Valor Econômico
"Eu via no universo cristão uma leviandade com relação
à guerra que teria deixado envergonhadas as próprias nações bárbaras".
Hugo Grotius, "O Direito da Guerra e da Paz", 1625
Por definição, todo poder territorial é limitado e
expansivo. Envolve a existência de fronteiras, e de algum tipo de "inimigo
externo" ou "bárbaro", de quem se defender e a quem
"conquistar" e "civilizar". Por isto, os projetos
expansivos de poder sempre se revestem de algum sentido de missão, e adotam
algum sentido moral e messiânico. E toda conquista vitoriosa produz e impõe
algum tipo de discurso e de ordem ética "supranacional". Em muitos
casos, estes poderes expansivos se associaram com religiões que se propunham
ajudar na conquista messiânica e na "conversão" dos povos bárbaros. E
o mesmo aconteceu com o colonialismo europeu, até o momento em que adotou a
retórica laica e universalista do "direito natural", e mais
recentemente, dos "direitos humanos" e das "intervenções
humanitárias".
Na hora do nascimento dos atuais Estados europeus, e do
início de sua expansão conquistadora ao redor do mundo, o jurista holandês,
Hugo Grotius (1583-1645)1 - que foi um dos pais do direito internacional
moderno - identificou a contradição fundamental do "universalismo
ético" dos europeus. Grotius acreditava na existência do "direito
natural, comum a todos os povos, tão imutável que não poderia ser mudado nem
pelo próprio Deus". Mas ao mesmo tempo, reconhecia que num sistema
internacional formado por muitos Estados, com identidades, culturas e interesses
diferentes, sempre existiriam muitas "inocências subjetivas", frente
a uma mesma "justiça objetiva". E nestas circunstâncias, não haveria
como arbitrar "objetivamente" quem teria a razão, nem como decidir
sobre a legitimidade de uma guerra declarada entre dois povos que
reivindicassem uma interpretação diferente dos mesmos fatos e direitos.
Por isto, apesar de Grotius considerar que a
"segurança" e a "paz" eram direitos inalienáveis de todos
os homens e de todos os povos, também considerava que a guerra era um recurso
inevitável, num sistema politico com muitos Estados competitivos entre si.
Mesmo assim, Grotius nunca imaginou a possibilidade de uma guerra que tivesse
como objetivo promover ou universalizar o próprio "direito natural dos
homens". Para ele, os direitos humanos e a fé religiosa eram uma conquista
de cada homem e de cada povo em particular, e uma guerra feita em nome dos
"direitos naturais" seria uma contradição em si mesma, ou seria uma
"guerra de conversão", como as Cruzadas, que ele abominava, apesar de
ser um cristão fervoroso.
Quase dois séculos depois, o filosofo iluminista alemão,
Immanuel Kant (1724-1804)2, reconheceu a existência desta mesma contradição, no
caminho do seu projeto de uma "paz perpétua" universal. Mas Kant
acreditava na superioridade dos europeus e defendia sua "missão
civilizatória" no mundo. Por isso, propunha seu projeto de paz, mas
considerava que primeiro os europeus teriam que converter o resto do
"gênero humano" à mesma "ética internacional civilizada"
que eles haviam criado. Para Kant, portanto, "no grau de cultura em que
ainda se encontrava o gênero humano, a guerra era um meio inevitável para
estender a civilização, e só depois que a cultura tivesse se desenvolvido (Deus
sabe quando) seria saudável e possível uma paz perpétua".
Neste início do século XXI, a contradição identificada por
Grotius e Kant adquiriu muito mais força e extensão, com a multiplicação do
número de Estados do sistema mundial e com o fim da bipolaridade ideológica da
Guerra Fria. Depois de 1991, muitos acreditaram na vitória do
"cosmopolitismo europeu", mas já no início do século XXI, todos
perceberam que o sistema mundial segue sendo o mesmo, só que ficou ainda mais
complexo e heterogêneo, do ponto de vista ético, cultural e religioso. E tudo
indica que neste novo universo ampliado e sem ameaça comunista, as grandes
potências ocidentais decidiram transformar a questão do "respeito aos
direitos humanos", no novo grande princípio ético legitimador das suas
velhas "guerras civilizatórias".
Chama atenção, neste sentido, que todas estas guerras das
duas últimas décadas tenham sido lideradas pelos mesmos países que compõem -
simultaneamente - o "diretório militar" do mundo ocidental, e seus
pequeno "círculo de criadores da moral internacional"3: Estados
Unidos, Inglaterra e França. Ou seja, contra toda boa norma jurídica, neste
momento da história internacional, os mesmos três países que formulam a ética,
os direitos e as regras são os que julgam, condenam e punem quem eles
consideram culpado, o que em geral já está definido de antemão. Com ou sem o
consentimento do resto do "gênero humano", que ainda não foi
"civilizado", e que não tem poder para dizer: basta!
1- Hugo Grotius, 2005, O direito da guerra e da paz,
Vol I, Editora Unijui, Ijui.
2- Immanuel Kant, 2008, " A paz perpétua, um
projeto filosófico", Lusofia; Press, Covilhã.
3- Edward H.Carr, 2001, "The twenty years crisis,
1919-1939", Harper Collins, London.
José Luís Fiori professor titular de economia política
internacional da UFRJ, é autor do livro "O Poder Global", da Editora
Boitempo e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ "O Poder Global e
a Geopolítica do Capitalismo". Escreve mensalmente às quartas-feiras.
Link:
http://www.valor.com.br/opiniao/3282130/geopolitica-e-etica-internacional
www.poderglobal.net

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