A DISPUTA PELA NARRATIVA DA VIOLÊNCIA - Quando a comoção midiática inspira novos ataques

Ato em defesa da EMEI Antônio Bento, da escola pública, da educação antiracista e contra a intolerância religiosa, a violência policial e o abuso de poder. Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil

Expor nomes e métodos de autores de massacres tanto na imprensa quanto nas redes sociais pode estimular novos ataques em poucos dias, funcionando como gatilho para crimes por imitação

Isabella Mendes e Juliana Meato

A imprensa escrita e audiovisual desempenha um papel importante na construção das narrativas sobre violência escolar, escrevia Éric Debarbieux (1998), importante pesquisador sobre o tema. Nesta mesma linha, Sue Klebold (2016), mãe de um dos adolescentes que executaram o traumático ataque à Columbine High School (EUA – 1999), afirma que quando a cobertura da imprensa dá detalhes em excesso sobre este tipo de violência, tais como divulgar o nome dos autores de ataques contra escolas e a sua dinâmica, ela inspira seguidores e lhes dá um modelo em cima do qual poderão delinear seus próprios planos. Não por acaso, duas décadas depois, no Brasil, Columbine inspirou diretamente o ataque à Escola Estadual Raul Brasil (Suzano – 2019). A dupla de jovens que atacou a escola em Suzano – segundo revelaram as investigações – desejava superar o episódio de Columbine em matéria de número de vítimas e destaque midiático.

Com a popularização da Internet e redes sociais plataformizadas, a comoção após a ocorrência de episódios de violência extrema em escolas ganhou novos contornos, uma vez que a produção de conteúdos audiovisuais e textuais deixou de ser tarefa exclusiva das redações da grande imprensa especializada e passou a também ser produzida por quaisquer pessoas que tenham acesso a uma conta. Isso se torna especialmente problemático quando os códigos desta comoção midiática são amplamente compartilhados em comunidades virtuais extremistas da machosfera, onde é conhecido que os homens que executam a violência escolar extrema são celebrados como heróis pelos frequentadores e se tornam demarcadores a serem superados no futuro.

Flora Daemon (2015), jornalista e pesquisadora sobre ataques contra escolas, afirma que alguns jovens desejam “inscrever” seus nomes na história a partir de atos infames – não apenas como crime, mas como ato comunicacional – e transformam os atos de violência dura em “pacotes midiáticos” que são disponibilizados de muitas formas, incluindo uploads em sites e envio direto para emissoras de tv, a exemplo do autor do atentado contra Virginia Tech (EUA), em 2017, que enviou seu material para divulgação ampla na imprensa momentos antes de executar seu plano macabro.

Nas plataformas digitais, tanto o discurso de ódio quanto a produção de conteúdos sobre violência se tornam ativos de amplo engajamento e o caso mais recente, ocorrido no Cefet-Maracanã (RJ) após um homem, servidor da instituição, assassinar a sangue frio Allane Pedrotti e Layse Costa, duas colegas de trabalho que estavam em posição de chefia, chama nossa atenção devido à falta massiva de uma educação crítica das mídias. A lógica do algoritmo premia aqueles que produzem discursos calcados no sensacionalismo, ainda que por uma “boa causa”.

A influenciadora – e até mesmo pessoas diretamente envolvidas na situação, como familiares das vítimas – ao publicarem sua indignação e estimularem a divulgação do nome do assassino de Allane e Layse, caminham na contramão dos protocolos de posvenção em casos de violência extrema. Esses protocolos foram adotados tardiamente pela grande mídia, em abril de 2023, após uma grave onda de ataques sucessivos contra escolas.

O Relatório de Recomendações para o Enfrentamento do Discurso de Ódio e Extremismo no Brasil, do Ministério dos Direitos Humanos (2023), enfatiza a importância de estimular práticas pedagógicas no âmbito escolar e digital capazes de limitar a espetacularização de massacres e a difusão de rumores associados a esses eventos, buscando mitigar o efeito-imitação.

De acordo com o relatório Ataques de violência extrema em escolas no Brasil (D3E, 2023), a cobertura jornalística de um massacre – ao expor o nome dos autores e os métodos empregados – pode desencadear até três novos eventos da mesma natureza na semana seguinte. O mesmo efeito pode ocorrer com a disseminação de postagens nas redes sociais, que funcionam como uma convocatória para crimes por imitação (copycat crimes).

Já o relatório Ataque às Escolas no Brasil, do MEC (2023), orienta que a educação crítica para as mídias e a educomunicação devem atravessar os componentes curriculares. O documento também recomenda formações que promovam o uso seguro, consciente e responsável da internet, com foco em letramento midiático e cidadania digital, como estratégias de enfrentamento às violências.

Ora, o apelo midiático irrefletido mobilizado tanto pelos usuários das redes sociais quanto pela grande imprensa criam o efeito adverso de minar a capacidade de recuperação da comunidade escolar, além de promover o risco de que acontecimentos da mesma natureza ocorram em outras instituições.

Após o inaceitável episódio de feminicídio ocorrido no Cefet-Maracanã, observamos diversas postagens em redes sociais que reivindicavam a ampla divulgação do nome do assassino de Allana e Layse, pedido este que, em meio à revolta pela barbaridade do ocorrido, o concederá a injusta glória de inscrever seu nome na história a partir de seu ato infame. Este homem não pode se tornar inspiração para outros homens sedentos por afirmar sua virilidade perante a sociedade por meio de atos de violência.

Enquanto não houver uma reflexão profunda sobre a visibilidade e narrativa das violências escolares alinhadas às estratégias de educação midiática e formação em direitos humanos, pouco avançaremos no combate à violência extrema escolar e ao feminicídio. Justamente pelo risco do efeito-imitação que é preciso repensar as condições de visibilidade. Não podemos permitir que a morte de Allana e Layse inspire novas mortes de mulheres ou ataques contra escolas. Devemos entregar aos homens que cometem atos de violência contra mulheres e escolas o ostracismo e responsabilização por seus atos, sem direito a reivindicar um diagnóstico psiquiátrico como atenuante para a misoginia. Misoginia não é um transtorno psiquiátrico e, assim como a violência extremista masculina, é estrutural e precisa ser combatida firmemente.


Isabella Mendes é historiadora e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Juliana Meato é mestranda em Educação pela Universidade de São Paulo, Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Narrativas e Experiências Escolares (NARRAR-USP) e membro do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Violências Escolares (NEPEVE-UFPE)


Chave: 61993185299

 

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