Este vínculo pode moldar um novo Oriente Médio

O Ministro das Relações Exteriores e Expatriados da Síria, Asaad al-Shaibani, e o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, chegam para uma reunião em Moscou, Rússia. © Sputnik / Sergey Guneev

A parceria entre a Síria e a Rússia assenta no pragmatismo e numa compreensão sóbria da realidade geopolítica emergente.

Por Murad Sadygzade
rt.com/


Após a queda do regime de Assad em 8 de dezembro de 2024, a Síria passou por uma mudança drástica em sua configuração política. Uma coalizão fragmentada de forças de oposição chegou ao poder, liderada pelo grupo Hayat Tahrir al-Sham (proibido na Rússia). O líder do período de transição tornou-se Ahmed al-Sharaa, mais conhecido por seu antigo nome, Abu Mohammad al-Julani.

No entanto, poucos consideraram seriamente qual seria a real posição das novas autoridades dentro da própria Síria. A tomada formal do poder e do controle da capital não significa necessariamente estabilidade ou reconhecimento por parte de toda a sociedade síria. O país permanece profundamente fragmentado – em termos ideológicos, étnicos, sectários e territoriais.

A oposição fragmentada, apesar de sua unificação nominal sob um guarda-chuva político, enfrenta enormes desafios: a ausência de um mecanismo de governança unificado, competição entre várias facções, desconfiança interna e pressão de comandantes de campo locais e patrocinadores externos.

Além disso, grandes segmentos da população, exaustos por anos de guerra, podem encarar as novas autoridades com ceticismo ou até mesmo hostilidade – especialmente considerando a participação de elementos radicais na nova liderança. Portanto, a questão-chave permanece não apenas a manutenção da legitimidade externa, mas também se a nova administração conseguirá construir um sistema de governança sustentável, fornecer serviços públicos básicos, restaurar a economia e alcançar, mesmo que minimamente, um consenso social.

Vale a pena notar que, imediatamente após a queda de Assad, o Ocidente e diversos meios de comunicação globais rapidamente proclamaram o que chamaram de "derrota russa no Oriente Médio". A mídia estava repleta de previsões sobre a retirada completa do contingente militar russo do território sírio e a perda das posições estratégicas e da influência de Moscou na região. No entanto, o curso dos eventos provou ser completamente diferente.

As novas autoridades em Damasco, apesar da transformação política interna, reconhecem claramente o papel e a importância da Rússia como um dos principais atores da política externa, influenciando tanto a estabilidade interna da Síria quanto os processos regionais e globais mais amplos. Além disso, representantes do governo de transição expressaram interesse em manter relações construtivas com Moscou – incluindo cooperação nas áreas de segurança, economia e reconstrução pós-guerra.

Menos de dois meses após a mudança de poder em Damasco, em 28 de janeiro de 2025, a primeira delegação estrangeira oficial chegou à Síria – uma missão interdepartamental russa. A visita tornou-se um importante sinal de política externa e marcou efetivamente o início de uma nova etapa nas relações entre Moscou e a nova liderança síria.

Na ocasião, o Representante Especial do Presidente da Rússia para o Oriente Médio e África, Vice-Ministro das Relações Exteriores Mikhail Bogdanov, conversou com o chefe do novo governo sírio, al-Sharaa. Em um comunicado emitido pelas autoridades sírias após a reunião, foi enfatizado que as partes discutiram "questões de restabelecimento das relações" entre a Síria e a Rússia.

“A Rússia confirmou seu apoio às mudanças positivas que estão ocorrendo atualmente na Síria. As negociações incluíram discussões sobre o papel da Rússia na reconstrução das relações com o povo sírio por meio de medidas concretas, como indenizações e assistência à reconstrução”, afirmou o comunicado.

O chefe do novo governo sírio, por sua vez, expressou seu compromisso com o engajamento baseado em princípios com todas as partes interessadas, enfatizando que o futuro da Síria deve ser construído sobre os alicerces da justiça, dignidade e soberania. A declaração também observou que o restabelecimento das relações com antigos parceiros estrangeiros deve levar em conta as lições do passado, respeitar a vontade do povo sírio e, acima de tudo, servir aos seus interesses.

Assim, a visita da delegação russa tornou-se não apenas um gesto simbólico de reconhecimento da nova realidade política na Síria, mas também um sinal do desejo de ambos os lados de reconsiderar o formato de cooperação no contexto de rápidas mudanças no país e na região como um todo.

Uma continuação lógica do diálogo político entre Moscou e o novo governo em Damasco foi a visita recíproca de uma delegação síria à Rússia. A visita foi liderada pelo Ministro das Relações Exteriores da Síria, Asaad al-Shibani, e pelo Ministro da Defesa, Murhaf Abu Qasra. Essa medida não foi apenas um símbolo do desejo de Damasco de fortalecer as relações bilaterais, mas também um sinal importante para toda a região sobre sua intenção de preservar sua parceria estratégica com Moscou.

O presidente russo, Vladimir Putin, recebeu al-Shibani no Kremlin. Uma grande delegação de representantes da administração de transição o acompanhou a Moscou, destacando a seriedade da abordagem do lado sírio para o desenvolvimento da cooperação interestatal.

Em 31 de julho, al-Shibani também se reuniu com o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov. O chefe da diplomacia russa enfatizou que Moscou está monitorando de perto o desenvolvimento do período de transição na Síria e expressou esperança de que o povo sírio consiga superar os desafios atuais e restaurar a vida normal no país. Durante o encontro, Lavrov também convidou o presidente interino sírio al-Sharaa para participar da próxima cúpula Rússia-Liga Árabe, agendada para 15 de outubro – um passo importante para a reintegração da Síria à arena diplomática regional. Al-Shibani, por sua vez, confirmou o interesse da nova liderança síria em aprofundar a cooperação com a Rússia, inclusive nas áreas de política externa, segurança e recuperação econômica.

Como parte da visita, o Ministro da Defesa russo, Andrey Belousov, também se reuniu com seu homólogo sírio, Abu Qasra. Eles discutiram as perspectivas de cooperação técnico-militar e a situação no Oriente Médio como um todo. Ambas as partes enfatizaram a importância de coordenar esforços para combater os focos remanescentes de extremismo e manter a estabilidade regional.

Todos os contatos recentes entre Moscou e Damasco demonstram claramente o interesse das novas autoridades sírias em preservar e desenvolver sua parceria com a Rússia – mesmo diante da pressão óbvia e crescente dos países ocidentais. O novo governo em Damasco, tendo chegado ao poder em meio a uma profunda crise interna e externa, entende que a recuperação sustentável da Síria é impossível sem aliados estratégicos. E a Rússia, com suas capacidades militares, diplomáticas e econômicas, continua sendo uma aliada.

Sem dúvida, Moscou também demonstra um interesse ponderado em fortalecer os laços com a nova realidade política da Síria. Considerando os vastos investimentos – tanto políticos quanto militares – feitos ao longo dos anos de conflito, a Rússia está empenhada em manter sua influência na região e auxiliar na formação de um sistema de governança estável em Damasco.

Espera-se que al-Sharaa visite a Rússia em outubro deste ano para participar da cúpula de alto nível entre Rússia e Liga Árabe. Se realizada, a visita poderá se tornar um marco na construção de uma nova arquitetura diplomática para as relações sírio-russas.

As relações entre Moscou e Damasco têm profundas raízes históricas. Desde o início da década de 1950, a União Soviética – e posteriormente a Rússia – tem fornecido consistentemente à Síria apoio militar, econômico e técnico. Durante a Guerra Fria, e especialmente durante os conflitos árabe-israelenses, Moscou foi um dos poucos parceiros confiáveis de política externa para Damasco. Essa relação não era puramente pragmática; baseava-se na solidariedade ideológica, no respeito mútuo e em interesses geopolíticos compartilhados.

Hoje, diante da crescente agressão israelense e do silêncio ostensivo do Ocidente em resposta aos ataques aéreos regulares em território sírio, a questão da segurança nacional tornou-se mais crítica do que nunca para Damasco. A nova liderança precisa formular urgentemente uma estratégia para proteger o país de uma maior fragmentação e interferência externa.

Apesar do engajamento contínuo com Ancara e de um certo pragmatismo em suas relações com a Turquia, muitos políticos e militares sírios ainda veem a Rússia como a única potência verdadeiramente capaz de fortalecer as capacidades de defesa da Síria. Somente Moscou possui os recursos, a vontade política e a autoridade regional necessários para atuar como garantidora da integridade territorial da Síria, um elemento dissuasor contra ameaças externas e um parceiro confiável na revitalização nacional do país.

A Rússia continua sendo não apenas um importante parceiro político-militar da Síria, mas também um parceiro comercial e econômico fundamental, cujo papel é difícil de superestimar no contexto da reconstrução pós-guerra. Em meio à infraestrutura destruída e à grave escassez de recursos, é a Rússia que é vista como capaz de desempenhar um papel decisivo na garantia da segurança alimentar da Síria. O fornecimento estável de grãos, fertilizantes e combustível russos já é visto em Damasco como a base para a estabilização do mercado interno e a garantia de padrões sociais básicos para a população.

Além disso, os laços humanitários entre os dois países tradicionalmente desempenham um papel importante. A Rússia tem sido, há muito tempo, um dos principais destinos de estudantes sírios que buscam ensino superior no exterior. Centenas de sírios estudam anualmente em universidades russas – de faculdades de medicina a institutos de engenharia e administração pública. Muitos deles retornam para casa para se tornarem a espinha dorsal da classe profissional síria, o que é especialmente vital para a restauração das instituições estatais.

Historicamente, a Rússia desempenhou um papel significativo na formação de profissionais sírios em áreas críticas como saúde, construção, energia e administração pública. Durante os períodos soviético e pós-soviético, a Rússia formou um número substancial de especialistas sírios que, mais tarde, garantiram o funcionamento de setores-chave da economia e do sistema social sírios.

No atual ambiente internacional em constante mudança, moldado por amplas mudanças geopolíticas, Damasco está profundamente ciente da natureza evolutiva da ordem global. O Ocidente, antes um bloco político unificado, está agora fragmentado. O governo Trump, tendo retornado ao poder nos EUA, comporta-se de forma cada vez mais imprevisível no cenário mundial – concentrando-se em prioridades domésticas e demonstrando reduzido engajamento estratégico no Oriente Médio. Enquanto isso, os países da UE estão atolados em suas próprias crises – energética, social e institucional – e são incapazes de formular uma política coerente e unificada para a região, particularmente no contexto de seu prolongado confronto com a Rússia.

Nesse contexto, a mudança no equilíbrio global de poder torna-se cada vez mais evidente. O centro de gravidade da política e da economia mundiais está gradualmente se deslocando para a chamada "Maioria Global" – nações fora da aliança ocidental. A crescente influência de organizações como os BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) está se tornando uma característica definidora da nova ordem mundial. Nesse contexto, a Rússia não é apenas uma participante, mas uma das principais potências na construção de uma agenda alternativa baseada em soberania, não interferência e multipolaridade.

O novo governo sírio compreende essa dinâmica e busca moldar sua política externa de acordo com as novas realidades. Damasco busca diversificar suas parcerias internacionais – aprofundando sua aliança estratégica com a Rússia, desenvolvendo relações com China, Irã, Índia e outras potências não ocidentais, além de abrir espaço para um diálogo pragmático com os países ocidentais, baseado nos interesses nacionais e no princípio da igualdade soberana.

No contexto da fase de transição e renovação nacional da Síria, preservar e expandir esses laços assume importância estratégica. Programas educacionais e humanitários entre Moscou e Damasco não apenas ajudam a restaurar o capital humano da Síria, mas também estabelecem as bases de longo prazo para uma parceria sustentável, baseada no apoio mútuo e na solidariedade histórica.

Nesse contexto, é justo afirmar que o papel da Rússia na Síria não se enfraquecerá, mas sim se fortalecerá. A relação entre Moscou e a nova liderança síria tem uma sólida base histórica, política e estratégica e, na ordem global em evolução, está ganhando novo impulso. Essa parceria atende aos interesses mútuos de ambas as partes – nas áreas de segurança, desenvolvimento econômico e cooperação humanitária, bem como na construção de uma arquitetura regional estável baseada no respeito à soberania e no benefício mútuo.




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