uma nova Constituição e eleições. Até lá, os Estados Unidos mantêm suas tropas no leste da Síria, estacionadas ao lado das forças curdas, vigiando os remanescentes do Estado Islâmico e, sobretudo, sinalizando ao HTS que não tolerarão um novo santuário terrorista ali. A Europa, com a crise migratória em mente, tende a condicionar qualquer pacote de ajuda à criação de um ambiente seguro para retorno dos refugiados. Em suma, o Ocidente dispõe de um poderoso trunfo econômico – desbloquear ou não a reconstrução – e pretende usá-lo como alavanca política, pelo menos até ter garantias de que a nova Síria não se tornará um Emirado fundamentalista sob outro nome.
O Brasil e a reconstrução da Síria: entre a marginalidade e a oportunidade
Em meio a essa intensa disputa de xadrez geopolítico, um jogador de peso médio manteve-se quase ausente durante todo o drama sírio: o Brasil. Desde 2011, Brasília assistiu à tragédia síria à distância, limitando-se a gestos discretos. Não que faltem laços: o Brasil abriga uma diáspora orgulhosa de origem síria (estima-se 4 milhões de descendentes sírio-libaneses no país) e historicamente cultivou relações amistosas com Damasco. Nos anos iniciais da guerra civil, o Itamaraty defendeu uma solução negociada, recusando alinhar-se a intervenções armadas. Contudo, o Brasil tampouco teve influência direta nos rumos do conflito, ficando de fora de fóruns-chave como as negociações de Genebra ou o processo de Astana, conduzidos por potências maiores. Durante o governo Temer (2016-2018), diante de uma tímida reabertura diplomática de Assad ao mundo, o Brasil ensaiou um maior envolvimento na Síria. O Itamaraty manifestou interesse em restaurar plenamente a embaixada em Damasco, que operava de forma reduzida a partir de Beirute por razões de segurança. No entanto, os desafios impostos pelo contexto internacional limitaram qualquer avanço significativo: a guerra persistia e as sanções impostas pelos Estados Unidos criavam riscos legais para empresas que considerassem investir no país. Com a eleição de Jair Bolsonaro, alinhado a Donald Trump, qualquer possibilidade de aproximação foi descartada, e o Brasil passou a adotar uma postura mais crítica, condenando abertamente as violações de direitos humanos perpetradas pelo regime sírio.
Até 2023, a atuação brasileira permaneceu periférica, sem uma posição clara de antagonismo à Síria, como adotaram os Estados Unidos e a União Europeia, mas também sem um engajamento ativo na reconstrução, como fizeram Rússia e Irã. O Brasil limitou sua participação ao envio de assistência humanitária por meio de agências da ONU e à concessão de vistos humanitários para um número restrito de refugiados sírios. Em março de 2024, num movimento atípico, o Senado brasileiro criou um Grupo Parlamentar Brasil-Síria, com o objetivo de estreitar laços e explorar oportunidades de investimento na reconstrução. Contudo, poucos meses depois, a queda de Assad reconfigurou completamente o tabuleiro político, impondo novos desafios e redefinindo as possibilidades de atuação brasileira na região.
Com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promovendo a ideia de um Brasil ativo na diplomacia global Sul-Sul, alguns enxergam uma chance de recuperar o tempo perdido. Primeiro, no campo diplomático: o Brasil pode se colocar como mediador imparcial. Não carrega o peso colonial das potências europeias, nem o sectarismo regional das potências do Oriente Médio. Em fóruns como a ONU, Brasília tem apoiado resoluções pedindo proteção aos civis sírios e o fim das hostilidades – recentemente votou a favor de uma condenação às violações de direitos humanos na Síria. Com sua tradição de diálogo, o Brasil poderia auxiliar nos esforços de reconciliação nacional síria, quem sabe patrocinando conversas entre o novo governo e opositores no exílio ou entre comunidades divididas. A experiência brasileira de anistia e Comissão da Verdade após a ditadura oferece lições úteis (ainda que a situação síria seja muito mais complexa). Além disso, o Brasil presidiu o Conselho de Segurança da ONU em 2022 e defendeu o princípio de “responsabilidade ao proteger” – buscando equilibrar intervenção humanitária com soberania. Esse princípio pode ser trazido à tona de novo: uma responsabilidade de reconstruir, em que a comunidade internacional ajuda a Síria a se reerguer evitando novos conflitos.
Em termos econômicos e de infraestrutura, empresas brasileiras poderiam enfim disputar uma fatia do renascimento sírio. Construtoras do Brasil já possuem histórico no Oriente Médio – nos anos 1980, a Andrade Gutierrez ergueu estradas no Iraque; a Odebrecht atuou em Dubai e na África. Apesar dos abalos causados pelas operações anticorrupção, a engenharia brasileira mantém competitividade. Reconstruir estradas destruídas entre Hama e Homs, reparar subestações elétricas ou mesmo erguer novas habitações populares em Aleppo são projetos nos quais o know-how brasileiro seria bem-vindo. O próprio ministro das Relações Exteriores brasileiro destacou, ainda em 2017, que a reconstrução da Síria seria “boa oportunidade” para empresas nacionais voltarem a ser players no cenário internacional. Essa visão parece mais palpável agora, com um governo sírio que possivelmente será menos isolado internacionalmente do que o de Assad. Além de construção civil, o agronegócio brasileiro poderia cooperar na retomada da produção agrícola síria – fornecendo sementes, tecnologia de plantio e assistência técnica para reviver campos que foram campos de batalha. A Síria já foi quase autossuficiente em trigo; hoje depende de doações para alimentar sua população. Empresas de alimentos ou a Embrapa poderiam, em coordenação com a FAO, ajudar a recuperar essa segurança alimentar, alinhando-se ao objetivo proclamado por Lula de combate à fome (dentro e fora do Brasil).
No âmbito da cooperação humanitária, o Brasil também tem espaço para liderar. O país ganhou experiência em missões de estabilização e ajuda pós-conflito no Haiti (liderou a Minustah por treze anos) e enviou tropas de paz ao Líbano. Embora uma missão de paz tradicional na Síria não esteja em pauta – o cenário político é outro – há demanda por missões civis: desminagem de áreas de conflito, treinamento de forças de segurança locais em direitos humanos, envio de médicos e enfermeiros para regiões carentes. O Exército brasileiro, reconhecido por ações cívico-sociais no Haiti, poderia contribuir com equipes de engenharia para construção de pontes e estradas temporárias, ou equipes de saúde para atender populações isoladas. Já as organizações civis brasileiras, apoiadas pelo governo, podem intensificar projetos como hospitais de campanha (a exemplo do hospital brasileiro que operou na guerra da Jordânia com o Iraque nos anos 2000) ou programas de educação para crianças refugiadas. Em 2023, após o terremoto devastador na fronteira Turquia-Síria, o Brasil enviou ajuda emergencial; esse espírito de solidariedade pode ser ampliado agora para a conjuntura pós-guerra. Tudo isso serviria não só à imagem internacional do Brasil como “potência humanitária”, mas principalmente aos sírios que carecem de quase tudo.
Entretanto, obstáculos e dilemas persistem para uma maior participação brasileira. A segurança no terreno sírio ainda é volátil – como o próprio Itamaraty alertou, ao recomendar que os poucos brasileiros ainda na Síria deixassem o país após a recente onda de violência que matou mais de mil civis. Investidores brasileiros só se sentirão confiantes com garantias mínimas de estabilidade e regras claras dadas pelo novo governo sírio (que ainda está formulando seu rumo). Além disso, o Brasil precisará calibrar sua atuação para não desagradar parceiros internacionais: um engajamento apressado sem coordenação poderia irritar Washington, enquanto uma timidez excessiva o deixaria de fora das oportunidades que China e Rússia certamente abraçarão. Equilíbrio será a palavra-chave. Brasília pode, por exemplo, trabalhar junto aos colegas do Brics – Rússia, Índia, China e África do Sul – para montar consórcios de investimento em infraestrutura na Síria, diluindo riscos e custos. Simultaneamente, pode manter diálogo com Europa e Estados Unidos para complementar esforços humanitários, assegurando que a ajuda chegue a quem precisa sem virar moeda política. O mais importante é que o Brasil atue de forma coerente com seus princípios: defesa da paz, do multilateralismo e do desenvolvimento inclusivo. Isso significa apoiar uma Síria verdadeiramente soberana e plural, onde nenhuma potência (seja oriental ou ocidental) imponha suas agendas à revelia dos anseios do povo sírio.
Fernando Brancoli é professor de Relações Internacionais da UFRJ.
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