É improvável que o desafio de reinventar o partido
tenha êxito se ficar restrito a sua própria estrutura, hoje uma réplica do
sistema político carcomido do país
por: Saul Leblon // www.cartamaior.com.br
O PT não pode mais assistir ao seu próprio funeral
acuado nas amarras da prostração e da perplexidade.
Forças que querem destruí-lo tem tido sucesso nesse
intento, graças a um estratagema ardiloso.
Em nome dos erros do partido – que não são poucos—
mira-se a desqualificação de suas virtudes e bandeiras
Uma resume todas as demais.
O PT ressuscitou a agenda da justiça social como
motor e finalidade do desenvolvimento econômico, em contraposição ao
exclusivismo mercadista atribuído às metas de inflação (leia-se juros reais
elevados); ao superávit fiscal (leia-se arrocho e estado mínimo) e ao câmbio
livre (leia-se, livre mobilidade dos capitais).
O partido não trocou uma coisa pela outra: trouxe o
antagonismo capitalista para dentro do aparelho de Estado e tentou mediá-lo nos
últimos 12 anos.
É esse o ciclo que agora se despede em ruidosa
transição.
A dificuldade de se renovar na travessia –e assim
reagir ao massacre que o desnorteia-- reside menos na incapacidade de enxergar
tropeços e equívocos pregressos, do que no fato de que o PT se tornou uma
réplica do sistema político que precisa combater para ressuscitar.
O sistema político brasileiro exige muito pouco dos
quadros partidários em termos de identidade programática e coerência de
princípios.
Mas premia a densidade dos vínculos com interesses
tão ecumênicos quanto os que o poder do dinheiro consegue estabelecer na
sociedade.
A naturalidade com o que o senador Delcídio
Amaral transitou nas últimas duas
décadas da esfera do PMDB para a filiação ao PSDB e deste para o PT, sem mudar
de referências políticas, nem abdicar do seu repertório ecumênico de apoios, é
exemplar desse paradoxo.
Sua abrupta derrocada, após flagrante em gravações
comprometedoras, reitera a distorção que está despedaçando a democracia e
desmoralizando seu espectro partidário –mas sobretudo o PT, pelas razões
sabidas.
Delcídio foi diretor de gás e energia da Petrobrás
no governo Fernando Henrique, indicado pelo PMDB; filiou-se em seguida ao PSDB
onde permaneceu até 2001; por conveniências regionais saltou então para o PT,
que lhe facultou a vaga para eleger-se senador da República pelo Mato Grosso,
em 2002.
Nesse vaivém de década e meia, manteve-se fiel a um
mesmo círculo de interesses integrado entre outros pelos atuais delatores da
Lava Jato, Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró.
Não teria sido muito diferente se ainda estivesse
no PSDB, ou no PMDB.
É justamente essa indiferenciação que está matando
a credibilidade na política como ferramenta de construção do país e do seu
desenvolvimento.
Ela impede que a sociedade disponha de alternativas
claras e confiáveis para tirar a economa da espiral descendente em que se
encontra, empurrada pelo esgotamento de um ciclo de expansão.
O PT, pelas razões que só o juiz Moro pode
explicar, foi o elo da corrente escolhido para arrebentar em meio a à geleia
geral.
E está sendo arrebentado.
O episódio Delcídio aperta o cerco em torno de uma
sigla que encontra dificuldade crescente para atuar em três frentes distintas
mantendo algum grau convincente de coerência: 1) resistir à caçada conservadora
que age por tentativa e erro na determinação de desossar o partido até alcançar
a cabeça de sua principal liderança; 2) defender um governo embarcado numa
trajetória recessiva que estreita a margem de manobra social do partido e
agrava a crise política; 3) reinventar seu espaço e sua mensagem na disputa
pelo poder nas eleições municipais de 2016 e nas presidenciais, em 2018.
A determinação de manter um rigoroso regime de
autocrítica caso a caso diante do cerco policial-midiático promovido contra o
partido tampouco tem se mostrado eficaz.
A solidariedade negada pela direção do PT ao
senador Delcídio, por exemplo, gerou protestos de um pedaço da bancada, que
acusou o comando petista de levar água ao moinho que tritura os ossos da sigla.
A luta pela
sobrevivência parece ter atingido aquele grau em que medidas incrementais de
resgate da coerência e da identidade já não fazem mais efeito diante do tempo
que encurta e do cerco que não cede.
A verdade é que todo o sistema partidário
brasileiro funciona hoje como um biombo
do poder econômico que através do financiamento de campanha encabrestou
direções, abastardou programas, manietou governos e semeou um arquipélago de
fidelidades e acordos espúrios, unilaterais às siglas, que despedaçam sem
coesão interna.
A desenvolta atuação de bastidores do banqueiro
André Esteves, dono do Pactual, com
sugestiva fortuna de US$ 3 bilhões aos 43 anos de idade, ilustra a
matéria-prima de que é feita essa retaguarda, onde raízes podres e sadias se
entrelaçam.
O dono do Pactual
pagou a viagem de núpcias do amigo Aécio Neves. E prometeu ser tão
generoso quanto com a família do delator
Nestor Cerveró –em troca da omissão ao nome do banco na delação premiada
do ex-dirigente da Petrobrás.
Da reciprocidade combinada com Aécio não há
relatos, tampouco investigações, embora seja presumível.
Estamos diante de uma captura.
Uma captura do sistema político que reflete a
determinação mais geral e conhecida de sequestrar todas as instâncias e
recursos do aparelho de Estado para servir a interesses que enxergam em figuras
como a de André Esteves e assemelhados não apenas a validação do mito do
‘empresário matador’.
Mas o altar da proficiência capitalista, diante do
qual as instituições e a sociedade devem inquestionável subordinação.
É essa a pegajosa narrativa martelada pelo
jornalismo isento ao incensar figuras carimbadas como Eike, Agnelli (ex-Vale),
Esteves, Staub e outros impolutos ícones, não raro flagrados em operações de
sonegação e lavagem, como mostra a máfia do Carf.
A inexistência de uma verdadeira isonomia no
sistema de comunicação para enfrentar a centralidade desse debate dificulta
sobremaneira a tarefa do PT de contextualizar seus erros e repactuar os
vínculos com a sociedade.
Transformar essa dificuldade em necrológio é o
propósito dos interesses que não cessam de perfurar e purgar o metabolismo do
partido para carimbar na sua pele –e na de suas maiores lideranças-- a marca de principal responsável pelo
derrocada da economia e da política.
O pesadelo se aproxima perigosamente da fronteira
do real.
É cada vez mais palpável o sonho da direita
brasileira de matar historicamente o impulso nascido desde as grandes greves
operárias do ABC paulista, nos anos 70/80, e que simbolizou a bandeira da luta
contra a desigualdade e a injustiça social até os nossos dias.
Cerca de 60 milhões de brasileiros tiveram acesso
ao mercado interno e à cidadania graças a esse estirão.
Ele esburacou fortemente a receita secular que
permitia às elites revezarem-se no poder, mantendo o povo espremido no
acostamento, à espera de caronas que nunca vem.
Recapear esse percurso agora pavimentando uma ampla
avenida de regressividade social e política é o motor que move o garrote no
pescoço do PT.
Supor que esse enfretamento poderia ter sido
evitado por quem ousasse alterar a lógica do capitalismo brasileiro, é acreditar em fábulas.
Uma das mais
deletérias é essa que hoje se
vende à sociedade na forma de um manual de boas maneiras a seguir para
se obter um desenvolvimento elegante,
transparente e equilibrado.
Leia a bula: primeiro, você investe em
infraestrutura, então fomenta as exportações, depois, com receitas e contas
equilibradas, calibra harmoniosamente a demanda com a oferta prevalecente.
Enquanto isso, a senzala hiberna serena, resignada
como num postal de lago suíço.
Quanto tempo?
Os séculos que forem necessários.
Até que os avanços incrementais permitidos pelo
mercado produzam a boa sociedade, ancorada na mobilidade das meritocracias
perfeitas, tutelada pelos sábios dos mercados não menos virtuosos.
As coisas não acontecem exatamente assim no
capitalismo.
No caso brasileiro, a pasta de dente escapou do
tubo.
A emergência dos excluídos escancarou a
incapacidade do sistema econômico e político para realizar a prometida ascensão
disciplinada dos desfavorecidos.
Mãos açodadas tentam devolve-la agora ao frasco, da
forma que isso costuma ser feito nas república latino-americanas e com o fair
play característico.
Inclua-se nessa determinação de ‘pôr ordem na casa’
jogar no lixo da história tudo e todos que contribuíram para o vazamento
precoce e imprevidente.
É aí que entra o ingrediente crucial dedicado a
desqualificar, sangra, picar e salgar em praça pública a ferramenta política
que favoreceu a heresia: o PT.
Esse é o ponto em que estamos e nele as perguntas
reverberam uma urgência de vida ou morte.
Um partido de trabalhadores consegue se despir dos
vícios e desvios da política conservadora depois de passar pela experiência do
poder no capitalismo?
Consegue sobreviver sem sucumbir aos limites e
compromissos inerentes à correlação de forças desfavorável à qual se ajustou?
Pode recuperar o rumo sem o qual descansará sob a
lápide dos sonhos perdidos?
Por mais que se martele o oposto, a tragédia do PT
consiste justamente no fato de não se tratar aqui de um ‘bando’. Mas de um
futuro em disputa.
Fosse o PT apenas aquilo que outras siglas se
comprazem em personificar não haveria a tragédia.
Não se trata de dissimular decadência em retórica
de heroísmo.
Mas de reafirmar que o PT tem uma –e só uma-- finalidade na história
brasileira.
Servir de instrumento dos interesses sociais
amplos, de cuja vértebra nasceu o impulso
que agora fraqueja.
Quando se mostrar incapaz de renovar esse pacto com
a sua origem perderá o seu sentido histórico.
A busca de um chão firme para esse reatamento hoje
é a questão crucial sobre a qual dirigentes, intelectuais e núcleos de base
devem se debruçar febrilmente.
Com uma ideia
na cabeça uma certeza na ação: ao PT só resta temer o próprio medo de ir
além dos limites que o sufocam.
Mais que isso.
É improvável que essa busca tenha êxito se ficar
restrita aos limites de uma organização que, como se disse antes, tornou-se uma
réplica do sistema político contra o qual terá que se reinventar.
Significa que a repactuação do PT com suas bases
terá que nascer de um novo programa para um novo ciclo de lutas, que fatalmente
exigirá uma nova estrutura: o partido será uma estaca em um conjunto formado
por uma frente ampla de forças progressistas e democráticas da sociedade
brasileira.
Nenhuma prioridade é mais importante que esse
reatamento feito de depuração, renovação e abertura desassombrada para fora e
para dentro.
Na virada recente que culminou com a eleição de uma
presidência de esquerda, o Partido Trabalhista inglês oxigenou sua estrutura
liberando a inscrição de eleitores, militantes e não militantes, mediante
pequena taxa.
A campanha de filiação eleitoral se enraizou nas
periferias e trouxe a juventude pobre maciçamente de volta à política: o
marxista Jeremy Corbyn foi eleito.
Não é uma tarefa para aqueles que hoje não se
reconhecem devedores desse aggiornamento.
Quem não estiver disposto não conta mais como
protagonista do partido.
Portas escancaradas servem para quem quiser entrar
e quem quiser sair.
Haverá
turbulência. Mas se for dada uma chance ao ar fresco, ele encontrará o
caminho para transformar o medo em esperança e a prostração em luta pela democracia
social brasileira.
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