Aqueles que são tratados como os
párias da educação estão se organizando contra o ajuste que salva o capital e
contra os cortes na educação.
Mauro Iasi - Blog da Boitempo / http://cartamaior.com.br/
Os profissionais do ensino púbico
federal devem deflagrar uma greve a partir de amanhã, dia 28 de maio. Ao lado
da intensa luta dos educadores nos municípios e estados que se alastra diante
da intransigência das autoridades, a greve do ensino federal completa o cenário
desta que, segunda a presidente, deveria ser a “Pátria Educadora”.
Essa “Pátria Educadora”, como
outras bravatas eleitorais (de que o peso da crise não seria jogado sobre os
ombros dos trabalhadores, de que o ajuste não implicará em perda de direitos,
etc.), se dissolve agora em pura hipocrisia. A urgência e necessidade do ajuste
imposto para salvar o capital de sua própria crise, consome na fogueira da
insanidade o corpo febril do doente para salvar o vírus. Na sanha saneadora
revelam-se as verdadeiras intenções de classe que atingem diretamente aqueles
transformados em “párias educadores”. No moderno sistema de castas, os chátrias
(governantes) contemporâneos condenam aqueles que vivem de seu trabalho ao
abismo social, alguns mais que intocáveis (dalitss – abaixo dos cães), são
invisíveis, só podem sair à noite e se tentam aparecer são encarcerados até
morrer de forme (entre nós conhecidos como “terceirizados”).
No que tange ao ensino público
federal, no entanto, os efeitos do ajuste fiscal, ainda que suficientes para
justificar a reação grevista da categoria, não explicam a dimensão do problema
e, talvez, escondam o essencial.
No ano de 2011 o ANDES-SN,
percorreu o país alertando sobre o risco de desmonte que sofria a carreira
docente e os fundamentos da proposta do governo que implicava em uma concepção
de universidade que fere mortalmente a autonomia universitária, o caráter
público e gratuito do ensino público federal e a qualidade do ensino. Durante
mais de um ano o governo e, principalmente, o MEC se fizeram de surdos, num
espetáculo de arrogância e desconsideração.
O resultado foi, em 2012, uma
grande greve nacional exigindo que se discutisse a carreira docente, a questão
salarial e as condições de trabalho. O governo e o então Ministro da Educação,
o senhor Aloísio Mercadante (talvez o mais incompetente dos últimos que por ali
passaram), apenas intensificaram a omissão, transformando o problema do Ensino
Público Federal num mero problema orçamentário, não à toa a negociação foi deslocada
para o Ministério do Planejamento e para as garras gélidas e burocráticas da
czarina do orçamento, a senhora Mirian Bechior.
Com o requinte de um desfecho no
qual o governo assina um acordo com uma entidade sindical fantasma (que dizia
representar apenas cinco das 53 IFES) e impõe uma carreira que desestrutura e
precariza o trabalho docente, parcela em três anos um suposto reajuste que
acabou (como prevíamos) ficando abaixo da inflação e nem sequer acena para a
(já naquela ocasião) gravíssima situação das condições de trabalho e
infra-estrutura nas universidades, precarizadas por uma expansão sem os
recursos necessários.
A justificativa do governo,
repetida como um mantra à época foi que diante da possibilidade da crise o
governo “priorizava a manutenção dos empregos no setor privado”. Isso significa
que o fundo público seria desviado na forma de generosas contribuições à
iniciativa privada na forma de subsídios e isenções fiscais diante da vaga
promessa de manter o nível de emprego. Para aqueles que acreditam que o governo
não cumpre suas promessas, vai aí o desmentido cabal: a renúncia fiscal entre
2012 e 2014 cresceu 409%. O gasto previsto na educação entre 2012 e 2014 variou
de 86,9 bilhões para 94,2 bilhões, ou seja, algo próximo de 7,5%.
O quadro se agrava pelo fato de
que desde abril de 2014 o ANDES-SN tenta negociar com o MEC e encontra a mesma
disposição. O secretário da SESU, secretaria de ensino superior do MEC, Paulo
Speller, nesta suposta negociação em 23 de abril de 2014, chegou a assinar um
termo de compromisso no qual assumia que os pontos apresentados por nosso
sindicato sobre a carreira poderiam ser a base para começar uma negociação.
Evidente que isso, de acordo com o MECb (movimento de empurrar com a barriga),
implicaria numa longa discussão conceitual – o que na verdade quer dizer
basicamente “podemos conversar qualquer coisa desde que não implique em
impactos orçamentários!”.
Quando o ANDES-SN se encontra
agora dia 22 de maio (um ano e um mês depois), recebe a seguinte posição do
senhor Luiz Claudio Costa, Secretário Executivo e Ministro da Educação em
exercício (o filósofo Renato Janine Ribeiro estava no exterior): que não seria
possível começar a negociação pelos pontos acordados há mais de um ano atrás,
pois o Secretário não podia, apesar de representar o Ministério na reunião,
assinar aquilo em nome do Ministério (!!!???); que a área da educação seria
afetada com um corte de R$ 9 bilhões, mas que o governo pretende “consolidar a
expansão das universidades e institutos federais” mesmo assim; e, que a
possibilidade de greve gerou um “desconforto no MEC” porque estaríamos diante
de “um novo governo que acaba de assumir e, portanto, não se poderia considerar
que houve falta de negociação”.
Vejam a que ponto chega a cara de
pau destes senhores. Depois de mais de um ano sem negociação, suspendem os
únicos pontos acordados e afirmam, surpreendentemente, que se trata de um novo
governo e que precisam de mais tempo para estudar a pauta apresentada. O
“desconforto” do MEC não deveria se dar pelo fato que a categoria exerce seu
direito constitucional de se defender com todas as armas que dispõe, inclusive
a greve, mas pelo fato de que há doze anos e vários ministros uma crise sem
precedentes se abate sobre aquilo que eles deveriam administrar. Não por uma ou
outra conjuntura desfavorável, mas como resultado da linha que foi imposta de
forma autoritária e diante dos claros clamores da categoria que denunciava que
o resultado seria exatamente o que hoje vemos.
Já em 2012 o então burocrata de
plantão, o Ministro Mercadante, se dizia surpreendido pela greve, pois tudo ia
bem nas universidades e institutos federais e que vivíamos uma “crise de
crescimento”, com o tempo tudo daria certo. É neste sentido que temos que
entender a afirmação aparentemente paradoxal do ministro em exercício, segundo
a qual serão cortados 9 bilhões, mas que ele espera “consolidar” a expansão. E
de fato assim será, pois a consolidação da expansão é a consagração do
crescimento com precarização de condições de trabalho, de salários e da carreia
docente.
O que está por trás deste circo é
que o governo segue acreditando em sua formula mágica: apoiar o capital privado
(afinal o senhor Levy Mãos de Tesoura não disse que a função do Estado é criar
as condições para que a economia privada funcione?), para crescer a economia,
aumentando desta forma a arrecadação e aí, depois de desfalcar o fundo público
pagando o preço do parasitismo financeiro, o que sobrar, pouco a pouco,
destinar para as outras áreas secundárias (educação, saúde, saneamento, etc.).
Desta maneira o que o governo espera é que seu ajuste funcione, a economia
volte a crescer e tudo vai dar certo.
O que é preciso entender é que o
retrato de hoje na educação brasileira não é um problema de percurso no
interior de um plano virtuoso. É o resultado natural e esperado de tal plano
supostamente virtuoso. No caso específico do ensino público federal a meta do
governo era um setor expandido que gastasse a mesma coisa ou proporcionalmente
menos para assim ser considerado eficiente. Para tanto as instituições federais
de ensino deveriam ser criativas na captação de recursos, vendendo serviços,
fazendo parcerias com iniciativa privada, cortando gastos, isto é, aplicando as
verdades consagradas de uma gestão empresarial à esfera pública.
Uma das soluções geniais foi que,
quanto ao pessoal, deve-se distinguir atividades fins de atividades meios e
estas últimas podem e devem ser terceirizadas – afinal, para que serve mesmo
numa instituição de ensino atividades como limpeza, manutenção, segurança e
outras destinadas às castas inferiores dos intocáveis. Eis que um tempo depois
as universidades não podem começar suas aulas e outras atividades fins porque
não funcionam as atividades meio. Porque os corredores estão cheios de lixo, os
prédios caindo (e não é mera figura de linguagem), com casos de assalto,
estupro e outros no interior dos campi. Os trabalhadores terceirizados e
precarizados sem salários, em alguns casos há mais de cinco meses, sendo
trocados de uma para outra unidade, de uma para outra empresa, sem vale
alimentação e transporte, sem direitos.
O número de alunos mais que
dobrou, mas o número de professores, entre entradas e saídas, permanece na
melhor das hipóteses o mesmo. Salas de aula são transferidas para containers,
numa justiça poética à intensa mercantilização do ensino, e agora ameaçadas de
ser despejadas destes por falta de pagamento às empresas que oferecem tal
precarização. Alunos sem assistência estudantil, alojamentos, restaurantes,
bibliotecas, com suas bolsas já insuficientes sendo suspensas.
Mas não devemos ser tão duros em
nossa análise. Afinal, este é um “governo que está apenas começando”… ou serão
mais de doze anos? Mas, são outras pessoas, sai Paulo entra Jesualdo na SESU
(Paulo deve ter sido mandado de volta para a escola de burocratas porque por um
momento leu um documento e concordou com seus termos ao invés de nos enrolar
como foi treinado para fazer). Sai o sociólogo Haddad que vendeu um plano
incrível no qual tudo daria certo se nada desse errado e não ficou para ver o
estrago, entra o economista que não entende muito de economia e um pouco menos
de educação, que passou pela Ciência e Tecnologia (coisa que ele também não
entende), depois Cid o Breve que destruiu a educação estadual no Ceará, e agora
o filósofo hobbesiano emprenhado em olhar lá do Estado, que se localiza acima
da sociedade, a guerra de todos contra todos aqui em baixo.
O problema é que durante todo
este tempo, aqui em baixo, filósofos, economistas, sociólogos, engenheiros,
cientistas, e muitas outras pessoas das mais diferentes áreas da produção do
conhecimento, da ciência, da tecnologia, do ensino, da pesquisa, que escolheram
o ensino público, têm de sobreviver em uma carreira em que coexistem três
situações previdenciárias (você pode se aposentar com todo seu salário, com uma
boa parte dele ou só com o piso da previdência); professores doutores tendo que
esperar três anos de estágio probatório para serem reconhecidos como…
professores doutores; professores dos colégios de aplicação tendo que brigar
para provar que aquilo também é ensino, pesquisa e extensão e que têm também o
direito de se qualificar; gente andando de um lado para o outro com seus livros
e o séquito de alunos atrás porque vagam no deserto sem salas e sem manjedoura
onde parir seus messias, com bibliotecas que se assemelham mais a museu de
livros raros que local com exemplares em número suficiente para consulta e
estudo.
Agora já se fala em estender o
sistema de OS para contratar professores nas Universidades – sistema que tem
sido tão útil na saúde, não é verdade?
E os senhores do ministério estão
um pouco “desconfortáveis” com a possibilidade de uma greve!? Faz sentido, pois
a greve torna visível a crise que eles querem jogar para debaixo do tapete.
Pois que fiquem desconfortáveis, quanto mais melhor, porque a chapa vai
esquentar embaixo deles.
Em defesa do ensino público,
gratuito e de qualidade, em defesa da carreira docente dos profissionais do
ensino público federal, em defesa das condições dignas de trabalho e estudo, em
defesa da pauta dos técnicos administrativos e dos estudantes, em defesa dos
direitos dos trabalhadores e contra a terceirização, contra o ajuste para
salvar o capital e contra os cortes na educação. Contra este carma não dá para
esperar a reencarnação. É greve.
***
Mauro Iasi é professor adjunto da
Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e
Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É
autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo,
2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações
que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo,
2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo
mensalmente, às quartas.
Créditos da foto: reprodução
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