
Imagem: Wr Heustis
Por DIEGO EYMARD*
A retórica de um “outsider” que combate uma “casta política”, desmorona como um castelo de cartas ao primeiro olhar. Não é a elite que sofre o ataque mais duro do governo Milei, mas a facção política que, com todas as suas contradições, ainda mediava o conflito de classes com políticas sociais
Um espectro ronda a Argentina – o espectro de seu próprio passado. O projeto econômico de Javier Milei, longe de ser a ruptura radical que seu discurso messiânico proclama, se revela como a reencarnação farsesca e brutalizada de um neoliberalismo fascistóide que, como uma tragédia recorrente, já conduziu o país à ruína. Trata-se de uma “terapia de choque” violenta, uma tentativa desesperada de solucionar a crise de acumulação do capital argentino.
Com efeito, as relações entre capital e trabalho emergem e se desenvolvem no antagonismo. Quando o capital se encontra debilitado, fraco, sem esperanças de um novo ciclo autônomo de acumulação, ele se infiltra em todos os poros do Estado em busca de atender a seus anseios vampíricos. Na Argentina, ele o faz através da expropriação sistemática da classe trabalhadora. O Estado, sob a nova gestão, é despido de suas vestes sociais para se converter no que é em sua essência mais pura: o comitê executivo da burguesia, um instrumento a serviço do capital financeiro e dos grandes conglomerados imperialistas.
Como nos ensinou Marx, a história repete-se a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. O plano de Milei é nada mais que um eco grotesco das reformas estruturais da ditadura cívico-militar de José Alfredo Martínez de Hoz e da febre privatista de Carlos Menem. Como apontado por um estudo do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG), a semelhança com os regimes anteriores é assustadora e mensurável: 68% com o plano da ditadura e 70% com o de Domingo Cavallo, arquiteto do menemismo.
A retórica de um “outsider”, de um anarcocapitalista que combate uma “casta política”, desmorona como um castelo de cartas ao primeiro olhar. Como observa a jornalista Anne-Dominique Correa, “a casta está no poder”[i]. Figuras como Luis Caputo e Patricia Bullrich, egressos da gestão neoliberal de Mauricio Macri, e também Nicolas Posse, ex-executivo da Corporación América, compõem um gabinete que, ao invés de eliminar a tal casta política, a “purificou” de seus elementos populistas. Assim vemos que não é a elite que sofre o ataque mais duro do governo Milei, mas a facção política que, com todas as suas contradições, ainda mediava o conflito de classes com políticas sociais.
A arquitetura da destruição
Antes de mais nada, é preciso trazer alguns registros do atual governo argentino para a nossa conversa. Falamos de neoliberalismo o tempo todo, mas como é que se dá, na prática, a imposição da agenda neoliberal na Argentina hoje? Fundamentalmente, através do contorno deliberado das instituições democráticas. Nesse contexto, o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) 70/2023 e a chamada “Lei Ônibus” são os pilares de um estado de exceção econômico. Declarando emergência em praticamente todas as áreas da vida social até o final de 2025, delegando faculdades legislativas ao Executivo, o que Milei busca é governar por decreto, tal qual seu colega Jair Bolsonaro tentara fazer. Em um gesto de desprezo pelo parlamento, Milei simbolizou esse seu movimento político autocrático em seu discurso de posse, proferido de costas para o Congresso.
A velocidade e a brutalidade compõem a verdadeira inovação de Milei. Diferente do gradualismo de Macri, que temia uma rebelião popular, a estratégia de Milei é uma blitzkrieg: um ataque massivo e simultâneo em todas as frentes, com o objetivo de sobrecarregar e paralisar a capacidade de resposta dos sindicados e dos movimentos sociais.
E é aí que entra a principal arma nesta guerra de posições: a desregulação. No mercado de trabalho, a extensão do período de experiência, a redução das indenizações e as restrições ao direito de greve visam disciplinar a força de trabalho através da precarização. No mercado de aluguéis, a revogação da lei de proteção aos inquilinos sacramenta a moradia como pura mercadoria, permitindo contratos em dólar ou em Bitcoin, entregando todo o poder aos proprietários.
Na saúde, a liberação dos preços dos planos privados é uma sentença de exclusão para milhões. No comércio, a revogação de leis como a de Abastecimento e a de Gôndolas remove as últimas barreiras que a Argentina possuía contra o poder dos monopólios. E, tal como no roteiro dos anos 90, a “Lei Ônibus” coloca à venda 41 joias da coroa estatal, da petroleira YPF à Aerolíneas Argentinas, abrindo novas fronteiras para a acumulação privada.
Miragem da austeridade
A pedra angular da propaganda governamental é a conquista do “déficit zero”, brandido como um fetiche, comemorado e celebrado internacionalmente como a solução mágica para a inflação. Bastou a “motosserra” ser ligada e pronto, problemas resolvidos! O governo argentino celebra superávits fiscais consecutivos, apresentando-os como prova de que o ajuste recaiu sobre a “casta política”. Mas uma análise das contas públicas argentinas nos revela a verdade por trás desta miragem: a “motosserra” cortou a carne da classe trabalhadora ao invés dos privilégios da elite.
Como aponta o economista Francisco Cantamutto, um terço de todo o ajuste fiscal recaiu sobre os aposentados, o elo mais frágil da corrente social[ii]. O governo argentino permitiu a corrosão de seus rendimentos pela inflação e vetou ativamente, por duas vezes, leis do congresso que buscavam instaurar uma recomposição mínima[iii]. A “liquefação” dos salários públicos e a paralisação quase total das obras públicas completam o quadro.
O superávit deixa de ser um fim em si mesmo para se tornar um meio para liberar recursos do Estado, antes destinados a salários e pensões, para garantir o pagamento dos juros da dívida ao capital financeiro. Não à toa o Fundo Monetário Internacional (FMI), principal credor da economia argentina, não esconde sua satisfação; afinal, ao agiota pouco importa como seu dinheiro está sendo gasto, mas se está o remunerando com juros e correção monetária.
A catástrofe social
Sem dúvida, a mais flagrante contradição do discurso oficial do governo argentino reside na medição da pobreza. Se, de um lado, o governo celebra uma queda estatística para 31,6%, o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA) denuncia que a melhora está “sobrerepresentada”[iv], pois a metodologia se baseia (1) em cestas de consumo de 2004, que ignoram o peso esmagador dos aluguéis e tarifas dolarizadas de hoje e (2) em mudanças na captação de renda que quebram a série histórica.
Claramente, trata-se de uma sofisticada operação de guerra informacional, uma realidade paralela construída sobre estatísticas no mínimo questionáveis, para não dizer desonestas. A fome real, medida pelo aumento da insegurança alimentar que a UCA documenta, conta uma história bem diferente:
Gráfico 1: Evolução da Insegurança Alimentar em Pessoas entre 0 e 17 de anos, 2010-2024

Fonte: Observatorio de la Deuda Social Argentina, UCA, disponível neste link.
O custo humano e social também pode ser mensurado pela queda vertiginosa do poder de compra. Nesse quesito, o Centro de Pesquisa CIFRA-CTA demonstra que o salário mínimo perdeu cerca de 30% de seu valor desde o início do governo Milei, estando 56,7% abaixo do nível de 2025[v].
E a situação das pessoas aposentadas é o epicentro da catástrofe econômica argentina: seus rendimentos cobrem apenas uma fração de suas necessidades básicas, enquanto o governo lhes golpeia ainda mais, retirando a entrega gratuita de medicamentos vitais. Não surpreende, visto tudo isso, que os protestos sejam uma constante, recebidos com a violência repressiva do Estado.
Com efeito, o projeto de Milei não se limita a empobrecer o presente – ele busca, mais ainda, desmantelar o futuro. O congelamento do orçamento das universidades públicas e o a perda contínua de financiamento no Sistema de Ciência e Tecnologia (CONICET) não são meros cortes de gastos. São, na verdade, um ataque deliberado à capacidade de pensamento crítico e à soberania tecnológica, um projeto para condenar a Argentina a um modelo primário-exportador dependente. Não é ironia do destino que seja um autodeclarado anarcocapitalista quem está tentando transformar o próprio país em um feudo.
Como aponta o economista Rolando Astarita[vi], a economia argentina vive um “longo estancamento” que dura mais de uma década, marcado não por uma depressão profunda, mas pela estagnação. Astarita situa a raiz da crise em seu caráter estrutural: a economia argentina conta hoje com (1) baixo nível de acumulação de capital, (2) atraso tecnológico e (3) baixa produtividade.
A mais-valia, em vez de ser reinvestida para expandir a capacidade das forças produtivas, tem sido sistematicamente transferida para o exterior pela classe dominante – uma fuga de capital equivalente a dois terços do PIB – financiada sobretudo pela dívida externa, criando um vácuo produtivo. Sobre esta fundação oca, os “dislates mileístas” – como a crença dogmática de que o equilíbrio fiscal por si só cura a inflação, ou o ataque ao “capital constante social” (obras públicas, ciência e universidades).
Terra arrasada e o fracasso anunciado
A profunda recessão é uma ferramenta disciplinar, muito mais que apenas um efeito colateral. A queda inflacionária, de 289% para 84%, é o grande troféu do governo, ostentado por seu fã clube e seu mecenato. Ao contrário, a desaceleração não vem da produtividade, mas do colapso do consumo; a recessão serve então para disciplinar a força de trabalho, enfraquecendo os sindicatos, e para destruir a indústria de abastecimento ao mercado interno, reorientando a acumulação para o agronegócio e a especulação financeira. O quadro é de desolação industrial: a recessão derruba a arrecadação de impostos, forçando mais cortes, que aprofundam a recessão e fomentam um ciclo vicioso de contração dos gastos públicos.
Assim é que o projeto neoliberal autoritário de Milei se revela uma bancarrota em todas as frentes: social, produtiva, intelectual e discursiva. Não passa de um modelo inerentemente instável, de sua raiz até suas superfícies, cuja única lógica é a contração e a transferência sistemática de riqueza para o topo.
Todavia, a história não é um processo mecânico. A brutalidade da ofensiva do capital gera, dialeticamente, sua própria antítese: a resistência à ofensiva neoliberal não emergirá das instituições argentinas, mas da luta popular. As greves gerais, as mobilizações massivas de aposentados e a defesa da universidade pública são a manifestação da luta de classes. Luta esta que definirá o futuro de nossos hermanos.
O resultado final desse processo não está escrito nas estrelas, mas será forjado no calor do confronto entre o projeto de saque empreendido por Milei e seus comparsas, nada mais que representantes da burguesia financista, e a capacidade de organização e luta da classe trabalhadora argentina.
*Diego Eymard é professor de economia do Instituto Soyuz. Autor do livro Memórias da vó Dirinha. [https://amzn.to/47hFtjd]
[i] https://mondediplo.com/2024/02/05argentina[ii] https://www.brasildefato.com.br/2024/12/11/drama-argentino-com-milei-chega-a-12-meses-e-fundo-do-poco-ainda-nao-e-visivel/[iii] https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/noticia/2024/09/milei-veta-lei-que-aumenta-aposentadorias-na-argentina-cm0l6lvzg004601ei2i9sotwh.html[iv] https://br.tradingview.com/news/afp:4500d05a5bbe7:0/[v] https://www.infobae.com/economia/2025/09/02/la-caida-del-salario-registrado-desde-noviembre-de-2023-alcanzaria-el-9-segun-un-informe/[vi] https://rolandoastarita.blog/2025/09/27/apuntes-sobre-la-crisis-argentina-2025/
Chave: 61993185299
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