Montagem com retratos de Marx e Engels por volta de 1860. Imagem: WikiCommons
"Chama atenção no atual debate sobre o tema da tolerância religiosa as escassas referências aos direitos de expressão e ativismo dos sujeitos ateus, cuja moralidade, aliás, é atacada da maneira mais cínica, principalmente por tendências religiosas conservadoras. "
Por Maurício Vieira Martins
“… entre a fé, ou teologia, e a filosofia não existe nenhuma relação nem nenhuma afinidade”, escreveu o filósofo holandês Baruch Espinosa em seu Tratado teológico-político, texto publicado em 16701. Tal afirmativa contraria uma longa tradição que sempre vira a filosofia em estreita relação com a fé e a teologia. E não é preciso recorrer aos exemplos proeminentes de Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino para corroborar tal relação. Séculos após o auge da Escolástica, encontraremos também num pensador da estatura de Hegel — a quem tanto devemos por suas inovadoras contribuições em várias áreas do pensamento — uma compreensão da filosofia em solução de continuidade com a teologia. Na Introdução às suas Lições sobre a Filosofia da Religião, podemos ler a explícita tese hegeliana: “a filosofia é teologia, e a ocupação com a filosofia — ou melhor, na filosofia — é em si mesma o serviço de Deus.”2
Em contrapartida, todo o esforço de Espinosa foi no sentido de separar a filosofia da teologia, afirmando que o objetivo e o fundamento dessas duas disciplinas são “em tudo divergentes”3. A primeira, segundo nosso filósofo, se guia pela investigação da verdade e do conhecimento. Já a segunda, a teologia, encontra sua origem na elaboração de regras de conduta para os agrupamentos humanos. Desconcertante num primeiro momento, tal concepção aclara-se durante a leitura do Tratado teológico-político, quando se vê que Espinosa está particularmente interessado em pesquisar nas Escrituras a função das leis no Estado hebraico, que esquadrinhavam a vida de seu povo de ponta a ponta: “[O povo hebraico] não podia lavrar, semear ou ceifar à vontade, mas unicamente segundo um certo e determinado preceito da lei; nem se quer podia comer alguma coisa, vestir-se, cortar o cabelo ou a barba, divertir-se ou fazer fosse o que fosse a não ser de acordo com as ordens e indicações prescritas nas leis.”4
Mais do que isso, também a concepção de Deus de Espinosa era radicalmente subversiva. Seu Deus Natureza, no qual estaríamos imersos, rompe com a usual representação antropomórfica de “um juiz sentado nos céus sobre um trono real”5. Ao invés disso, o filósofo nos fala de uma causa de si, impessoal, que gera efeitos imanentes em si mesma e em todas as suas modificações6. Mesmo as coordenadas espaciais básicas para definir qualquer ente são impróprias para referir-se a este Deus que “não tem direita nem esquerda, que não se move nem permanece imóvel, que não está num determinado lugar mas que é absolutamente infinito”7. Até entre os correspondentes de Espinosa, que acompanhavam com interesse seu pensamento, sua concepção de Deus gerou enorme estranheza. Foi o caso de Hugo Boxel que, em carta de 1674, escreveu que Espinosa descreve e representa “o ser infinitamente perfeito ao modo de um monstro”8.
Afirmar um cosmos apenas imanente era visto, portanto, como uma monstruosidade que contradiria qualquer concepção racional e mesmo a possibilidade de uma ética. E, ousadia suprema, Espinosa afirmava também que os profetas “falam segundo a capacidade de compreensão do vulgo, ao qual a Escritura não pretende tornar sábio mas obediente”9. Assim, quando Espinosa investigava a Escritura, isso se devia a um interesse histórico acentuado pelo texto e por suas prescrições morais, mas não por atribuir a ele uma verdade filosófica. Ora, nada poderia estar mais distante da compreensão predominante na época de Espinosa: o Tratado teológico-político despertou reações muito passionais, gerando um clima hostil em relação ao seu autor. Mesmo os representantes das correntes religiosas mais tolerantes da época perceberam, não sem razão, a extensão da ruptura ali existente. Philipp van Limborch enviou o livro a um amigo, com um comentário que se tornou célebre:
“Não me lembro de ter lido um livro tão pestilento (pestilentiorem). Ele ridiculariza os profetas e apóstolos e, segundo ele, nenhum milagre aconteceu nem jamais poderá acontecer. […] ele descreve Deus de tal forma que parece destruí-lo completamente. Envio-o a você […], para que saiba que monstros produz a nossa Holanda (quae monstra producat Batavia nostra).”10
Em 1841, cerca de 170 anos depois da publicação do Tratado teológico-político, o então jovem Marx reescreve o texto espinosano, alterando a ordem de várias de suas passagens, num caderno de estudos que foi descoberto apenas após a sua morte. Nele, encontramos documentado o interesse de Marx pelo pensamento do filósofo holandês, principalmente no que diz respeito ao desvendamento das raízes terrenas do poder teológico. Seguindo o rastro de aquisições espinosanas, retomadas por Feuerbach11, Marx também apontará para a projeção humana, antropomórfica, que dá origem ao Deus da teologia. Assim, na abertura da Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel, texto de 1843, há uma polêmica explícita com o pensamento religioso. Marx escreve que “o homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurava um super-homem, encontrou apenas o reflexo de si mesmo […]”12. A religião é formulada aqui como resultado da projeção de uma imagem humana que duplica o mundo existente num outro, celeste. Se a fonte mais imediata desta afirmação é Ludwig Feuerbach (que em seu livro A essência do Cristianismo desenvolveu seu conceito de alienação religiosa), ela também evoca o procedimento de Espinosa, ao criticar aqueles que projetam categorias humanas sobre um mundo impessoal. Marx prossegue enfatizando as necessidades terrenas insatisfeitas, a situação extremamente precária da realidade alemã (“o vale de lágrimas”13), que finda por demandar um complemento ideal, satisfação imaginária de necessidades reais. Como se sabe, esse texto gerou ataques de religiosos exaltados a Marx, por referir-se à religião como “o ópio do povo”. Mas tais ataques desconhecem que outros pensadores já haviam utilizado a imagem do ópio para designar a simultânea euforia e anestesiamento religiosos, inclusive o filósofo romântico Novalis14 — pouco suspeito, com seu idealismo mágico, de ter simpatias materialistas.
Entendendo a crítica da religião como “o pressuposto de toda crítica”, Marx nos lembra que a crítica do céu deve se transformar em “crítica da terra”15. Ou seja, é preciso ultrapassar o recinto do discurso religioso para encontrar o terreno onde ele lança suas raízes. Temos aqui enunciada, de modo programático, a necessidade de se investigar a sociedade civil, profundamente fragmentada, que mantém ativo o carecimento religioso. Investigação que se materializará no longo investimento marxiano na economia política. E não é verdade que, nos textos da maturidade de Marx, a crítica à religião tenha desaparecido. Já no primeiro capítulo de O capital encontraremos a seção intitulada “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”. Nela, nosso autor apresenta uma analogia entre a lógica alienada que comanda o circuito da produção de mercadorias e as criações religiosas:
“[…] para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias…”16
Para se contrapor a essa fetichização da atividade humana, Marx propõe uma associação de produtores livres, que dispõem de meios de produção coletivos e deliberam em comum os rumos de suas vidas. Tal é o projeto social e político marxiano, visando uma emancipação que não recorre a uma aposta transcendental para se realizar: ela será obra da própria atividade humana, com seus acertos e erros.
Por outro lado, se nos deslocarmos agora para a primeira terça parte do século XX, encontraremos exemplos de intelectuais famosos que, a partir dos avanços consideráveis no desenvolvimento das ciências e de sua utilização na vida cotidiana, previram um enfraquecimento progressivo da religião. Tomemos o caso de Max Weber em sua conferência de 1917, A ciência como vocação. Nela, podemos ler que “hoje é apenas nos grupos menores, entre os seres humanos, em pianíssimo, que se encontra a pulsação que, em tempos idos, anunciava o espírito profético que varria as grandes comunidades como um incêndio”17. Segundo sua perspectiva, a expansão da racionalidade científica subtrairia progressivamente o espaço para explicações religiosas.
Sabemos, contudo, que essa previsão não se cumpriu: os desdobramentos da sociedade capitalista — que demandam conhecimento científico especializado — nem de longe extinguiram o carecimento religioso. Como observou agudamente György Lukács, a acumulação capitalista, ao mesmo tempo que utiliza as descobertas da ciência na economia, mantém “historicamente ativa nas massas uma necessidade religiosa18. Configuração não intencional, mas que pode ser atestada pelo contínuo crescimento de fiéis e de suas lideranças, ocupando espaços que em tese estariam reservados ao poder laico. Bancadas religiosas em casas legislativas e juízes nas cortes supremas que pautam seus votos pela adesão a um certo credo religioso, longe de serem uma exclusividade brasileira, se espalham em várias partes do mundo no nosso século XXI.
Nada disso exclui, por óbvio, a existência de movimentos religiosos progressistas, como a Teologia da Libertação, ou mesmo como algumas vertentes do pentecostalismo (pois é um preconceito supor que todos evangélicos sejam conservadores). De nossa parte, não nos furtamos a escrever: grande respeito pelos corajosos ativistas desses movimentos religiosos progressistas, que em alguns casos colocam suas próprias vidas em risco na luta contra diferentes opressões e, por vezes, assumem posições mais à esquerda do que partidos políticos que se enunciam como tais. Contudo, isso não nos impede de enunciar de modo transparente uma diferença relevante principalmente — mas não apenas — para aqueles interessados em conhecer melhor as obras de Marx e Espinosa. Pois estes defendem um projeto imanentista laico que baseia sua ética de conduta numa aposta nas capacidades da espécie humana. Postura distinta de uma invocação religiosa que procura em Deus o fundamento moral último de seu protesto político. Não seria este o local para desenvolvermos tal diferença19, mas deixamos pelo menos anotado que ela envolve algumas ramificações e consequências nas tomadas de posição no espaço público.
Até porque chama a atenção no atual debate sobre o tema da tolerância religiosa quão escassas são as referências aos direitos de expressão e ativismo dos sujeitos ateus, cuja moralidade, aliás, é atacada da maneira mais cínica, principalmente por tendências religiosas conservadoras. Daí a necessidade de enunciar com todas as letras o que deveria ser apenas uma obviedade: ateias e ateus têm absoluta legitimidade para expandir seu espaço na arena pública. Talvez esta seja mesmo uma forma de se superar uma atual configuração regressiva. De um lado, religiosos fanáticos que insistem em enxertar no Estado laico suas crenças: pensemos na recente entrada dos “intervalos bíblicos” em vários espaços educacionais públicos, uma indisfarçada violência contra aqueles estudantes de outras denominações religiosas ou que não professam uma religião20. De outro, setores de intelectuais que adotaram uma espécie de relativismo integral que finda por subtrair qualquer critério de verdade no debate público, afirmando por exemplo que até a astrologia é alternativa a ser endossada frente a uma presumida crise do “paradigma dominante”21. Diante deste panorama, entender com seriedade o que Espinosa e Marx disseram sobre a religião é uma tarefa estimulante. Desejamos que eles sejam ouvidos.
Notas
Referências
CHAUÍ, Marilena. A nervura do real (vol. 1 Imanência). São Paulo: Cia das Letras, 1999.
ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FRIEDMANN, Georges. Leibniz et Spinoza. Paris: Gallimard, 1962
HEGEL, G.W.F Lectures on the Philosophy of Religion, vol. 1. Berkeley: University of California Press, 1984.
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARTINS, Maurício Vieira. Marx, Spinoza and Darwin: Materialism, Subjectivity and Critique of Religion. Palgrave Macmillan, 2022.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl. O capital, Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
MONDAINI, Marco. Não aos “intervalos bíblicos”, 13/11/2015. Disponível aqui.
NOVALIS. Philister Alltagsleben. Disponível aqui. Acesso em 12/11/2025.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as Ciências. Disponível aqui. Acesso em 12/11/2025.
SPINOZA. Correspondencia. Madri: Alianza Editorial, 1988.
WEBER, Max. ‘Science as a Vocation’, in Max Weber: The Vocation Lectures. Indianapolis and Cambridge: Hackett Publishing Company, 2004.
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Maurício Vieira Martins é doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-Marx/UFF). Chave:61993185299
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