por Silvio Caccia Bava
Nas décadas passadas a vitória do neoliberalismo restaurou o
poder dos interesses empresariais no comando das cidades. Muitas das empresas
públicas desapareceram e cederam seu espaço para a exploração desses serviços
por grandes conglomerados empresariais, nacionais e estrangeiros. As grandes
empreiteiras de obras públicas, que agora estendem seus domínios para a
prestação de serviços como a coleta do lixo e a administração de rodovias; o
cartel dos transportes públicos; a indústria automobilística e seu interesse na
expansão dos negócios; os empresários do setor imobiliário: são eles que
retomam o controle dos governos e passam a dar as cartas definindo que
urbanismo serve a seus interesses.
A extinção da Companhia Municipal de Transportes Coletivos
(CMTC), em São Paulo, em 1995, na gestão de Paulo Maluf, e de outras empresas
públicas municipais de transportes em outras cidades é um bom exemplo. Com o
fim da empresa pública o governo municipal perde a capacidade de intervir
diretamente nas empresas privadas concessionárias do serviço, não controla mais
a planilha de custos, submete-se ao peso de um cartel no qual hoje, no caso de
São Paulo, apenas dois empresários detêm 7 mil ônibus, a metade da frota em
circulação.
É da mesma época, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a
Lei n. 8.987, de Concessões de Serviços Públicos, que cria um marco regulatório
para privatizar as companhias de serviços de saneamento. A chegada das
operadoras multinacionais à área de saneamento contou com o estímulo e o
incentivo do governo federal, por meio de programas de privatização e
reestruturação, com recursos financeiros da Caixa Econômica Federal e do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O Estado perde sua capacidade reguladora em defesa do
interesse público, adota critérios de mercado para estabelecer as políticas e
os preços das tarifas públicas, e ignora a realidade social. É preciso garantir
o lucro das operadoras.
Os cidadãos são considerados apenas consumidores, o que vale
dizer que as empresas concessionárias se mobilizam para atender aqueles que
podem pagar pelos serviços privatizados; os outros, os que não podem pagar, não
entram nos planos desse urbanismo.
Essa lógica de encarar a cidade como oportunidade para bons
negócios estimula a especulação imobiliária e expulsa os antigos moradores
pobres do centro para a periferia, pois eles não têm dinheiro para alugar ou
comprar os imóveis nessa região; estimula o uso do automóvel e ao mesmo tempo
impede mais de 30% dos moradores das metrópoles brasileiras de usar o transporte
coletivo. Estes não têm dinheiro para isso. Andam a pé.
É essa mesma lógica da maximização do lucro que levou o
governo do estado de São Paulo a reajustar indevidamente o pedágio nos
contratos com a CCR, em 2006. Hoje o Ministério Público acusa a CCR, com a
conivência do governo, de se apropriar indevidamente de mais de R$ 2 bilhões
dos cidadãos que pagam o pedágio.
Muitos dos serviços públicos de saúde, educação, assistência
social, transportes e segurança foram terceirizados, isto é, transferidos para
ser executados por empresas privadas. Sem uma ação fiscalizadora efetiva por
parte do governo, o resultado é o mesmo por toda parte: cai a qualidade do
serviço, os cidadãos deixam de ser atendidos, piora a qualidade de vida para
grande parte dos cidadãos.
Os investimentos na infraestrutura urbana, um elemento
central para definir o padrão de urbanismo, se orientam para a produção de
pontes e viadutos, para a duplicação das avenidas marginais, principalmente
para garantir a circulação dos automóveis, enquanto o metrô e os corredores de
ônibus ficam para trás como prioridade. Aos interesses públicos – que
necessitam dos transportes coletivos – se sobrepôs o interesse das empresas que
comandam a política.
A vida nas cidades se transformou numa mercadoria. O espaço
público se fragmentou, se privatizou, a segregação se impôs. Bairro rico de um
lado, com todos os tipos de serviços públicos disponíveis, shoppings, espaços
de lazer, polícia privada garantindo a segurança. Bairros pobres e favelas de
outro, ocupações com habitações precárias autoconstruídas, sem esgoto e muitas
vezes sem água potável, com a eletricidade vinda de ligações clandestinas, em
áreas de risco sujeitas a deslizamentos e inundações, sem equipamentos de
educação e saúde, sem transporte público adequado, acossados por uma polícia
que criminaliza a pobreza.
Não é que o governo seja incompetente, incapaz de oferecer
serviços públicos de qualidade. É que ele não se propõe ou não consegue fazer
isso. A gestão da cidade atende aos interesses de acumulação do capital, que vê
a produção e a reprodução do urbano como negócio, como fonte de lucro.
Esse é o mundo no qual a ética neoliberal − de um intenso
isolamento do indivíduo, de ansiedade e neurose, de consumismo − se impôs como
padrão. Quem tem dinheiro usufrui a cidade; quem não tem encontra aí uma vida
cada vez mais insuportável.
É esse o cenário no qual o aumento dos R$ 0,20 na tarifa dos
ônibus em São Paulo desencadeou as mobilizações de junho, que levaram mais de 2
milhões de pessoas às ruas em quase quatrocentas cidades brasileiras.
O que essas mobilizações põem em xeque não é o aumento da
tarifa, mas sim o urbanismo privatista que transforma tudo em mercadoria e
acaba com os direitos dos cidadãos. O grande motivo para as mobilizações é a
luta contra a espoliação urbana e todo o sofrimento que ela impõe aos
trabalhadores. Espoliação urbana, como nos ensina Lúcio Kowarick,1 é o
somatório de “extorsões que se opera pela inexistência ou precariedade de
serviços de consumo coletivo, que conjuntamente ao acesso à terra e a moradia
apresentam-se como socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores
e aguçam ainda mais a dilapidação recorrente da exploração do trabalho ou, o
que é pior, da falta deste”. A falta de prioridade e de investimentos nas
políticas públicas castiga a todos que precisam do transporte público, da
moradia, dos serviços de saúde, educação, assistência social, previdência e
segurança, políticas garantidas como direitos por nossa Constituição.
A força das ruas e um novo urbanismo democrático
De uma perspectiva histórica, é a mobilização dos cidadãos
insatisfeitos que pode mudar as coisas. Quando eles se revoltam contra a
precariedade das políticas públicas, a desigualdade social e a segregação na
vida das cidades, abre-se o horizonte para mudanças no comportamento dos
políticos e na execução dessas políticas.
A participação popular é a mobilização da cidadania pela
democratização dos governos e da vida em sociedade, pela melhoria da vida nas
cidades, pelo respeito aos direitos sociais e políticos. Seu objetivo maior é
que a cidadania organizada, expressando os múltiplos interesses das grandes
maiorias, participe das decisões, junto com os gestores públicos, sobre o
modelo de cidade e as políticas públicas. Fazer isso implica também o controle
social sobre os gastos e as iniciativas de governo.
É com a redemocratização do país que o direito à cidade se
afirma como uma referência para o surgimento de um novo urbanismo. São as ações
dos movimentos de moradia, sua articulação com outras lutas, com o movimento em
defesa da saúde, com a luta por creches, com a luta por transportes e uma
infinidade de outras mobilizações que colocam para a sociedade e para os
governos as demandas populares. Esses movimentos, por sua vez, constroem uma
plataforma comum de reivindicações, se articulam em redes, como o Fórum
Nacional da Reforma Urbana, denunciam a espoliação urbana, politizam a
precariedade da vida das maiorias, cobram a democratização da gestão.
A luta pelo direito à cidade, nos últimos trinta anos,
obteve muitas conquistas: inseriu um capítulo específico sobre política urbana
na nova Constituição brasileira de 1988; criou um marco normativo geral com o
Estatuto da Cidade; obrigou todos os municípios com mais de 20 mil habitantes a
produzir Planos Diretores de urbanização tendo como referência o Estatuto da
Cidade; fez pressão para a criação do Ministério das Cidades, assim como para a
democratização da gestão com a criação dos Conselhos da Cidade em todos os
níveis da federação, uma nova institucionalidade participativa; lutou pela
destinação de recursos e criação de mecanismos específicos de financiamento
para habitação popular, que veio a se concretizar com a criação do Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social. Mesmo o programa maciço de
construção de casas populares – o Minha Casa, Minha Vida – também pode ser
visto como uma resposta às demandas populares e à crise urbana.
Além disso, o movimento pela reforma urbana produziu
impactos internacionais. O direito à cidade foi introduzido em várias novas
constituições, como as da Venezuela, Colômbia, Bolívia, Equador; também
inspirou, por exemplo, a criação nos Estados Unidos, em 2007, da Aliança
Nacional pelo Direito à Cidade, com expressiva atuação em cidades como Nova
York e Los Angeles. O Orçamento Participativo tornou-se uma referência e está
presente hoje em mais de 2.600 cidades em todo o mundo.
Mas a disputa pelo modelo de urbanismo e pela democratização
da gestão teve outros capítulos recentes. Para atender à política de coalizão,
o Ministério das Cidades foi entregue pelo governo federal a políticos fiéis
aos interesses especulativos e imediatistas; o programa Minha Casa, Minha Vida,
concebido pelo governo em articulação com os empresários da construção civil,
passou ao largo de todo esse acúmulo normativo e institucional que incorporava
a participação cidadã. O Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social ficou
sem fundo, e o dinheiro para o Minha Casa, Minha Vida, sem controle social; os
Planos Diretores municipais foram ignorados para definir a locação desses novos
empreendimentos.
Os efeitos perversos dessa guinada na política urbana se
fazem sentir: para os trabalhadores, a vida nas cidades, principalmente nas
cidades grandes, se torna a cada dia mais insuportável. As práticas de
resistência a essa mercantilização da vida trazem para o centro da agenda
política o tema do direito à cidade. E para que o direito à cidade oriente a
estratégia de desenvolvimento urbano, as questões da descentralização, da
democratização da gestão e da participação cidadã tornaram-se essenciais.
Reinventar a cidade para todos
“A questão de qual cidade nós queremos não pode estar
dissociada da questão de que tipo de pessoas nós queremos ser, que tipo de
relações sociais nós procuramos, que relações com a natureza queremos, que
estilo de vida queremos, que valores estéticos valorizamos.
O direito à cidade é bem mais que o direito dos indivíduos
ou grupos sociais terem acesso aos recursos que a cidade tem. É o direito de
mudar e reinventar a cidade a partir de suas aspirações e desejos, o que
depende do exercício coletivo do poder sobre os processos de urbanização.”2 Em
outras palavras, tornar a cidade um espaço público de encontro e solidariedade,
de trabalho cooperativo, onde os serviços públicos sejam eficientes, de
qualidade, atendam a todos e sejam considerados bens públicos comuns. Ninguém
paga qualquer taxa para se servir deles. É o conjunto dos contribuintes, por
meio de seus impostos, que paga a conta.
Somente a força dos movimentos sociais pode impor mudanças
de peso, estruturais, nas políticas públicas. Do sistema político nós não
podemos esperar senão a defesa do status quo. Porque está em disputa a
manutenção desse equilíbrio político, a estratégia de favorecimento do
empresariado e a alocação privatista da receita pública. Reforma política,
tributária, agrária, urbana, todas estão fora das agendas da classe capitalista
e de nossas elites. Elas ameaçam seus interesses.
As lutas por essas reformas se darão nas ruas e serão
orientadas para a construção de um Estado de bem-estar social. Tardiamente, ao
arrepio do desmonte do welfare state na Europa, podem surgir condições para o
Brasil avançar em políticas públicas como educação, saúde, transportes, moradia,
assistência social, previdência, criação e valorização de espaços públicos e de
lazer. Avançar significa priorizar os interesses dos trabalhadores e investir
muitos bilhões e rapidamente. E criar formas de gestão pública participativa e
transparente para garantir a efetividade do controle social do gasto público.
É evidente que se trata de uma disputa pelos recursos
públicos e pela orientação das políticas públicas. Os trabalhadores, no seu
lato sensu, todos que vivem do seu trabalho, querem uma vida boa, bons serviços
públicos, e para isso um governo que atenda a seus interesses. Os capitalistas,
por meio de suas empresas privadas, querem um governo que favoreça seus
interesses de acumulação. É do jogo de pressões entre essas forças que surgirá
o novo. Na Europa ocidental, especialmente, esse jogo resultou – em sua época –
em um enorme salto de qualidade de vida para toda a população.
A pressão das ruas pede a democratização do sistema
político, luta por assegurar a participação cidadã na gestão pública. A forma
de governar não pode mais ser hierárquica, centralista, autoritária,
burocrática. Ela tem de se democratizar e descentralizar. Essa é uma
oportunidade para os governos enfrentarem a crise do sistema político:
fortalecer seus laços com a cidadania e construir sua legitimidade como
governante.
“Trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar
instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a
representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos.
Numa palavra, uma invenção democrática”, nos alerta Marilena Chauí.3
Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
Ilustração: Daniel Kondo
1 Lúcio Kowarick, A espoliação urbana, Editora Paz e Terra,
São Paulo, 2ed., 1993.
2 David Harvey, Rebel cities [Cidades rebeldes], Editora
Verso, Londres, 2012.
3 Marilena Chauí, “O inferno urbano e a política do favor,
clientela, tutela e cooptação”, Teoria e Debate,
São Paulo, jul. 2013.
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