Povos e guerras entre estados

"A esquerda usa dois pesos e duas medidas. Condenamos, com razão, o assassinato de milhares de crianças palestinas, mas não dizemos nada sobre o sofrimento suportado pela sociedade ucraniana." Foto AP/Arquivo

Neste período de guerras generalizadas, talvez seja necessário revisitar alguns princípios relativos ao conflito armado entre Estados e ao papel do povo. Nestes tempos de profunda confusão, parece necessário esclarecer que não estamos falando da perspectiva das instituições existentes, mas sim da perspectiva do anticapitalismo e da resistência à violência e ao genocídio em curso. 

O primeiro caso é o da guerra entre grandes potências, geralmente nucleares. Essa guerra, hoje, não é direta, mas sim travada por procuração, já que, por ora, evitam um confronto que teria consequências enormes, pois é muito provável que armas nucleares fossem usadas em tal cenário. Não há espaço para meias medidas: para o povo, não existem potências boas, e todas fazem parte do mesmo sistema capitalista, patriarcal e colonial. 

Embora seja desnecessário mencionar, o núcleo da dominação imperial são os Estados Unidos (à frente do Norte Global), enquanto as potências que a desafiam (China e Rússia) não só fazem parte do mesmo sistema, como são igualmente opressoras e buscam a hegemonia. Há partidos e até movimentos de esquerda que defendem a tese de que a China é um país socialista, com a mesma falta de seriedade com que um acadêmico argentino encontra semelhanças entre Putin e Lenin. 

O segundo caso é o da agressão de uma potência (grande ou média) contra uma nação periférica do sistema mundial, situação em que a soberania do país atacado deve ser defendida sem reservas e independentemente de se gostar ou não do regime que o governa. É o caso da invasão da Ucrânia pela Rússia, da guerra travada pela Arábia Saudita (e diversas potências ocidentais) contra o Iémen e da ameaça de uma invasão dos EUA à Venezuela. É a triste história de mais de 50 intervenções de Washington na nossa região desde o final do século XIX. 

Aqui também, a esquerda adota um padrão duplo. Condenamos, com razão, o assassinato de milhares de crianças palestinas, mas permanecemos em silêncio sobre o sofrimento suportado pela sociedade ucraniana. Ou será que valorizamos a vida das crianças no altar da conveniência geopolítica? É evidente que atitudes como essa desacreditam a esquerda e a reduzem a meros peões no jogo de xadrez global. 

O terceiro caso é o da agressão de uma potência ou Estado-nação contra um povo, como no caso da violência e do genocídio contra o povo palestino por Israel e pelos Estados Unidos. Mas podemos também incluir a violência contra o povo curdo por quatro Estados (Turquia, Iraque, Irã e Síria). Esta é a história típica do colonialismo e do imperialismo, da invasão e agressão contra os povos do Vietnã, Moçambique e Angola, e da ocupação da África, da Índia e da China pelas potências europeias no passado. 

Aqui também, os padrões duplos aparecem na esquerda. Sabemos de indivíduos e até movimentos que se recusam a apoiar o povo curdo por simpatizarem com o Irã, que consideram um inimigo dos Estados Unidos. São situações em que princípios e valores éticos se evaporam, dando lugar a um pragmatismo cru onde as pessoas são tratadas meramente como objetos, como bucha de canhão geopolítica. 

Na verdade, precisamos começar pelo caminho inverso. Precisamos dizer, por exemplo, que apoiamos o povo Mapuche, os Maias, os Nasa e os Misak, todos os povos que resistem, porque eles são os agentes da mudança possível e desejável, a mudança que vem de baixo. Dessa perspectiva, tudo se encaixa, e são as nações e os Estados poderosos que devem se posicionar diante da luta dos povos. Porque, nestes anos em que a geopolítica se tornou moda, os verdadeiros atores ficam obscurecidos para os analistas que acreditam que os Estados agora ocupam esse espaço. 

Essa tendência está se intensificando, e estamos apenas na primeira fase da desordem global generalizada para a qual nos encaminhamos. À medida que a tempestade sistêmica se intensifica, as oscilações serão maiores, o oportunismo de todos os tipos parecerá razoável para muitos, e o absurdo gradualmente tomará conta até mesmo do que resta do pensamento crítico. As reviravoltas da social-democracia alemã em 1914, que em segundos passou de se opor veementemente à guerra a votar a favor dos pedidos de empréstimo do governo para enviar tropas à frente de batalha, se tornarão corriqueiras. 

Por isso, é importante assumir o leme com firmeza e não se perder em argumentos supostamente racionais. Não devemos perder de vista nossa verdadeira direção, nossos valores, sob nenhuma circunstância, por mais difícil ou custosa que seja a consistência. Essa direção inabalável são as pessoas, a vida das pessoas comuns, o sofrimento das crianças, e não nos limitarmos a denunciar apenas os crimes que nos convêm denunciar. 

É e será muito difícil, porque agora todos os estados afirmam estar fazendo o que fazem pelo povo, enquanto ao mesmo tempo continuam a puni-lo.


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