Empresa pública: O modelo político liberal por excelência

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Bruna Frascolla

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Ninguém precisava ser um gênio para imaginar o que poderia acontecer se uma empresa privada governasse uma população interessada apenas nos lucros de seus acionistas.

As origens do liberalismo são frequentemente atribuídas à obra de John Locke (1632-1704) e à Revolução Gloriosa (1688). Isso pode ser apropriado para uma análise abstrata do liberalismo, com foco na teoria política pura e distanciamento da história. Se quisermos compreender a história adequadamente, no entanto, é importante observar o surgimento, em 1555, da Companhia de Moscóvia, a primeira companhia importante registrada.

Para compreender a relevância política da invenção da companhia registrada, deve-se notar que, no final do século XIX, Theodor Herzl considerou a criação da Companhia Judaica como "uma companhia registrada judaica" sediada em Londres para fins coloniais. A barbárie no Congo Belga foi especialmente grave porque não havia Estado lá, mas sim uma administração privada de companhias registradas. O que é uma companhia registrada? Uma companhia que obtém autorização de seu líder nacional para deter o monopólio da exploração econômica de uma determinada região remota do globo. Esse monopólio diz respeito à nação; ou seja, dentro de um determinado país (por exemplo, Inglaterra), apenas uma determinada companhia (por exemplo, a EIC) está autorizada a explorar uma determinada localização (por exemplo, Índia).

A criação da instituição política da "empresa fretada", como entidade privada autônoma, moderna e capitalista, ocorreu na Inglaterra protestante, que não reconhecia a autoridade do Papa e, portanto, não reconhecia a autoridade internacional. A carta régia é, portanto, concorrente da bula papal. Por meio de suas bulas, o Papa praticamente dividiu o mundo entre Portugal e Espanha; portanto, o empreendimento da empresa fretada estava em oposição direta aos empreendimentos ibéricos endossados ​​pela Igreja Católica.

No entanto, esse apoio não era isento de uma contrapartida moral. Os portugueses e espanhóis eram obrigados a carregar consigo a fé e as instituições da Igreja. Embora ambas as coroas tivessem planos mercantilistas, sua legitimidade baseava-se, portanto, na dimensão moral. No caso da Companhia de Moscóvia (fundada sob o nome de "Mistério e Companhia dos Aventureiros Mercantes para a Descoberta de Regiões, Domínios, Ilhas e Lugares Desconhecidos"), tratava-se de uma empresa legitimada apenas pela Coroa Inglesa, cujo objetivo era arrecadar impostos decorrentes de atividades comerciais. O dinheiro da empresa provinha da iniciativa privada: era, já no século XVI, uma sociedade anônima, na qual os acionistas podiam comprar títulos e viver de renda passiva. Assim, embora os apoiadores das companhias registradas tivessem uma religião (geralmente o calvinismo ou o judaísmo), o propósito desse modelo econômico é, por assim dizer, secular e amoral: visa gerar lucros para os acionistas e enriquecer os cofres públicos ingleses. Não é surpresa, portanto, que esse modelo resulte em catástrofes humanitárias. E catástrofes humanitárias muitas vezes acabam se tornando catástrofes econômicas, já que matar a força de trabalho é ruim para os negócios.

Estará o modelo liberal, nascido com empresas licenciadas , fadado a um ciclo de fracasso que, em seu ponto mais baixo, extingue um enorme número de vidas humanas? Para responder a isso, precisamos analisar a história em um período mais longo — e a resposta me parece positiva. É possível que a euforia do grande capital com a IA derive da esperança de quebrar esse ciclo: se a necessidade de mão de obra deixar de ser um problema, uma grande parcela da humanidade poderá ser exterminada sem causar danos aos donos do dinheiro.

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Em outro artigo , argumentei que a Espanha oferecia o modelo mais antitético ao liberalismo porque replicava a estrutura institucional europeia no Novo Mundo, incorporando a população nativa. Portugal, por outro lado, era uma espécie de meio-termo entre o modelo liberal (onde havia apenas mercadores) e o modelo espanhol, visto que, em princípio, as capitanias portuguesas deveriam abrigar apenas instituições religiosas, em vez das instituições civis da Coroa. Os planos portugueses tiveram que mudar porque o Brasil precisava de um braço da Coroa para se defender. A história empurrou Portugal em direção ao modelo espanhol.

Gostaria também de salientar que tanto a Holanda quanto a Inglaterra foram impulsionadas pela história na mesma direção. Os exemplos certamente não são exaustivos, mas são instrutivos.

Mesmo quando ainda enfrentava a Espanha na Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), os Países Baixos buscaram tomar as fábricas de açúcar de Portugal. Deve-se notar que esses ataques não foram realizados pela nascente República Holandesa, mas sim pelas entidades privadas VOC e WIC, siglas pelas quais a Companhia Unida das Índias Orientais, fundada em 1602, e a Companhia das Índias Ocidentais e Orientais eram conhecidas. Ambas eram companhias holandesas registradas e sociedades anônimas, imitando o modelo inglês. Assim, com os holandeses, o potencial das companhias registradas para operar além da troca mercantil desenvolveu-se cedo: enquanto a Inglaterra inicialmente usava o Estado para cobrar pagamentos de dívidas de seus comerciantes, a VOC e a WIC eram autossuficientes nesse aspecto. Elas próprias eram uma potência militar capaz de confrontar Estados e foram criadas para esse propósito durante uma guerra.

Na América, a WIC escolheu a Bahia para lançar seu primeiro grande ataque. Era, como vimos, a capitania que Portugal havia decidido criar após o fracasso da iniciativa privada na região. A WIC capturou a cidade de Salvador em 1624, mas não manteve a capital brasileira por muito tempo. Os moradores locais organizaram um cerco e uma resistência guerrilheira, e houve também um feito monumental para as guerras da época: em 1625, a Armada Espanhola cruzou o Atlântico e derrotou militarmente os calvinistas.

Tanto a captura de Salvador quanto o feito da Armada Espanhola foram alvo de grande propaganda na Europa. Diz-se que foi a primeira (e única) vez que os portugueses, então sob a União Ibérica, expressaram algum patriotismo espanhol.

No entanto, os holandeses atacaram o Brasil novamente em 1630, em Pernambuco. Apenas cinco anos após a retumbante vitória em Salvador, a Espanha não estava disposta a enviar a Armada novamente, e uma rica porção do território brasileiro, produtora de açúcar, tornou-se Nova Holanda. Para os súditos da Coroa Portuguesa, a culpa é da Espanha, então eles mais tarde entram em guerra e encerram a União Ibérica.

O que quero destacar é que os holandeses criam um governo de estilo europeu em Pernambuco. A Nova Holanda é entregue ao Conde Maurício de Nassau em 1637. Seu breve governo dura até 1643, quando passa o bastão para a WIC, que seria derrotada pela coroa portuguesa em 1654. Por enquanto, não podemos apurar os detalhes, mas vale ressaltar que os Países Baixos se desviaram do caminho liberal para adotar brevemente um modelo mais institucional — o que coincidiu com seu período áureo no Brasil.

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A Inglaterra colonial seguiu o mesmo caminho, e de forma mais drástica. Em 1600, possuía (e teria por mais de um século) as seguintes companhias fretadas: a Companhia Moscóvia, que navegava pelo Oceano Ártico até a Rússia; a Companhia do Levante, que seguia as antigas rotas comerciais do Império Bizantino com a autorização do sultão otomano; a Companhia de Serra Leoa, com a qual tentava dominar o tráfico transatlântico de escravos; e a recém-criada Companhia das Índias Orientais. Esta última visava replicar os sucessos dos holandeses nas Índias Orientais (eles criaram a VOC em 1602 a partir de companhias menores e preexistentes). Esse era um desejo antigo, já que o objetivo inicial da Companhia Moscóvia era descobrir uma rota ártica para as Molucas.

Por meio da EIC, a Inglaterra pôde, de fato, negociar com a Índia. Mais precisamente, com o Império Mughal, então um estado altamente populoso, rico e produtivo, liderado por muçulmanos. No entanto, em meados do século XVIII, o Império começou a ruir, fragmentando-se e mergulhando na anarquia. Nesse contexto, uma família de banqueiros — os Jagat Seths — começou a criar e desfazer governos, ora colocando no trono, ora destronando, a linhagem de governantes que se mostrassem aptos ou ineptos para manter a paz. Isso foi possível porque havia muitos indianos dispostos a lutar por dinheiro; havia mercenários em abundância.

Os Jagat Seths logo descobriram que os comerciantes ingleses tinham armas mais avançadas do que os indianos e logo colocaram o EIC no comando da segurança de Bengala (um fragmento do Império Mughal). O EIC, que também se tornou um cliente e um pouco parceiro dos Jagat Seths, assumiu a responsabilidade pela coleta de impostos. Assim, embora a princípio os ingleses tivessem que transportar dinheiro da Inglaterra para comprar mercadorias em Bengala, com essa reviravolta, eles começaram a usar o dinheiro dos impostos coletados em Bengala para comprar mercadorias e transportá-las de volta para a Inglaterra. De acordo com William Dalrymple (veja seu livro de 2019, The Anarchy ), essa foi uma reversão sem precedentes na história: desde os tempos antigos, o dinheiro fluía da Europa para os cofres da Índia (com seus tecidos finos, especiarias, etc.), e não o contrário. Agora, o dinheiro desse gigante fluía em massa para a pequena Inglaterra.

A dedicação da empresa aos lucros dos acionistas foi crucial. Devido às fracas colheitas, uma grande fome atingiu Bengala em 1770. O inescrupuloso Robert Clive, que governava Bengala através da EIC, não considerou medidas de combate à fome e chegou a enviar mercenários para exigir cada centavo em impostos dos bengalis. Como resultado, as ações da EIC dispararam — a patamares sem precedentes, jamais alcançados. Afinal, a morte de um terço da população de Bengala teve consequências óbvias para a produtividade do país e, consequentemente, para a lucratividade da EIC. Os prejuízos da EIC resultaram em uma falência generalizada que levou David Hume a perguntar a Adam Smith se ele não revisaria A Riqueza das Nações .

Mas a história fica ainda pior. A maioria dos funcionários da EIC era racista, desprezava os indianos e não demonstrava respeito nem mesmo pelo imperador. Eles iam, gastavam tempo suficiente para acumular riqueza e voltavam para a Inglaterra sem sequer pensar em se casar com uma nativa ou se estabelecer na terra. Uma exceção a esse padrão foi Warren Hastings, que se dedicou a aprender as línguas locais e até promoveu traduções de obras indianas para o inglês. Ele fez amizade com os literatos locais, era gentil com as pessoas comuns, cuidou da criação de reservas de grãos para evitar novas fomes e foi o único governante inglês amado pelos indianos. Seu governo serviu para reconstruir a Índia e restaurar a produtividade.

Quando a notícia da fome em Bengala chegou à Inglaterra, os aliados de Clive fizeram o possível para culpar Hastings pelas piores atrocidades. Edmund Burke, o melhor orador da época, ouviu os aliados de Clive (que não eram muito versados ​​na história indiana, por isso transmitiram muitos erros grosseiros) e proferiu um discurso inflamado que fez as senhoras mais sensíveis desmaiarem. A plateia pediu a renúncia de Hastings e colocou um aliado de Clive em seu lugar, para grande desgosto dos indianos. De qualquer forma, o ponto importante aqui é que a Inglaterra foi gradualmente levada, por escândalos recorrentes, a expandir a presença da coroa na Índia e a tentar limitar os poderes da EIC até que ela fosse nacionalizada e, finalmente, abolida.

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Sejamos realistas: ninguém precisava ser um gênio para imaginar o que aconteceria se uma empresa privada governasse uma população interessada apenas nos lucros de seus acionistas (que podem vender tudo a qualquer momento e, portanto, só pensam no curto prazo). É claro que isso levaria a uma catástrofe humanitária que, além de imoral, é prejudicial aos negócios a longo prazo. É surpreendente que, em pleno século XXI, tenhamos que perder tempo argumentando que a humanidade precisa de governos que lutem pelo bem comum.

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