Não é mera coincidência a preferência dos integrantes do Instituto
Millenium pela subordinação do Brasil aos grandes centros financeiros
internacionais e sua ojeriza diante das relações harmônicas entre governos
latino-americanos.
Laurindo Lalo Leal
Filho
Carta Maior
O economista
Cristiano Costa foi recebido em fevereiro pelo pessoal do grupo A Tarde,
em Salvador. A companhia de comunicação, que tem provedor e portal na internet,
agência de notícias, jornal impresso, emissora de FM, gráfica, reuniu seus
profissionais para servirem-se de uma palestra da série 'Millenium nas
Redações'.
Blogueiro e professor
de uma universidade capixaba chamada Fucape Business School, Costa é também
colaborador cativo do Instituto Millenium, articulador desses eventos
destinados a “aprimorar a qualidade da imprensa no Brasil”.
A base de sua
explanação são seus artigos reproduzidos no site do instituto, em que critica
duramente a política econômica do governo e ataca sem rodeios o ministro da
Fazenda, Guido Mantega.
Em um deles, cita o
programa 'Minha Casa, Minha Vida' como um dos responsáveis por inflacionar o
setor imobiliário. Isso num ambiente em que até os preços de imóveis de alto
padrão dispararam.
As pessoas estão mais
seguras no emprego e foram comprar, a queda dos juros levou mais gente a ter
acesso a crédito, ou mais gente a tirar dinheiro de aplicações financeiras para
investir em imóveis. Há muitos fatores em jogo, mas lá vai o programa federal
destinado a famílias de baixa renda pagar o pato da especulação.
Outras redações de
jornais e revistas foram brindadas pelo Millenium com palestras sobre assuntos variados,
da reforma do Judiciário à assustadora “crise econômica”.
O currículo dos
palestrantes, colaboradores do instituto, explica o objetivo real das
palestras: consolidar no meio jornalístico o papel oposicionista da mídia
brasileira.
Há algum tempo os
ambientes de redação eram conhecidos por ter profissionais críticos,
independentes, e o direcionamento da informação era resultado da sintonia dos
editores com os donos dos veículos.
Não era incomum a
conclusão do jornal ou da revista acabar em atrito entre repórter e superiores.
Agora, os donos dos veículos preferem formar “focas” que já cheguem às redações
comprometidos com suas crenças.
Essas crenças,
recheadas de interesses políticos e econômicos, vêm sendo difundidas de maneira
afinada pelos meios de comunicação reunidos no Millenium. Resultado concreto
desse trabalho pôde ser visto neste início de ano.
Três assuntos,
alardeados como ameaças ao país, ocuparam as manchetes dos grandes jornais e
foram amplificados pelo rádio e pela TV: apagão, inflação e crise na Petrobras.
Além do noticiário
parcial, analistas emitiam previsões catastróficas. Como elas não se
confirmavam, o assunto era esquecido e logo substituído por outro.
No dia 8 de janeiro,
o jornal O Estado de S. Paulo estampou na capa: “Governo já vê
risco de racionamento de energia”. Um dia antes a colunista da Folha de
S. Paulo Eliane Cantanhêde chamava uma reunião ordinária, agendada
desde dezembro, de “reunião de emergência” do Comitê de Monitoramento do Setor
Elétrico convocada às pressas por Dilma para tratar do risco de racionamento.
Diante da constatação
de que a reunião nada tinha de extraordinária, a Folha publicou uma acanhada
correção. Como de costume, o tema foi sendo lentamente deixado de lado. O risco
do “racionamento” desapareceu.
Pularam para o
“descontrole” da política econômica e a ameaça de um novo surto inflacionário.
“Especialistas” tentavam, a partir dos índices de janeiro, projetar uma
inflação futura capaz de desestabilizar a economia.
Aproveitavam para
crucificar o ministro Mantega, artífice de uma política que contraria
interesses dos rentistas nacionais e internacionais: a redução dos juros
bancários está na raiz da gritaria.
Não satisfeitos,
colocaram a Petrobras na roda, responsabilizando a “incapacidade
administrativa” dos dirigentes da empresa pela redução dos dividendos pagos aos
acionistas.
Sem considerar que,
dentro da estratégia atual de ação da Petrobras, os recursos de parte dos
dividendos retidos passaram a contribuir para o desenvolvimento do país na
forma de novos investimentos.
Variações de uma nota só
Aparentemente isoladas, essas versões jornalísticas são, na verdade, articuladas a partir de ideias comuns que permeiam as pautas dos principais veículos.
No site do Instituto
Millenium elas estão organizadas e publicadas de maneira clara. O Millenium diz
ter como valores “liberdade individual, propriedade privada, meritocracia,
Estado de direito, economia de mercado, democracia representativa,
responsabilidade individual, eficiência e transparência”.
Faz lembrar a
ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, que chegou a dizer que só o
indivíduo existe, a sociedade é ficção.
Fundado em 2005, o
Millenium foi oficialmente lançado em abril de 2006 com o apoio de grandes
empresas e entidades patronais lideradas pela Editora Abril e pelo grupo
Gerdau.
Trata-se de uma
liderança significativa, pois reúne uma empresa propagadora de ideias e valores
e outra produtora de aços, base de grande parte da economia material do país.
A elas juntam-se a
locadora de veículos Localiza, a petroleira norueguesa Statoil, a companhia de
papel Suzano, o Grupo Estado e a RBS, conglomerado de mídia que opera no sul do
Brasil. A Rede Globo, como pessoa jurídica, não aparece na lista, mas um dos
seus donos, João Roberto Marinho, colabora.
Essa integração entre
empresas de mídia e empresários faz do Millenium uma organização capaz de
formular e difundir programas de ação política em larga escala, com maior
capacidade de convencimento do que muitos partidos políticos. Com a oposição
partidária ao governo enfraquecida, ocupa esse espaço com desenvoltura.
Apesar do apego
declarado à democracia, alguns dos colaboradores não escondem o desejo de
combater o governo de qualquer forma.
É o que está
explícito na fala de outro de seus colaboradores, o articulista Arnaldo Jabor,
quando num dos eventos promovidos pelo instituto disse: “A questão é: como
impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais
existir no mundo?”
Essa articulação faz
lembrar a de organismos privados como o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (Ibad), fundado em 1959, e o Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (Ipes), nascido em 1961. Ambos uniram empresários e mídia conservadora
na formulação e divulgação de ideias que impulsionaram o golpe de 1964.
“Ipes e Ibad não eram
apenas instituições que organizaram uma grande conspiração para depor um
governo legítimo. Elaboraram um projeto de classe. O golpe foi seguido por uma
série de reformas no Estado para favorecer o grande capital”, lembra o
pesquisador Damian Bezerra de Melo, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
No cenário atual, de
decadência do modelo neoliberal e de consolidação de políticas
desenvolvimentistas no Brasil, o Millenium seria um instrumento ideológico para
dar combate a esse processo transformador.
“Nos anos 1990
ocorreu a disseminação da ideologia do pensamento único, de que o capitalismo
triunfou, o socialismo deixou de existir como projeto político”, afirma a
historiadora Carla Luciana da Silva, da Universidade do Oeste do Paraná.
“Quando surgem experiências concretas que podem desafiar essas ideias, aparece
em sua defesa uma organização como o Millenium para manter vivo o ideal do
pensamento único.”
A difusão dessas
ideias não é feita por meio de manifestos ou programas partidários, observa a
pesquisadora. “É muito difícil pegar uma revista como a Veja ou
um jornal como a Folha de S. Paulo e conseguir visualizar os
sujeitos que estão produzindo as ideias defendidas ali. Cria-se uma imagem do
tipo ‘a’ Folha, ‘a’ Veja, como se fossem sujeitos com
vida própria. É uma forma de não deixar claro em nome de que projeto falam,
como se falassem em nome de todos.”
Contra as versões, fatos
Conhecendo as ações do instituto e seus personagens fica mais fácil compreender como certos assuntos tornam-se destaque de uma hora para outra. A presença nos quadros do instituto de jornalistas e “especialistas” com acesso fácil aos grandes meios de comunicação leva suas “notícias” rapidamente ao centro do debate nacional.
E fica difícil
contra-argumentar com colaboradores do Millenium, não pela qualidade de seus
argumentos, mas pela força de persuasão dos veículos pelos quais difundem suas
ideias.
Como retrucar, com igual alcance, comentários de Carlos Alberto Sardenberg, na CBN, de Ricardo Amorim, na IstoÉ, na rádio Eldorado e no programa Manhattan Connection, da GloboNews, de José Nêumanne Pinto, no Estadão e no Jornal do SBT, de Ali Kamel, diretor de jornalismo da TV Globo, entre tantos outros?
Como retrucar, com igual alcance, comentários de Carlos Alberto Sardenberg, na CBN, de Ricardo Amorim, na IstoÉ, na rádio Eldorado e no programa Manhattan Connection, da GloboNews, de José Nêumanne Pinto, no Estadão e no Jornal do SBT, de Ali Kamel, diretor de jornalismo da TV Globo, entre tantos outros?
Não é mera
coincidência a preferência dos integrantes do Millenium pela subordinação do
Brasil aos grandes centros financeiros internacionais e sua ojeriza diante das
relações harmônicas entre governos latino-americanos.
Trata-se de uma
tentativa de ressuscitar um projeto político implementado durante a ditadura
que só passou a ser confrontado, ainda que parcialmente, a partir de 2003, com
a posse do governo Lula.
Mas parece não haver
espaço para uma hipótese golpista, apesar do já citado dilema de Jabor. Para a
professora Tânia Almeida, da Unisinos de São Leopoldo (RS) e diretora de
relações públicas da Secretaria de Comunicação do Rio Grande do Sul, um dos
ganhos da crise política de 2005, com a questão do chamado “mensalão”, foi ter
forçado análises e estudos em busca de explicações de como o então presidente
Lula conseguiu suportar tanta notícia negativa e manter elevados índices de
aprovação.
“Não era só carisma.
Desde 2003, havia uma gestão de governo em funcionamento. Não existia somente
aquilo de que os jornais e revistas tratavam, não era só escândalo. Outra
proposta política estava acontecendo”, observa Tânia. Para a professora, os
avanços sociais alcançados não permitem crer em crise que leve a uma ruptura
institucional.
“O Millenium é um
agente articulador, social, político, que pode fomentar e aquecer debates, mas
não teria potencial para causar uma crise nos moldes de 1964. O poder de
influência da mídia ficou relativizado desde 2006 em função dessa política que
chega lá na ponta e inclui quem estava fora.”
Damian Melo, da UFF,
tem visão semelhante, mas com um pé atrás: “O Millenium não possui hoje
estratégia golpista. Quer emplacar seu projeto, e isso pode ser pela via
eleitoral mesmo. Muito embora nossa experiência nos diga que é melhor ficarmos
atentos”.
*Colaborou Rodrigo Gomes
*Colaborou Rodrigo Gomes
**Publicado
originalmente na Revista do Brasil, edição de março de 2013
Laurindo Lalo Leal
Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor,
entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da
televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.
Comentários
Postar um comentário
12