Costureiros bolivianos viviam sob condições degradantes em
alojamentos, cumpriam jornadas exaustivas e estavam submetidos à servidão por
dívida em oficina terceirizada na periferia de São Paulo (SP)
Por Igor Ojeda - Da Repórter Brasil / http://www.brasildefato.com.br/
A Renner, rede varejista de roupas presente em todo o
Brasil, foi responsabilizada por autoridades trabalhistas pela exploração de 37
costureiros bolivianos em regime de escravidão contemporânea em uma oficina de
costura terceirizada localizada na periferia de São Paulo (SP).
Os trabalhadores viviam sob condições degradantes em
alojamentos, cumpriam jornadas exaustivas e parte deles estava submetida à
servidão por dívida. Tais condições constam no artigo 149 do Código Penal
Brasileiro como suficientes – mesmo que isoladas – para se configurar o crime
de utilização de trabalho escravo.
A fiscalização, realizada entre outubro e novembro, foi
comandada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo
(SRTE/SP) e contou com a participação do Ministério Público do Trabalho e da
Defensoria Pública da União. Pela SRTE/SP, estiveram presentes nas diligências
os auditores-fiscais Luís Alexandre de Faria e Sérgio Aoki. Pelo MPT, os
procuradores do Trabalho Ronaldo Lima dos Santos e Cristiane Aneolito Ferreira.
ARepórter Brasil acompanhou a inspeção trabalhista feita ao local em 6 de
novembro.
Os auditores fiscais à frente do caso consideram a Renner
responsável pela redução dos trabalhadores a condições análogas a de escravos
por entenderem que a empresa detém o controle total sobre a produção de roupas
na oficina fiscalizada, cujo serviço era intermediado por duas empresas
fornecedoras da rede varejista. “Vários elementos tratados juridicamente pela
auditoria apontam a responsabilidade trabalhista da varejista. Ela exerce
controle sobre toda sua cadeia produtiva. Em última instância é quem tem o
poder para definir prazos e condições de trabalho”, diz o auditor-fiscal do
trabalho Luís Alexandre de Faria.
“Mesmo que a Renner não tenha encontrado indícios de problemas,
no nosso entender tinha condições, sim, de tomar providências. No mínimo
contratar fornecedores que tivessem condições totais de tocar a produção. A
empresa sabia que os fornecedores iriam transferir a produção para uma camada
inferior”, afirma Faria. A confecção terceirizada costurava roupas para as
linhas Cortelle, Blue Steel, Blue Steel Urban e Just Be, todas da Renner.
Durante a operação, foram encontradas um total de 35.019 peças já costuradas ou
a costurar, com as respectivas notas fiscais.
Certificado do setor têxtil
Entre os resgatados havia 21 homens, 15 mulheres e uma
adolescente. Chamou a atenção das autoridades do trabalho o fato de tanto a
oficina quanto as empresas que intermediavam a produção entre esta e a Renner
possuírem certificação de boas práticas nas relações de trabalho expedida pela
Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX). Além disso, a pequena
confecção onde foram encontrados os trabalhadores escravizados chegou a assinar
o código de ética e conduta da Renner.
Em nota enviada à reportagem, a Renner afirma que desde que
foi notificada passou a trabalhar em conjunto com o Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE) “para garantir o cumprimento das leis trabalhistas”, e que “não
compactua e repudia a utilização de mão de obra irregular em qualquer etapa de
produção dos itens que comercializa”. A nota diz, ainda, que seus fornecedores
assinam compromissos de respeito à legislação trabalhista e que toda sua cadeia
é fiscalizada por meio da certificação da ABVTEX – no caso, pela empresa Bureau
Veritas. “A Lojas Renner, signatária do Pacto de Erradicação do Trabalho
Escravo e Pacto Global em 2013, não admite falhas na fiscalização e está
revisando e aperfeiçoando o processo de auditoria e certificação de
fornecedores.” O comunicado destaca, também, que a empresa notificou seus
fornecedores a regularizarem imediatamente a situação trabalhista dos
costureiros resgatados pelo MTE. (leia aqui a nota da Renner na íntegra)
Já a ABVTEX informa, também em nota enviada à Repórter
Brasil, que, em consequência do flagrante de trabalho escravo envolvendo a
Renner, a oficina terceirizada onde os trabalhadores eram explorados foi
suspensa da certificação de fornecedores da entidade. “A certificação tem
passado por aprimoramentos desde sua criação, mas como qualquer processo de
certificação, este é impotente ante a má fé de algumas empresas de confecção”,
diz o comunicado, que destaca que tanto a ABVTEX quanto as redes varejistas
associadas repudiam a utilização de mão de obra escrava. (leia aqui a nota da
ABVTEX na íntegra)
Alojamentos degradantes
A fiscalização teve início após uma denúncia encaminhada à
SRTE/SP. A oficina de costura onde os costureiros trabalhavam sob regime de
escravidão contemporânea é de propriedade de uma boliviana e está situada no
bairro Jardim Labiraty, no extremo Norte do município de São Paulo. Após
análise de documentação e coleta de depoimentos das vítimas, os auditores
fiscais constataram que a confecção fornecia alojamento e alimentação aos
trabalhadores em troca de um abatimento em seus rendimentos, prática não permitida
pela legislação brasileira. A gerente da oficina chegou a mentir à
fiscalização, ao afirmar que os funcionários custeavam diretamente a comida e a
moradia.
A dona da oficina mantinha três alojamentos nas proximidades
da confecção. Na avaliação dos integrantes da fiscalização, o objetivo era
exercer o controle total sobre o horário de trabalho dos costureiros, evitando
as demoras nos deslocamentos ao serviço ou nas pausas para o almoço, e gerar
uma relação de dependência deles com os patrões. Foram encontrados comprovantes
de pagamentos dos aluguéis e das contas de luz e água feitos pela proprietária
da oficina e cópias dos contratos de locação em nome de ex-funcionários, mas
que estavam em posse dos gerentes. De acordo com depoimentos das vítimas, a patroa
coagia os trabalhadores a assinarem os acordos.
Segundo o relatório de fiscalização da SRTE/SP, obtido pela
Repórter Brasil, a condição necessária para se residir nesses alojamentos era a
vinculação com o trabalho na oficina. As pessoas encontradas nas residências,
“sem exceção, ou trabalham na oficina, ou pertencem às famílias dos
trabalhadores, ou estão aguardando a emissão de documentos para iniciarem o
trabalho”, diz o documento. “O custeio dessa moradia e alimentação é acordada
pelo sistema chamado de terça parte, em que a terça parte dos valores auferidos
pelos intermediadores de mão de obra e que em tese, deveriam ser convertidos em
salários pagos aos trabalhadores, são retidos pelo empregador como uma taxa
para custear essas despesas.”
A reportagem visitou o maior dos alojamentos, um edifício de
quatro andares a um quarteirão da oficina. No térreo, uma placa indica que ali
funciona um templo evangélico. Os mais de 20 trabalhadores e trabalhadoras,
alguns com seus filhos, se apertam nos três pavimentos superiores, espalhados
por diminutos dormitórios formados por divisórias de madeira, sob completa
falta de higiene e privacidade, risco de incêndio e explosão de botijões de
gás, e alimentos armazenados em locais impróprios e cheios de insetos.
Uma rápida observação do ambiente é suficiente para
constatar que o local é repleto de soluções improvisadas. Os colchões estão em
mau estado, não há armários, objetos pessoais se acumulam em um só canto dos
cômodos, e a privacidade é preservada com toalhas, pedaços de papelão ou lonas
nas janelas e portas. “São suprimidos, dessa forma, direitos fundamentais à
privacidade e à intimidade dos trabalhadores, os quais se submetem a essas
condições para garantir a própria subsistência e a de suas famílias”, diz o
relatório de fiscalização.
Em um dos espaços, um fogão e um botijão de gás funciona ao
lado de um vaso sanitário. Os vários botijões instalados no prédio, aliás,
representam risco de explosão, pois estão acomodados em locais fechados e com
pouca ventilação. O lixo não é condicionado em recipientes com tampa, causando
mau cheiro e atraindo insetos. Os banheiros são coletivos e se encontram em más
condições de higiene. E as paredes apresentam grande quantidade de mofo e
infiltrações.
Os alimentos são armazenados de forma precária: no chão ou
sobre móveis, sem vedação, e, inclusive, no interior de dormitórios. Foram
encontrados também produtos vencidos ou à temperatura ambiente quando deveriam
ser refrigerados. Para piorar, estavam expostos à contaminação, por conta da
grande quantidade de baratas existentes, inclusive, dentro de geladeiras. Os
integrantes da fiscalização apontaram, ainda, que a alimentação era muito pobre
em nutrientes: eram fornecidos apenas arroz, feijão, salsicha e verduras. Em
depoimentos, muitos trabalhadores reclamaram da qualidade da comida oferecida.
Na visita à oficina, também acompanhada pela reportagem, a
fiscalização constatou a falta de aterramento elétrico das máquinas de costura,
instalações elétricas improvisadas, causando riscos de incêndio, e iluminação
precária nos banheiros. Além disso, não havia proteção das partes móveis das
máquinas; os trabalhadores costuravam próximos de polias e correias, correndo o
risco de amputação de membros.
Jornada exaustiva, servidão por dívida e tráfico de pessoas
Os 37 trabalhadores bolivianos cumpriam uma jornada de
trabalho exaustiva, decorrente do ritmo de trabalho imposto pela oficina, que
exigia o atendimento rigoroso aos prazos. Segundo os integrantes da
fiscalização, o registro de ponto, que apontava uma média de oito horas diárias
de trabalho, era fraudado. Na realidade, em geral as vítimas entravam às 7
horas e saíam às 21 horas, com intervalo para almoço. Aos sábados, o expediente
era das 7 horas às 12 horas. “Há ainda relatos de trabalhadores laborando desde
às 6h30min até a meia-noite, e relatos de trabalhos aos sábados em horário
estendido e aos domingos e feriados”, diz o relatório da SRTE/SP. Embora a
oficina tenha afirmado que pagava salários mensais e fixos aos seus costureiros
e estes assinassem holerites, as autoridades trabalhistas apuraram que na
verdade eles recebiam por produção. Os valores por peça variavam de R$ 0,30 as
mais simples a R$ 1,80 as mais elaboradas.
Os integrantes da equipe de fiscalização concluíram também,
após extensa análise de documentação e tomada de depoimentos dos trabalhadores,
que estes foram vítimas, além de redução a condições análogas à escravidão, de
aliciamento em seu país de origem. “O aliciamento ocorreu com traços de logro,
simulação, fraude e outros artifícios para atrair e manter os trabalhadores em
atividade na oficina de costura fiscalizada, movimentar mão de obra de um lugar
para o outro na América do Sul, com o objetivo único de lucro, conseguido em
cima do engano do trabalhador e de sua utilização como mão de obra similar à de
escravos, em alguma parte do ciclo produtivo da empresa autuada”, diz o
relatório da SRTE/SP.
De acordo com os auditores-fiscais, por ficar caracterizado
o alojamento e acolhimento de trabalhadores explorados em regime de escravidão
contemporânea, “conclui-se também pela ocorrência de tráfico de pessoas para
fins de exploração de trabalho em condição análoga à de escravo”. Além disso,
pelo fato de tanto a moradia quanto a alimentação serem fornecidas diretamente
pela oficina e custeadas pelos funcionários por meio de sua produção, fica
caracterizada a prática de servidão por dívida. Além do sistema conhecido como
“terça parte”, foram encontrados recibos de salários e vales “que demonstram o
desconto indevido de taxas cobradas aos seus empregados, retenção de salários e
até casos em que a dívida ultrapassa os ganhos dos trabalhadores”.
Rescisões e autuações
Após as diligências realizadas na oficina terceirizada da
Renner, as autoridades trabalhistas emitiram guias de seguro-desemprego para os
37 trabalhadores escravizados e exigiram da empresa as anotações das carteiras
de trabalho dos costureiros em seu nome e a rescisão indireta dos respectivos
contratos de trabalho, com a quitação dos salários devidos e das multas
rescisórias.
Tais medidas, no entanto, não foram tomadas pela Renner. As
despesas, que chegaram a quase R$ 900 mil, foram oficialmente pagas pela
confecção. Entretanto, Luís Alexandre de Faria acredita que tais valores foram
desembolsados pelas empresas intermediárias. Além disso, as multas
administrativas, que serão calculadas a partir da decisão de procedência dos 30
autos de infração lavrados em nome da Renner, deverão chegar a quase R$ 2
milhões, estima Faria.
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