A extrema-direita contra a mídia pública: "É uma forma de disciplinar qualquer um que questione seus valores."

Fontes: O jornal


De Trump a Milei e Le Pen, a extrema-direita questiona a existência da imprensa pública, que acusa de ser "ideologizada" e "politicamente correta"; os extremistas disfarçam seu ataque à liberdade e ao direito à informação como uma luta contra o discurso hegemônico.

Durante uma viagem no Air Force One, uma repórter perguntou ao presidente dos EUA sobre a designação da Antifa como organização terrorista. "Para qual veículo de comunicação a senhora trabalha?", perguntou ele. "Para a NPR", respondeu ela, ao que Trump, em tom de deboche, perguntou à sua secretária de imprensa: "Eles ainda estão aqui?". A repórter insistiu na pergunta sobre a Antifa. Ele sorriu e perguntou: "Eles têm alguma ligação com o seu veículo de comunicação?".

O desprezo de Trump pelo jornalismo faz parte de sua imagem pessoal, mas não é uma característica exclusiva dele. A extrema direita vê a mídia em geral — e a mídia pública em particular — como um inimigo a ser combatido com todas as estratégias possíveis: de ataques verbais e difamação a sanções econômicas, da censura exercida por meio de leis e órgãos reguladores à apropriação de veículos de mídia pública para transformá-los em meros canais de disseminação de sua mensagem.

“Devido ao seu apego à tradição, aos princípios religiosos e ao status quo, os partidos de direita se posicionaram contra esferas capazes de fomentar a dúvida, o questionamento e a crítica”, explica Micaela Cuesta, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Democracia e Autoritarismo da Universidade Nacional de San Martín (Argentina). Entre esses inimigos históricos — intelectuais, ciência e arte — emerge a figura do comunicador, “o ponto de referência mais visível na tarefa de desafiar as injustiças, oferecer alternativas e possibilitar outras perspectivas”, destaca Cuesta.

Não é por acaso que figuras como Javier Milei, Viktor Orbán, Giorgia Meloni, Marine Le Pen ou o próprio Santiago Abascal, na Espanha, constantemente atacam a imprensa: “Atacá-la significa, por um lado, deslegitimar um dos principais agentes da democratização do conhecimento e, por outro, disciplinar quem ousa contestar significados que colocam seus valores em risco”, resume o especialista.

E por que focar na mídia pública? “Porque é uma forma de semear desorientação, falta de pontos de referência e descrença no valor epistêmico da opinião pública”, diz Cuesta. E de reconhecer a informação como um direito. “A extrema direita, aliada hoje a um ecossistema tecnológico hipermediatizado, oferece argumentos simplistas, bodes expiatórios, teorias da conspiração…”, o completo oposto do que a mídia, entendida como um serviço público, representa.

A posição da extrema-direita espanhola encaixa-se perfeitamente nesta estratégia de desacreditar a emissora pública: por um lado, destacando o custo e questionando a sua natureza de serviço público; e, por outro, acusando-a de manipulação e parcialidade. Na última audiência da comissão da RTVE no Congresso, o deputado do Vox resumiu o seu plano caso cheguem ao poder: “Só teremos uma pergunta, e é se vamos entrar com uma motosserra ou um lança-chamas”.

Na verdade, embora os ataques à imprensa não sejam novidade, o que mudou foi a ferocidade da agressão, que desconsidera as limitações e os mecanismos de controle do processo democrático. Além disso, a nova extrema-direita não só opera — com muita eficiência — em nível local, como também tem alcance global, como demonstra o caso recente da BBC, que viu a renúncia de seus dois diretores editoriais após críticas da Casa Branca a uma reportagem sobre a invasão do Capitólio e o papel de Donald Trump naquele dia.

Reino Unido: ataque a um importante jornalista

A BBC é um caso único devido ao seu alcance internacional e às suas regras detalhadas sobre autonomia e imparcialidade: é o meio de comunicação social mais confiável para o público no Reino Unido e nos Estados Unidos.

O papel da emissora na vida pública é tal que até mesmo as vozes da extrema-direita dependem dela. Nigel Farage, líder do Partido da Reforma, de extrema-direita, é um dos políticos mais entrevistados, apesar de sua mínima representação parlamentar, e chegou a ser comentarista frequente da emissora. Agora, Farage apoia os ataques de Trump e faz campanha contra a taxa de licenciamento que os telespectadores pagam à BBC para seu financiamento.

O Partido Conservador não se atreveu a fazer uma proposta tão explícita, mas pressionou por críticas na Câmara dos Comuns e dentro da própria empresa pública pelo que considera vieses de esquerda na cobertura da guerra em Gaza, dos direitos dos transgêneros, da história do colonialismo e das eleições americanas.

Eles são “monstros”, são a “esquerda radical” que “causou tanto dano” aos Estados Unidos. Foi assim que o presidente americano Donald Trump se referiu à televisão e ao rádio públicos, PBS e NPR, pouco depois de retornar à Casa Branca. E não é só isso. Além dos insultos, Trump chegou com um corte orçamentário de US$ 1,1 bilhão que deixou ambas as empresas com financiamento mínimo e ameaça a existência de 330 afiliadas locais da PBS e 246 afiliadas da NPR.

Além disso, Trump ordenou cortes drásticos na Voz da América, a veterana emissora de rádio, um símbolo da Segunda Guerra Mundial que permaneceu uma voz vital para os EUA durante toda a Guerra Fria. Em março, ele assinou uma ordem executiva instruindo a Agência de Mídia Global dos EUA a reduzir suas “funções estatutárias e pessoal associado ao mínimo exigido por lei”. Um dia depois, a Voz da América saiu do ar pela primeira vez em 83 anos e suspendeu temporariamente quase todos os seus funcionários em tempo integral.

Milei, privatizações e as 'forças do céu'

A motosserra de Javier Milei foi desencadeada contra a imprensa pública assim que ele chegou à Casa Rosada. A primeira mensagem foi contundente: fechar a agência de notícias pública argentina, Télam, fundada em 1945 e a mais importante da América Latina. Mais de 300 demissões e um mantra: "As pessoas não odeiam jornalistas o suficiente". Jornalistas se tornaram uma obsessão para o presidente. "Milei tem uma espécie de exército no mundo digital sob o comando de Santiago Caputo (uma das pessoas com maior influência sobre o presidente). Há uma parte mais orgânica dentro da Casa do Governo, mas a parte mais forte é a inorgânica, o que eles chamam de 'forças do céu', que são diversos usuários do Twitter, um serviço de streaming chamado Carajo, e também aquele identificado como o 'documentarista' de Milei, Santiago Oria, que se dedicam a perseguir certos jornalistas", explica María O'Donnell, apresentadora de um dos programas de rádio mais ouvidos e alvo frequente dessas campanhas difamatórias, muitas vezes alimentadas por vídeos falsos criados com inteligência artificial.

Quanto à televisão e rádio públicas, seu destino desde o início foi a privatização, dificultada até agora pela falta de maioria do partido La Libertad Avanza no Congresso, mas que pode ganhar novo impulso após a vitória nas recentes eleições legislativas. Funcionários dessas entidades públicas reclamam de salários congelados e censura. Em contrapartida, o governo utiliza a propaganda oficial, que denunciou veementemente durante a campanha, para financiar veículos de mídia de extrema-direita como o La Derecha Diario, de propriedade do espanhol Javier Nègre. Em setembro, o presidente se indignou com seu então porta-voz e atual chefe de gabinete, Manuel Adorni, por permitir a veiculação de um programa sobre o direito ao aborto no canal público. Adorni aproveitou a ocasião para publicar um programa no YouTube no qual desmentia supostas informações falsas da oposição.

Itália e seus 'Telemeloni'

Desde que a extremista de direita Giorgia Meloni assumiu o poder em 2022, associações jornalísticas têm denunciado a crescente interferência de sua administração na RAI, numa luta para obter maior influência ideológica sobre a emissora pública. "Telemeloni" é o termo que muitos críticos agora usam para se referir à rede.

Este ano, a Itália caiu três posições no relatório sobre liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, e a interferência política nos meios de comunicação públicos é uma das causas.

Os jornalistas da RAI entraram em greve por um dia após o cancelamento da transmissão de um monólogo antifascista do escritor Antonio Scurati.

O principal sindicato de jornalistas do canal, Usigrai, acusou o governo de usar a emissora como um megafone ou canal para suas posições. Também acusaram o governo de silenciar vozes críticas e até mesmo censurar conteúdo por razões ideológicas. Em 2024, um grande número de jornalistas da RAI entrou em greve por um dia após o cancelamento da transmissão de um monólogo antifascista do escritor Antonio Scurati, programado para o dia da libertação do fascismo.

No mês passado, uma bomba explodiu no carro do jornalista investigativo Sigfrido Ranucci. O diretor do programa Report, da RAI, denunciava há tempos as tentativas de deslegitimar seu trabalho por meio de duras críticas públicas, processos judiciais e redução do tempo de exibição de um dos poucos programas que investigam corrupção, máfia e escândalos envolvendo o poder político.

França: A televisão pública na mira

Na França, uma reportagem publicada por um veículo de mídia de extrema-direita chamado L'Incorrect desencadeou uma nova campanha da rede de mídia do milionário Vincent Bolloré contra o rádio e a televisão públicos, que ele classifica como "ideologizados" e "progressistas".

Especificamente, tratava-se de um vídeo que mostrava os jornalistas de opinião Thomas Legrand e Patrick Cohen, colaboradores regulares da France TV e do programa matinal da rádio France Inter, almoçando em um restaurante com líderes do Partido Socialista. O jornal JDD, a rádio Europe 1 e, principalmente, a rede de televisão CNEWS dedicaram horas de programação e publicaram dezenas de artigos. O apresentador estrela da CNEWS, Pascal Praud, defendeu as críticas como parte de uma "guerra cultural".

Marine Le Pen e seu partido aproveitaram a oportunidade para reiterar sua proposta de desmantelar a entidade pública: "Sua privatização permitiria aos franceses economizar 4 bilhões de euros por ano", declarou a líder da Reunião Nacional.

Seu principal aliado na Assembleia, Éric Ciotti, lançou uma comissão parlamentar de inquérito "sobre a neutralidade, o funcionamento e o financiamento do setor audiovisual público", que terá início nos próximos dias.

Alemanha: Alice contra o Cânone

Os meios de comunicação públicos também têm sido alvo do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que agora ocupa o primeiro lugar nas pesquisas de opinião. Alguns de seus líderes usam o termo Staatsfunk (radiodifusão estatal) para sugerir que são órgãos de propaganda do governo e dos partidos tradicionais.

A líder da extrema-direita, Alice Weidel, acusou as emissoras de televisão ARD e ZDF de parcialidade contra o seu partido. "Estas são campanhas midiáticas financiadas pelos contribuintes alemães contra o AfD", afirmou após o fraco desempenho do partido nas eleições de Brandemburgo no ano passado. Ela fez o comentário, ironicamente, em uma entrevista à ARD.

Mas os ataques não se limitam à retórica. Uma das principais propostas do partido de extrema-direita é a eliminação da taxa (conhecida como Rundfunkbeitrag ) que cada família deve pagar para financiar o serviço público de radiodifusão — atualmente € 18,36 por mês. “Este aparato, intimamente ligado aos partidos estabelecidos em termos estruturais, pessoais e financeiros, usa seletivamente esse poder para influenciar a opinião pública, chegando mesmo a recorrer à manipulação (...) Deve ser profundamente reformado, racionalizado e desideologizado”, afirma a plataforma.

Polônia: o legado da extrema-direita que não pode ser apagado

A mídia pública tornou-se um dos primeiros alvos do partido Lei e Justiça (PiS) da Polônia ao chegar ao poder. Em 2016, foi aprovada uma lei que concedia ao governo o controle sobre a rádio e a televisão públicas, e o Conselho Nacional de Mídia (RMN) foi criado, juntando-se ao órgão regulador de mídia já existente (Conselho Nacional de Radiodifusão, KRRiT), que por sua vez foi preenchido por apoiadores do partido ultraconservador.

A emissora pública TVP tradicionalmente se inclinava para o partido no poder, mas o PiS foi muito além. Os programas de notícias atuavam como porta-vozes do governo, às vezes de forma flagrante. Anos depois, um apresentador chegou a pedir desculpas à comunidade LGBTQ+ pelo papel "vergonhoso" do canal na disseminação de "discurso de ódio" contra a comunidade.

O controle da extrema-direita era tão generalizado que, em 2023, o primeiro-ministro liberal Donald Tusk lançou uma "purga" — também criticada. Ele acaba de apresentar um projeto de lei para "garantir a despolitização da mídia pública". Mas a realidade é que, dois anos após a mudança de governo, o KRRiT permanece alinhado com o partido de extrema-direita Lei e Justiça (PiS).

Hungria: Compre veículos de comunicação e você controlará a informação.

Os 15 anos no poder do primeiro-ministro ultranacionalista Viktor Orbán transformaram o panorama da mídia húngara: segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, graças a manobras políticas e econômicas, bem como a aquisições por oligarcas ligados ao partido governista Fidesz, ele controla 80% dos meios de comunicação. Isso lhe permite "moldar a narrativa" e exercer "pressão sobre veículos de comunicação não alinhados ao governo", afirma o Instituto Reuters em seu relatório mais recente.

Pouco depois da ascensão do Fidesz ao poder em 2010, o partido aprovou uma legislação que criou um novo órgão regulador, o Conselho de Imprensa, nomeado por um parlamento de maioria de extrema-direita. Todos os meios de comunicação públicos foram fundidos numa única corporação, resultando em inúmeras demissões — incluindo a expulsão de jornalistas críticos.

O resultado é uma verdadeira máquina de propaganda governamental. Por exemplo, antes da vitória do Fidesz nas eleições de 2018, jornalistas da MTVA relataram como a emissora se concentrava em notícias negativas e até mesmo em mentiras descaradas sobre refugiados e imigrantes, associando-os ao crime e ao terrorismo, em consonância com a retórica xenófoba do governo.

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