quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

A crise de memória e a diferença que o PT pode fazer

 Senado Federal / Flickr
Os algozes de Dilma hoje eram destaques no circo de Collor: Calheiros, líder de Collor na Câmara e Cunha, seu chefe de campanha no Rio.

Carlos Frederico Pereira da Silva Gama - http://cartamaior.com.br/

 “(Luís Bonaparte) gostaria de roubar a França inteira a fim poder entregá-la de presente à França, ou melhor, a fim de poder comprar novamente a França com dinheiro francês”
 Karl Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte

"Pode ser que a continuidade da tradição seja uma aparência. Mas então é a permanência desta aparência de permanência que cria nela a continuidade"
Walter Benjamin, Passagens

“Somente um pensamento que faz violência contra si mesmo é resistente o bastante para quebrar os mitos”
Theodor Adorno & Max Horkheimer, A Dialética do Esclarecimento


Dois meses após a reeleição, a Presidência está acossada, sob bombardeio constante de denúncias de corrupção. Sua popularidade cai vertiginosamente. O dólar dispara. A economia patina. A oposição sugere o impeachment – ou a renúncia presidencial. Os partidos no poder condenam as acusações: golpismo. O impeachment não vai adiante. O segundo mandato se arrasta, até seu melancólico desenlace.

A ficha cai e a memória nos traz de volta a 1999. O presidente, Fernando Henrique Cardoso. As denúncias, referentes à privatização das teles. A oposição, liderada pelo PT de Luiz Inácio Lula da Silva. Os partidos no poder, o PSDB de FHC, o PFL e o PMDB. Na ocasião, o Presidente da Câmara é Michel Temer. O Ministro da Justiça, Renan Calheiros. E Eduardo Cunha, integrante da base aliada.

A repetição de personagens não é mera coincidência.

Semelhanças entre 2015 e 1999 fazem cair por terra dois mitos.

O Brasil não vive a pior crise política de sua história, ao contrário do que alardeia parte da mídia. Longe disso: vive incômoda repetição.

A crise atual não é uma crise exclusiva do PT. O partido está no centro das atenções, mas os elementos da crise antecederam sua chegada ao poder. A trajetória da repetição mantém o PMDB credor político dos governos eleitos, com força e desenvoltura para desequilibrar suas gestões.

Que diferença pode fazer o PT na crise atual, em meio à governamentalidade refém da repetição?

A disseminação de uma ideologia tecnocrática foi fundamental para a continuidade na política brasileira. Esta ideologia adota uma imagem do Brasil como empreendimento ineficiente perpetuamente a perigo. O Brasil em cíclico insucesso se sustenta precariamente à beira da falência, em contraste com um progresso sempre adiado entre crises.

Crises ocupam lugar central nessa ideologia, momentos em que o progresso adiado é “dado” aos brasileiros por um grupo de experts salvadores. A naturalização do progresso (o berço esplêndido, do país do futuro, onde se plantando tudo dá) ocupou papel central na legitimação de elites políticas brasileiras, da proto-tecnocracia da República Velha ao positivismo-em-armas das muitas ditaduras.

A última encarnação desse salvacionismo tecnocrático foi o Plano Real, ungido pela ekipekonômica de FHC em meio à inflação de quatro dígitos, à ressaca do impeachment de Fernando Collor e ao escândalo dos anões do Orçamento num Congresso composto, no dizer de Lula, por 300 picaretas (frase que permanece atualíssima). Um contexto bem mais dramático que o atual.

A lógica da governamentalidade promete a superação das crises, “solucionados” quebra-cabeças herdados de gestões anteriores mas mantendo o Brasil num futuro indeferido, obra ineficiente que demanda novas levas de intervenção iluminada. Ao lado de gestores salvadores, viceja o PMDB – o fisiologismo que se liquefaz nas alianças eleitorais e que se condensa, pós-eleições, em cobranças. Ambos, competentes em blindar a governabilidade de demandas e contestações dos cidadãos.

A construção da governamentalidade é simbolicamente retrospectiva: imagens do Brasil ineficiente se sucedem qual ondas, que sedimentam camadas de um relacionamento vertical entre Estado e Sociedade, renovado a cada crise e nova chegada de experts para levar doses homeopáticas de progresso à população “atolada” no mar de lama do atraso. O Estado seria o eixo de revitalização do Brasil. Suas decisões desaguariam nas manifestações da sociedade civil.

A ideologia tecnocrática afetou durante décadas a governança da Petrobrás e outras empresas; se repete, viciosamente, lastreada na reprodução de crises como “salvação”. Outro efeito tecnocrático é a estratificação social, nítida na propaganda eleitoral de 1998. FHC (que legou a direção-geral da Agência Nacional de Petróleo a seu genro) caracterizava o Real como melhoria na vida de todos os brasileiros: para uns melhorou mais, para outros melhorou menos, mas que melhorou, melhorou.

O progresso em doses homeopáticas e assimétricas não muda a pirâmide social. Seu apelo vem da utopia liberal da harmonia de classes, possibilitada por elites iluminadas que “criam” para a população estabilidade e prosperidade despolitizadas, apoiadas por um PMDB capaz de permanecer no poder sendo, simultaneamente, âncora da governamentalidade e algoz dos governos.

A eleição de Lula em 2002 foi uma inflexão na cascata tecnocrática de crises e salvacionismo. O PT chegou ao poder mantendo com a sociedade civil uma relação horizontal, a qual intensificava a relação representativa e criava expectativas dantes inauditas. Pela primeira vez, programas sociais do Estado brasileiro se tornavam mecanismo de empoderamento político de milhões de pessoas dantes invisíveis. O combate à fome e transferência de renda não apenas melhoraram a vida desses milhões e movimentaram a economia: levaram consigo o direito de ter direitos de Hannah Arendt.

A conjunção da horizontalidade da relação com a sociedade (que marcou a criação do partido há 35 anos) com o empoderamento inédito do andar de baixo (durante o governo Lula) rompeu laços de continuidade tecnocrática e a reprodução velada da pirâmide social. Polarização política se seguiu. O PT fez uso do PMDB para atravessar tempestades políticas do primeiro governo Lula. Depois das urnas, a ressaca. O PMDB cobraria seu apoio, obtendo a vice-presidência no governo Rousseff.

A chegada do PT à Presidência representou uma inflexão no ciclo da Nova República. Quebrou seu princípio de legitimação e radicalizou uma democracia até então sumamente formal. Uma consequência contraditória do processo foi o aumento do poder de barganha do PMDB. O peso do partido dentro da aliança formada pelo PT para viabilizar a governamentalidade diz mais sobre a crise atual do que os erros do PT ou as rupturas que o partido viveu até chegar à Presidência.

A tragédia cresce de vulto à luz das contradições da ascensão política do PT. O partido se tornou, a contragosto, guardião de três inovações políticas nos últimos 30 anos.

O PT foi o primeiro a demandar eleições diretas para a Presidência da República, nos estertores da ditadura civil-militar. O movimento ganhou ímpeto sob a alcunha das Diretas-Já e foi apropriado pelo PMDB (fundido ao PP de Tancredo Neves). Eventualmente, a Emenda Dante de Oliveira foi rejeitada pelo congresso da ditadura.

Ao invés das Diretas-Já, tivemos uma eleição indireta no colégio eleitoral da ditadura, opondo o candidato governista Paulo Maluf (PDS) ao candidato da oposição consentida, Tancredo (PMDB), apoiado por uma dissidência do PDS, a Frente Liberal, liderada por José Sarney. O apoio de Sarney (que se filiou ao PMDB) foi decisivo para a vitória de Tancredo.

A ditadura findaria longe das urnas e pelas mãos de apoiadores seus de longa data. A Nova República vitoriosa reunia um conglomerado mais próximo da transição “lenta, gradual e segura” do general Geisel que da mobilização popular que impulsionou as Diretas. Morto Tancredo antes da posse, o governo Sarney deu contornos hegemônicos ao PMDB.

Essa hegemonia se manifestou num segundo desalento para o PT, a promulgação da Constituição de 1988. A luta do partido pelo fim do entulho autoritário foi atropelada pelo Plano Cruzado de Sarney. A euforia momentânea do Cruzado inaugurou as cruzadas progressistas das ekipekonômicas contra inimigos da economia brasileira (vide fiscais do Sarney). O Cruzado produziu vitória acachapante do PMDB nas eleições estaduais e confortável maioria na Assembleia Constituinte (o “Centrão” de Roberto Cardoso Alves). Embora traga inegáveis avanços democráticos frente aos instrumentos jurídicos de exceção, a Constituição-cidadã consagrou a governamentalidade da Nova República/PMDB. Ademais, garantiu para Sarney 5 anos de governo.

As primeiras eleições presidenciais pós-1988 sintomaticamente rejeitaram Sarney e reafirmaram o PMDB. Um aventureiro com discurso anti-Sarney foi eleito Presidente. Seu vice, um companheiro de partido de Sarney. Após o debacle da farsa collorida, o PMDB voltaria a ocupar a Presidência. A Nova República retornaria na “República do Pão-de-Queijo” de Itamar Franco. 

A terceira inflexão foi a ressignificação da agenda política do PT após o Real de Itamar catapultar seu ministro da economia, FHC, ao Planalto, com o PMDB a tiracolo (Calheiros foi ministro da Justiça de FHC). O Real permitiu 10 anos de reintegração entre PMDB e sua antiga dissidência, o PSDB.

Inicialmente crítico do Real como manobra eleitoral que “congelaria a miséria”, o PT foi pragmático e passou a aliar a estabilidade ao crescimento econômico. Os fundamentos do Real foram mantidos intactos desde 2003. Desde então, o Brasil cresceu mais do que na década de 1990.

Em meio ao revanchismo pós-eleitoral de manifestações de impeachment e com o PMDB a tiracolo, Dilma está em situação complexa. A data da próxima manifestação pró-impeachment não é inocente. Há 25 anos, Collor foi empossado num 15 de Março. Os algozes de Dilma eram destaques no circo collorido: Calheiros, líder de Collor na Câmara e Cunha, seu chefe de campanha no Rio.

O momento atual é trágico e decisivo. Não porque o Brasil viva uma onda conservadora. 2015 contém elementos impensáveis anos atrás (a adoção de crianças por casais homoafetivos e a PEC das domésticas, conquistas consolidadas no governo Dilma). A reação intensa e a polarização política indicam desconforto com transformações em curso, mais do que um refluxo conservador.

A tragédia do PT encontra o partido bloqueado por aliados e acossado por grupos oposicionistas acenando com “estabilidade" e “ordem”. A bandeira do combate à corrupção é hasteada por aqueles que, há pouco, enfrentavam acusações similares – contando com a cumplicidade do PMDB.

O discurso tecnocrático salvacionista abraçado por Aécio Neves não convém a Dilma e ao PT. O partido tem lidar com as contradições de sua caminhada vitoriosa. Não é possível transformar um sistema que não começou com o PT, mas que hoje o inclui, sem profunda e visceral autorreflexão.

Em 2013, após as maiores manifestações pós-Diretas, a Presidenta prometeu uma série de pactos. Um deles, a reforma política. Diante das negativas do PMDB, os pactos não duraram uma semana. O PT preferiu reformar a base aliada para as eleições de 2014. Destaque para o PMDB: recebeu mais ministérios, manteve a vice-presidência. Triste ironia: o PMDB em 2015 brande um espantalho de “reforma política” contra o governo Dilma. O PT perdeu a dianteira do processo (sobre isso o ex-ministro Tarso Genro nos alertara) sem que a população tenha sido ouvida. Tornada instrumento de governamentalidade, a reforma política foi blindada contra a participação política cidadã.

Consequências trágicas extraem sua força da dificuldade de se repensar criticamente a trajetória política. Disputar o discurso da salvação com as oposições produz inércia, mantém as contradições.

A cada inflexão tomada e pleito perdido, o PT viveu traumáticas separações – estas não impediram os rumos de mudança. Tendo em vista o apoio em massa de ex-integrantes do PT a Dilma no segundo turno de 2014, o partido não devia temer novas rupturas e levar a cabo a reflexão em toda sua extensão e severidade. Um item de primeira importância é uma reavaliação das alianças do PT.

O partido está a descobrir, em São Paulo, que é possível fazer alianças sem se render a elas. Fernando Haddad está a fazer inovadora limonada com os amargos limões legados pelos antecessores neoaliados Maluf (PP) e Gilberto Kassab (PSD). No processo de reverter a herança urbanística do malufismo tendo como apoiador seu expoente máximo, o PT aprende valiosa lição: é possível governar para além do PMDB.

Ao fazer o balanço dos seus 13 primeiros anos de governo, o PT possui diferencial decisivo frente ao salvacionismo. Uma grande transformação tirou milhões de brasileiros das portas dos fundos da democracia formal e os tornou protagonistas de mudanças em suas próprias vidas. O engajamento político dos responsáveis diretos pela reeleição de Dilma é capital político inestimável frente à reunião do fisiologismo com o elitismo, pretendendo desacelerar as transformações em curso.

O PT aprofundou a qualidade da democracia no Brasil. Pela via democrática, pode se fortalecer na crise. Quem recebeu 54 milhões de votos, como Dilma, tem enorme responsabilidade sobre os ombros e também gigantesca legitimidade para enfrentar grupos de interesse, mídia e “mercado'”.

O combate sem tréguas à corrupção é uma força de que Dilma dispõe, respaldada pelas urnas. Que não se deixe intimidar por fantasmas. O reconhecimento da Presidenta de que há graves problemas pressupõe humildade. O passo seguinte é fazer valer sua fala: “A impunidade leva água para o moinho da corrupção”. É preciso responsabilizar os envolvidos em ilegalidades inequivocamente, nos termos da lei, frustrando anseios salvacionistas e caça às bruxas.

Vitorioso nas urnas, o programa de Dilma (incluindo a reforma política) tem que reconquistar as ruas. Não para guiar cidadãos responsáveis diretos pela reeleição, mas para revigorar a representação democrática travada pela governamentalidade. Após contraditórias mudanças e afastamentos, PT e ruas precisam se reencontrar. O governo Dilma pode marcar esse reencontro dos espaços políticos nos quais o PMDB foi contestado nos últimos 30 anos. Dilma conquistou as urnas. Ao invés de disputar salvacionismo e estabilidade com a oposição, hora de ouvir as ruas.

Das ruas para as antessalas do poder, é possível evitar o cenário desastroso. Rejeitar a interlocução com Cunha e manter o PMDB como âncora do governo é postura fadada ao fracasso. Intensifica elementos da crise e dá fôlego extra a movimentações pelo impeachment eivadas de salvacionismo.

A Presidenta Dilma tem condições de transformar o quadro de crise em oportunidade para aprofundar a qualidade da democracia no Brasil. Que as alianças não envenenem esse potencial.


Créditos da foto: Senado Federal / Flickr

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