
Magnus Thierfelder Tzotzis, Quando o pensamento não é suficiente, s/d.
Por EMILIANO JOSÉ*
Atravessado pela luta de classes, e a serviço da burguesia, o jornalismo torna-se instrumento essencial da contrarrevolução, condição da qual jamais saiu
Esses dias, e pouco importa o local e as circunstâncias, ouvi uma defesa apaixonada do jornalismo. Surgía como persona. Antropomorfizado. Ente ahistórico. Como tivesse vida própria, singular, independentemente da sociedade. Ator, a caminhar pelo mundo, permanentemente atacado pela direita e pela esquerda. Na visão do formulador, o jornalismo era um ator necessário, nem de direita, nem de esquerda. Para, quem sabe, regular o mundo. Precisava ser salvo.
De cara, quero acentuar a natureza subordinada da atividade jornalística. Nasce como necessidade da Revolução Burguesa. Ao nascer assim, tão atraente, cheio de viço, possibilidades, atrai muitos revolucionários. Surpreenderemos Marx, Lênin, Gramsci como jornalistas, para citar três, todos memoráveis. Cada um a seu modo e situado, marcado pelo tempo histórico, pelas circunstâncias em que viviam.
Marx, um tempo como jornalista liberal, revela-se incapaz de suportar por muito tempo as vacilações da burguesia quando na condição de editor-chefe da Gazeta Renana. Seguirá como jornalista vida inteira, mas não mais dirigindo qualquer órgão de comunicação burguês, como fizera antes, porque aí já rompido com o jornalismo liberal, embora vida inteira escrevendo para grandes publicações, modo a ganhar uns trocados.
Lênin, fazendo da atividade ferramenta revolucionária. Compreendeu o quanto era importante valer-se do jornalismo para impulsionar a revolução.
Gramsci, como crítico literário, e profunda consciência crítica, com a visão nítida de que um conjunto de jornais, à época, configuraria um partido político. Um precursor da crítica profunda ao jornalismo, desmontando ilusões.
Não comungo dessa espécie de senso comum em torno do jornalismo. Colocado num pedestal, ou num altar, espécie de defensor da verdade, acima do bem e do mal.
Talvez ofenda a alguns liberais embevecidos, e pareça um pouco grosseiro, fora de moda: o jornalismo é um discurso permanentemente atravessado pela luta de classes. Condicionado por ela. Até porque nasce, já se disse, como necessidade de uma revolução. Instrumento essencial da Revolução Burguesa. Não nasce espontaneamente, como uma iniciativa de seres humanos virtuosos, iluminados.
Surge como iniciativa progressista, vinculada à burguesia nascente, disposta a derrotar o mundo feudal. Fixou logo de saída o respeito à chamada liberdade de imprensa, demanda importante na fase inicial, mais tarde, palavra de ordem vazia.
A história caminha, a nova classe se constitui como força hegemônica descartando-se as forças do medievo. Quando a burguesia, já classe dominante, tem de lutar para se manter no poder, o jogo muda, se torna violento. Não pelejará com punhos de renda. O Estado burguês a serviço da burguesia, usa toda força para massacrar o novo sujeito histórico, o proletariado.
Atravessado pela luta de classes, e a serviço da burguesia, o jornalismo torna-se instrumento essencial da contrarrevolução, condição da qual jamais saiu, ao menos jamais escapou de ser cão de guarda dos interesses do capitalismo, serviçal do mundo do dinheiro. Não teve dúvidas disso quando de movimentações insurrecionais na Europa, no século XIX, quando, por exemplo, da Comuna de Paris, vale-se de violência brutal contra trabalhadores, homens e mulheres dispostos a assaltar os céus. Diante das insurreições, revoluções, o jornalismo é posto à prova.
A modernização da atividade, a padronização, o surgimento do lead, a chamada objetividade, o situa de modo mais nítido no âmbito do capitalismo na fase superior, logo ao final do século XIX, o imperialismo batendo às portas. Como tudo, a notícia também se transforma em mercadoria, menos valor de uso, mais valor de troca.
Há os que pretendem levar o jornalismo ao altar: atividade sagrada, infensa às contradições do mundo, separada do movimento real das classes sociais. Produziu e produz coisas boas, muitas, dizem. E é verdade. Jornalistas conseguem isso, nas brechas do sistema.
Nunca deixou, no entanto, de ter um núcleo duro, o das cláusulas pétreas – situadas no mundo econômico, o mundo da extração da mais-valia, do lucro, atualmente incluído o da austeridade fiscal, mundo da garantia dos juros a serem pagos aos rentistas. Este mundo, o jornalismo empresarial defende como autêntico cão de guarda.
Sempre teve lado, o lado dos dominantes, por mais que se constatem os esforços cotidianos, quase heroicos, de jornalistas, a buscar brechas o quanto possam, já acentuei isso. Nunca deixei de ser jornalista, sempre em busca de caminhos de uma atividade em busca da verdade, utopia do jornalismo, indispensável.
São aproximações de minha visão sobre o jornalismo. Com tal compreensão, quero chegar ao recente e fundamental trabalho desenvolvido pelo jornalista Bob Fernandes, um dos mais argutos e preparados repórteres presentes no jornalismo brasileiro, uma densa série documental em torno da construção do discurso neoliberal no Brasil.
Discurso assumido com gosto pelas redes e meios de comunicação empresariais, todos envolvidos com essa nova razão do mundo, o neoliberalismo, assim chamado por Pierre Dardot e Christian Laval num livro imprescindível: “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”. Nada acontece como um raio caído num dia de céu azul. Como disse, construção. Série editada no Canal Bob Fernandes, no YouTube. https://youtu.be/n6F2kjLnN3g Essencial para quem quiser compreender como se constrói na sociedade e no jornalismo o discurso hegemônico em torno do neoliberalismo.
Jornalismo, no senso comum, aparece como verdade. Como se o discurso neoliberal, presente de modo avassalador nas redes de comunicação empresariais, surgisse assim, de surpresa. Os dogmas dessa fase do capitalismo, dogmas neoliberais, se disseminam, como se naturais fossem. Como se não dependessem de uma construção político-cultural-ideológica, capaz de se impor como visão de mundo, naturalizada. Dependem.
Podem acontecer surpresas, como a resistência de áreas da grande mídia ao negacionismo desse ou daquele chefe de Estado, como ocorreu no Brasil. Nenhuma mudança acontece, no entanto, com os dogmas, com as cláusulas pétreas da grande mídia empresarial. Ao assegurar a vigência de tais cláusulas, acontece a defesa do capitalismo neoliberal, com toda a violência dele emanada, a desigualdade produzida, a precariedade das condições de vida reafirmadas e aprofundadas.
Só olhar a cobertura recente da economia brasileira: diante de números positivos do governo Lula, do quase pleno emprego, crescimento da economia, inflação controlada, distribuição de renda, e até dólar em baixa e bolsa em alta, há sempre lamento, crítica.
Nessa cobertura, o discurso gira em torno de manter os juros altos, diminuir o ritmo de crescimento, não permitir o desemprego em níveis tão baixos, tirar recursos do Bolsa Família, do BPC, não permitir aumento do salário mínimo.
Tais meios de comunicação sequer se escondem. Quando há alguma desaceleração do ritmo de crescimento, ou indícios disso, a mídia comemora, como se agora sim, as coisas estivessem entrando no eixo. Os juros altos estão ajudando, celebram.
Tudo, no fundo, e não é preciso muita perspicácia nem inteligência para perceber isso, gira em torno da garantia dos rendimentos do grande capital, a quem tal mídia deve obediência, não fosse pela condição de participante do clube, pela formação ideológica quase ancestral, reforçada, construída, reconstruída, como vamos demonstrar a partir do trabalho de Bob Fernandes, por agências internacionais, desde os EUA. A construção da hegemonia das classes dominantes não nasce do céu.
Com tal trabalho, Bob Fernades deixa o rei nu. Produzirei uma pequena série, com o objetivo de botar no papel, no dizer de jornalistas antigos, o documentário produzido por ele, modo a desmascarar a ideia de um jornalismo pairando sobre a sociedade, imparcial e verdadeiro, e não como parte de um grande projeto político, como autêntico partido político, como Gramsci um dia, já faz um século, localizou.
O documentário, apresentado em alguns capítulos, demonstra como a atividade de agências norte-americanas voltadas ao trabalho de influenciar povos e governos constituem pontes para golpes. E, também, para reforçar a tendência de mídias já vinculadas a classes dominantes locais, sempre prontas a reverberar o pensamento do império. Tais agências interferem decisivamente na vida política dos povos, nesse caso especialmente na América Latina.
Esse esforço jornalístico demonstra como agências norte-americanas conseguiram plasmar uma visão de mundo, intervir em tantos países latino-americanos, influenciar o desenvolvimento, crescimento da extrema-direita, ser essencial para o surgimento dos Bolsonaro, Milei e tantos outros. Dar lastro às novas e cruéis formas de exploração do trabalho. Foi, é, uma gigantesca operação, inegavelmente bem-sucedida até agora. E o mundo empresarial-jornalístico não é ator inocente, ao contrário.
O documentário desmonta qualquer tentativa de caracterizar tal intervenção como parte de teorias conspiratórias. Revela a prática dos meios empresariais de comunicação inteiramente, completamente vinculada à ideologia defendida por aquelas agências. Vamos combinar uma coisa: na alma desse mundo midiático, inequivocamente, já estava presente o espírito do capitalismo. A afirmação do neoliberalismo como nova razão de mundo se deu sem nenhuma dificuldade.
Antes da primeira entrevista, Bob Fernandes faz uma introdução. Revela provas em profusão, dispostas em 143 caixas, a evidenciar como foi articulado e expandido o projeto neoliberal no Brasil. As caixas estão no Instituto Hoover, Universidade Stanford, EUA. Ele faz um breve histórico.
Em 1982, surge a Fundação Atlas Network, criada pelo empresário britânico Sir Anthony Fisher, e dirigida por Alejandro Chafuen até 2018, quando então ele passa a ser membro executivo sênior do Action Institute. Tal fundação foi decisiva para o desenvolvimento da operação neoliberal no Brasil e mundo afora.
E não foi apenas difusão do pensamento, absolutamente essencial ao reforço da ideologia neoliberal. Também atuação direta, presença de Chafuen no Brasil várias vezes, articulador de manifestações pela queda de Dilma. Discurso e prática. Atuação política e ideológico-cultural.
As agências norte-americanas nunca brincaram.
Só de passagem, lembrar de Primavera Árabe: tudo articulado para a chegada de governos de extrema-direita.
As manifestações de 2013, no Brasil, às vezes celebrada por uma parte do pensamento de esquerda, não eram outra coisa. Articuladas desde fora, de modo a derrubar Dilma, e derrubaram. Houvesse gente bem-intencionada, e havia, foram usadas para o propósito de tirar a presidente do caminho, e abrir a estrada para a chegada de Bolsonaro, como abriu.
O objetivo da Atlas Network, nítido: construir uma rede mundial de institutos liberais de modo a acelerar a chegada da doutrina liberal ao maior número possível de países mundo afora.
Não custa recordar: tal rede estava apoiada no ideário de Friedrich Hayek e Milton Friedman, notórios teóricos do neoliberalismo.
O primeiro, seguramente o mais consistente e disciplinado defensor do pensamento neoliberal, inimigo do socialismo, partidário do livre mercado. Inspirador, em 1947 da criação da Mont Pèlerin Society, organização a agrupar intelectuais alinhados à luta contra a visão socialista. Nessa sociedade, já estava Milton Friedman.
Hayek nunca escondeu a tendência autoritária. Democracia devia ser considerada um meio, nunca um fim em si mesmo. Após visitar o Chile sob ditadura, chegou a dizer não ter encontrado uma única pessoa no país que não concordasse “que a liberdade pessoal estava muito maior sob Pinochet que sob Allende”. Acreditava nisso, era a forma como ele enxergava a liberdade.
Não por acaso, o Chile foi o primeiro país a experimentar o modelo neoliberal, ancorado assim numa das mais violentas ditaduras daquele período histórico.
No primeiro ano de atuação, Atlas Network opera com um orçamento de 350 mil dólares. No último orçamento conhecido, de 2023, a Fundação recebeu nada menos que 28 milhões de dólares, quantia 80 vezes superior ao primeiro aporte. Entre 1998 e 2018, a organização teve os cofres recheados com 139 milhões de dólares.
No Brasil, Atlas Network e USAID, de modo a garantir a atuação das duas entidades com vistas à doutrinação em favor do neoliberalismo, investiram mais de 1 bilhão e 600 mil reais, montanha de dinheiro. Com apoio direto ou indireto do Estado norte-americano, pavimentava-se o caminho da expansão neoliberal no Brasil, com a contribuição decisiva dos meios de comunicação.
Esse trabalho se dava via instituições públicas, como a USAID, ou pelo caminho de braços supostamente privados, como o National Endowment for Democracy (NED) e o Center for International Private Enterprise (CIP).
Assim eram irrigadas as instituições neoliberais, centenas de milhões de dólares chegados ao Brasil para assegurar o triunfo das ideias neoliberais, a conquista de corações e mentes, garantir a unidade dos meios de comunicação na defesa dessa nova razão do mundo. Ao Brasil e à toda a América Latina.
O neoliberalismo, depois de passar pelo Chile, chega, com impacto mundial, à Inglaterra, a partir de Margareth Thatcher, 1979, antes de aportar nos EUA e ser consolidado por 500 institutos liberais mundo afora, 121 deles só na América Latina.
Tudo evidencia uma coisa: o capitalismo nunca descuidou da batalha das ideias. Empenha-se nela com disciplina, muita militância intelectual.
No caso brasileiro, essa luta em torno dos corações e mentes de nossa gente, uns tantos institutos trabalhando, ganhou intensidade a partir dos anos 1990, e a chegada de Collor à presidência da República é sintomática. Após ligeiro governo de Itamar, é eleito o príncipe do neoliberalismo, Fernando Henrique Cardoso – por oito anos, seguiu a cartilha neoliberal sem nunca vacilar: tal mérito ninguém lhe tirará.
Sorte nossa Lula ter chegado à presidência, ter assumido em 2003. Isso, no entanto, não elimina as marcas do modelo hayeckiano, a perdurar até os dias de hoje – só observar impacto da atuação do Banco Central e a lógica da austeridade, a garantir remuneração do capital, em qualquer situação.
A chegada da esquerda ao poder, e por menos se queira, nas condições do mundo de hoje, o governo de Lula era de esquerda, é, leva à intensificação da atuação da Atlas Network e das tantas agências norte-americanas no Brasil.
A arrancada decisiva se dará no Fórum da Liberdade, em 2010, em Porto Alegre. Encontro anual organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE). Numa das caixas, em arquivos do Instituto Uber, há a prescrição de caminhos para chegar ao poder. Não se valer de partidos políticos. Jogar dinheiro na batalha das ideias. Batalha a ser levada na sociedade e em instituições múltiplas. Chegar primeiro aos influenciadores, professores, intelectuais, certamente jornalistas. Ao pensamento, à cultura.
A documentação encontrada no Instituto Uber aponta a aceleração da batalha das ideias três anos antes da tomada das ruas em junho de 2013. Três anos depois, o golpe contra Dilma. Tudo se encaixa.
O impeachment, atiçado, celebrado por institutos neoliberais, como o Instituto Mises, cujo presidente, Eli Beltrão, atuante então, é atualmente comentarista da CNN Brasil. Ou a atuação de Fernando Schiller, do Instituto Millenium, articulista em veículos como Veja, Band News, Folha e Estadão, além de curador do projeto Fronteiras do Pensamento.
O caminho para o poder se abria. E não a golpes de baionetas. Excursionando pelas fronteiras do pensamento. Deu-se a aliança entre Bolsonaro, autêntico ventríloquo dos militares, e Paulo Guedes, um dos fundadores do Instituto Millenium.
Sem exagero, os institutos neoliberais tomaram a Fazenda, o Ministério da Economia – 16 dirigentes de três institutos neoliberais, autodenominados liberais, ocuparam o Estado, cargos nas equipes e ministérios de Bolsonaro. Só na Fazenda, sete operadores dos institutos.
Mais: 14 desses neoliberais, ou liberais, como se queira, foram articuladores e autores da Lei de Liberdade Econômica, aprovada em 2019, cujo artigo primeiro reza: “Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica…” Um mundo novo se abria. Para o capital. Como se viu, um mundo a nascer de um trabalho meticulosamente urdido e executado.
*Emiliano José é jornalista, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia. Autor, entre outros livros, de O cão morde a noite (EDUFBA) [https://amzn.to/46i5Oxb]
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