Ao suspender publicação da “Vogue Kids”, Justiça aponta:
publicidade contemporânea tira proveito da vulnerabilidade infantil para
sugerir consumo alienado e fútil
Por Lais Fontenelle - http://outraspalavras.net/
Mês passado, um ensaio fotográfico intitulado “Sombra e água
Fresca”, de um editorial de moda da Vogue Kids envolvendo meninas em poses
sensuais, foi alvo de contundentes críticas de pais, mães, pediatras,
especialistas em infância, estudantes e instituições que trabalham em prol da
garantia dos direitos das crianças. O repúdio e as denúncias a diversos órgãos
competentes foram tamanhos, que acabaram acarretando denúncia formal ao
Ministério Público do Trabalho. A Justiça determinou que as fotos fossem retiradas,
em 48h, de todas as mídias digitais, da revista Vogue Kids e consequentemente
da Vogue (edição de setembro), na qual Vogue Kids é encartada como suplemento.
O fato deve ser celebrado nesse mês das crianças, e merece
reflexão. É claro que é linda a cena de uma filha se equilibrando nos saltos da
mãe, passando o batom vermelho da avó ou brincando com outros elementos que
permeiam o universo feminino materno e fazendo de conta que é gente grande.
Brincar de faz de conta com roupas e objetos do universo adulto e experimentar
trejeitos maduros é importante para o desenvolvimento e faz parte do exercício
de comportamentos futuros.
Mas o que vimos nas fotos do ensaio da revista Vogue estava
longe de ser brincadeira. As imagens veiculadas rompiam nitidamente com o
limiar entre crianças e adultos, meninas e mulheres – um limiar já bastante
tênue, hoje, na sociedade de consumo. O ensaio fotográfico trazia fotos de
meninas entre sete e dez anos em poses mais que sensuais, fazendo caras e bocas
costumeiras às modelos adultas mas incompatíveis com essa faixa etária. O
cenário era praiano, mas as fotos não retratavam crianças brincando ou correndo
felizes. Aliás, nem sorrindo estavam. Com expressões lânguidas, as meninas
posaram em posições adultas, mas com expressão de fragilidade, tirando a blusa
e olhando por cima do ombro ou com o corpo deitado e as pernas entreabertas.
Cabe então a pergunta: qual a real intenção do ensaio? A
meus olhos, nada mais do que chamar atenção de adultos e crianças para os
produtos ali “anunciados veladamente” – o que, por si só, já ataca a
vulnerabilidade infantil, posto que a maioria das crianças ainda não têm, como
nós, adultos, capacidade crítica e abstração de pensamento necessárias para
lidar com os apelos sedutores do consumo. Sem falar das consequências
emocionais que imagens como essas provocam no imaginário feminino infantil,
levando as pequenas moças a acreditar que roupa sensual e pose erótica serão
peças fundamentais para a expressão de sua identidade e aceitação social.
Não é de hoje que as crianças são insistentemente convidadas
a amadurecer precocemente e passar, num clique, de menina a mulher aos olhos da
sociedade. Isso, num país que mapeou 1.820 pontos de exploração sexual infantil
nas rodovias federais, 241 rotas de tráfico de crianças e adolescentes para
fins de exploração sexual, além de 13.472 denúncias de pornografia infantil na
internet e de 3.600 denúncias telefônicas de abuso e exploração sexual
infanto-juvenil, apenas no primeiro semestre de 2010.
Diante desses dados, fica clara a gravidade de convidar
nossas meninas à adultização e erotização precoces. Recente pesquisa da World
Childhood Foudation (WCF) revela que 65% das meninas exploradas sexualmente
declaram usar o dinheiro da exploração sexual para comprar celular, tênis ou
roupas. Isso demonstra que a vulnerabilidade econômica não é mais o único fator
a despertar esse tipo de violência, dividindo a cena com apelos de consumo de
indumentária e aparelhos eletrônicos.
Assim, não restam dúvidas de que imagens como as do ensaio
fotográfico são uma violação ao direito das crianças a ter infância – fase
essencial do desenvolvimento físico, cognitivo e de valores. Meninas
precocemente erotizadas não estão preparadas para os olhares adultos que
receberão – e o mercado tem o dever e responsabilidade compartilhada de
construir um olhar mais cuidadoso sobre estas crianças.
Sem esquecer o fato de que essas meninas trabalharam, ao
participar do ensaio, e a legislação brasileira veda o trabalho infantil até os
14 anos, e permite trabalho artístico desde que com caráter de aprendizagem e
com as devidas autorizações, de modo a garantir-se o direito da criança de ter
seus interesses preservados.
Não é de hoje que fatos como esse chamam atenção da
sociedade civil e de profissionais que trabalham pelos direitos das crianças.
Em 2008, o Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana denunciou a marca de
roupas infantis Lilica Ripilica, da empresa Marisol, pela veiculação de outdoor
com foto erotizando uma criança, em Londrina. Depois de muitas idas e vindas,
nova representação foi endereçada ao Ministério Público de Santa Catarina, sede
da empresa. Em março de 2009 foi celebrado um Termo de Ajustamento de Conduta
(TAC) com a Marisol S.A., em que a empresa comprometeu-se a não mais veicular
publicidade com imagens desse tipo e a pagar multa de 20 mil reais – evidência
de que, com a devida pressão, os abusos começam a ser coibidos.
Não há dúvidas quanto à importância de as crianças serem
representadas na mídia, até para serem enxergadas na sociedade como sujeitos de
direitos. No entanto, as produções culturais devem contribuir para o
desenvolvimento infantil ou, ao menos, não prejudicá-lo. Crianças são sujeitos
de direitos, e o principal deles é ter infância. Não façamos o convite para que
as crianças, meninas especialmente, amadureçam antes do tempo. Elas precisam
ser preservadas para que possam florescer no seu próprio tempo. Façamos valer o
preceito legal de que elas são prioridade absoluta em nosso país. Será nosso
maior presente no mês das crianças.

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