Eleições no país vizinho expõem
limites da esquerda sul-americana. Também revelam: ao contrário do que ocorre
no Brasil, conservadores podem estar em busca de “reciclagem”
Por José Maurício Domingues // http://outraspalavras.net/
A Argentina é um país de enorme
importância política e econômica na América Latina. Para o Brasil em
particular. A recente vitória de Maurício Macri – um candidato não peronista
que chega à presidência da República depois de longo intervalo –, não poderá
deixar de ter efeito sobre o subcontinente e o Brasil, em particular. Mas há
algo mais que uma vitória circunstancial na eleição de Macri.
Não se trata nem de desconhecer a
articulação de uma direita regional – com apoio dos Estados Unidos –, nem de
por a conta da derrota peronista em uma conspiração ampla para tirar a
centro-esquerda do poder na América Latina. O que importa é algo mais. Se se
trata de um esgotamento do ciclo de governos progressistas na América Latina –
o que não é absoluto, pois nem em todos os países ocorrerá, nem derrotas neste
momento implicam que vitórias não podem ser conseguidas mais uma vez a médio
prazo –, o programa e formas de fazer política que se desdobraram recentemente
pela esquerda entre nós têm de ser repensadas. Embora tenham sido, em geral,
pouco transformadoras do ponto de vista econômico; e mesmo que não tenham
implicado a consolidação efetiva de direitos de cunho universal, elas foram bem
sucedidas em rearticular o tecido social, combater a pobreza e ampliar o
consumo, incorporar setores secularmente excluídos e por vezes garantir certos
avanços, de modo geral consolidando a democracia — não obstante desvios aqui e
ali. Isso tudo em uma situação internacional adversa e marcada pelos avanços do
neoliberalismo, ainda que com uns EUA desatentos. Mas problemas recorrentes
reemergem e novas questões vão se pondo, em parte devido a essas realizações.
Antes de embarcar nessa análise,
é necessário pensar a derrota do peronismo e focalizar o projeto que a direita
apresentou na Argentina. Para muitos significaria mero retorno ao
neoliberalismo da década de 1990. Nada mais falso. É verdade que
(re)privatizações e uma ofensiva sobre certos direitos trabalhistas e sociais
podem ter lugar, o mesmo ocorrendo com um realinhamento global, favorável aos
Estados Unidos. A política de Macri incluirá uma desvalorização do peso e uma
renegociação do restante da dívida argentina, em mãos dos fundos “abutre”. É
verdade também que os homens da ditadura sanguinária terão um respiro, depois
de um período em que foram expostos e condenados. O cerne do projeto parece ser
outro, porém.
Foram doze anos de kirchnerismo,
de Néstor Kirchner a Cristina Fernandez de Kirchner, nos quais a Argentina viu
uma forte recuperação econômica e a renovação de seu tecido social e cultural.
As realizações são inegáveis. Mas isso não sustentou um avanço para um período
a mais, que de todo modo não se verificaria, pois Daniel Scioli, candidato do
governo e da Frente pela Vitória, pouco tinha que ver com o projeto que seguia
em curso, sem falar do fato de que a situação econômica do país aos poucos se
complicava. Se o candidato peronista tinha lá suas dificuldades, inclusive na
província de Buenos Aires, da qual foi governador, fatores mais profundos
parecem ter estado em questão em sua derrota. Uma excessiva polarização
“populista” – em que um Laclau problemático e ademais mal lido parece cintilar
–, uma falta de sensibilidade para com as novas gerações, a limitação do
projeto nacional, que se perdeu discursivamente na valorização de uma argentina
quase “criolla” que a ninguém convenceu, e um personalismo caricatural e
ruidoso são os elementos que podem se destacar na constelação de problemas que
engendraram o desfecho eleitoral negativo.
O peronismo perdeu – ou ganhou
por muito pouco – nas zonas mais dinâmicas do país: a cidade de Buenos Aires e
a província de Buenos Aires, bem como Córdoba. Se esta última tem perfil
marcadamente conservador, embora não na proporção de uma derrota eleitoral da
ordem de 70%, não é este o caso das primeiras, ainda que o caráter de classe
média de Buenos Aires dê sempre alento aos setores de centro-direita. Desenhando
um círculo em torno à cidade, o conurbano bonarense – onde se acha a maior
parte da população do país – foi também decisivo para a derrota,
concentrando-se aí a classe trabalhadora industrial, uma enorme quantidade de
pobres e uma juventude que votou, após anos de bonança e certa ascensão social,
na oposição. Macri terá de governar também para este contingente, que em
princípio lhe era estranho e oposto, ainda que se deva assinalar seu gesto em
direção à memória de Perón.
Teve votos em especial na juventude,
que não viu nas propostas de Scioli uma resposta a seus anseios de modernidade
e novos avanços. O peronismo fará seu balanço e não se sabe ainda por onde
caminhará, embora seja improvável que a liderança de Cristina Kirchner
sobreviva com força. Não se deve subestimar, de todo modo, a força desse
movimento que há décadas dirige o país ou bloqueia os governos que lhe são
hostis. É certo que reagirá e poderá criar embaraços para o presidente eleito.
O problema é que Macri tem alguns
trunfos para consolidar seu poder. Precisa domar a inflação, em meio a uma
desvalorização do peso que complica a vida dos trabalhadores e inclusive da
classe média. Contudo, não se verá com certeza um ajuste na magnitude e dureza
que o governo de Dilma Rousseff está impondo ao Brasil. Para isso certamente
terá o apoio do governo dos Estados Unidos, que forçarão uma negociação
favorável com os fundos “abutre” e disponibilizarão farto crédito ao governo e
às empresas, nacionais e internacionais, que queiram investir na Argentina. Um
capitalismo mais dinâmico e menos nacional substituirá – é provável – o
“modelo” centrado na ideia de trabalho e produção nacional, que o kirchnerismo
tentou implantar. Obviamente, a megamineração e a soja seguirão avançando e
dificilmente se reverterá a reprimarização da economia do país, que se
aprofundou de todo modo no período peronista recente. Se os subsídios que o
kirchnerismo outorgou a largas camadas da população devem ser drasticamente
reduzidos, as políticas sociais de transferência de renda – mais universais, ou
“gerais”, e substanciosas na Argentina que nos outros países latino-americanos
– serão muito mais preservadas. O apoio à produção em ciência e tecnologia –
inclusive com a manutenção do ministro do governo anterior – se manterá. Ou
seja, trata-se de um novo neoliberalismo, distinto do vigente no período de
Carlos Menem, inclusive no que tange à exploração abastardada de símbolos
peronistas que aquele presidente promoveu. Um ar de classe média cosmopolita e
de riqueza a ser ostentada sem tantos elementos kitsch e mais naturalmente
tomará a dianteira da política cultural.
Esse é um projeto que pode ir
muito além das fronteiras argentinas. Em certa medida, o Chile da Concertación
já o realiza e a Colômbia, sob Juan Manoel Santos, busca-o em parte por meio da
negociação ousada que promove com a guerrilha de esquerda, para destravar
investimentos e melhorar a imagem do país, consolidando um domínio interno mais
suave, social e territorialmente coordenado.
Mas essas situações não têm o peso
que a Argentina pode emprestar ao modelo, sobretudo se for bem-sucedido, com os
recursos que os Estados Unidos disponibilizarão a Macri. Essa deve ser a nova
cara da direita latino-americana na próxima década. Em que medida terá êxito
pelo subcontinente como um todo é questão em aberto. Em particular a situação
mexicana contradiz essa possibilidade, embora outros fatores expliquem a
selvageria e os limites do neoliberalismo nesse país – tão próximo aos Estados
Unidos, com suas maquiladoras, enorme corrupção e influência do narcotráfico.
Enquanto isso, a esquerda
latino-americana vê seus avanços da última década e meia estancados. O caso da
Venezuela é exemplar, pois a derrota hoje se mostra inevitável, ao passo que no
Brasil a situação evidencia não apenas as dificuldades do giro à esquerda
latino-americano, senão a superposição de fins de ciclo internamente relevantes
(ver J. M. Domingues, “A esquerda no nevoeiro”, no Le Monde Diplomatique,
edição brasileira). No subcontinente, uma série de fatores parecem
compartilhados, e todos atingiram duramente a esquerda: uma polarização que
tende a desconhecer a pluralidade social desses países – essencial na derrota
do peronismo nesta quadra e responsável também pelas dificuldades da esquerda
no Brasil; um personalismo excessivo e crescente das figuras de liderança
popular que, como Chávez, os Kirchner e Lula, não deixam sucessores a altura,
após sua passagem pela presidência; uma confiança exagerada nas commodities,
cuja demanda e preço por fim declinaram; uma falta de horizonte de longo prazo
e de programas e estratégias consistentes no presente momento e de fato já nos
últimos anos.
O PT encontra-se em frangalhos. O
chavismo gira perdido. Pior ainda, o kirchnerismo não deixará qualquer legado
organizativo à centro-esquerda argentina: sequer os sindicatos operários estão
com a esquerda; a transversalidade política que Néstor Kirchner inicialmente
buscou com os setores progressistas de outras forças políticas foi abandonada;
tampouco a aliança que o kirchnerismo teceu com os intelectuais – tão
importantes nesse país – e movimentos sociais se manteve.
É verdade que a Bolívia – com um
projeto popular consistente – segue avançando, mas não será fácil manter o
rumo, ademais de compartilhar com outras experiências um jacobinismo
personalista e com tendências autoritárias que o Equador leva ao extremo.
Uruguai e Chile continuam em sua já conhecida velocidade de cruzeiro, mas com
desenhos de organização de sua esquerda, plural e antipersonalista,
internamente unitária e democrática, que o restante da esquerda continental não
faria mal em observar.
O fato é que, ao que tudo indica,
o período que se abre será mais complexo que o anterior. A direita, aos poucos,
constitui um projeto mais inteligente – que no Brasil dificilmente será
capitaneado por um PSBD que nada consegue oferecer ao país. Assim poder-se-ia
eventualmente se consolidar um neoliberalismo mais atento às questões sociais,
compondo um social-liberalismo mais restrito que aquele que a esquerda
recentemente pôs em prática – o qual, a despeito de suas limitações, trouxe a
questão social para o topo da agenda política. Poderia ser capaz de novamente
atrair o centro do espectro político, inclusive setores de uma esquerda que não
consegue definir seu próprio projeto, o que constituiria um enorme problema
para novos avanços, a exemplo do que ocorreu já na eleição brasileira de 2014.
Esta é situação a ser evitada, sob o risco de produzir-se, do contrário, o
isolamento da esquerda.
Parece claro que neste momento a
esquerda não tem força, em nenhum país latino-americano, para avançar sem o
centro, sem as classes médias e novos setores populares jovens, que não
necessariamente têm com ela compromisso, ainda que tenham desfrutado
imensamente das políticas que o giro à esquerda implantou. É preciso articular
portanto um projeto de longo prazo que leve isso em conta, ainda que não se
detenha aí de modo algum. Uma disputa mais intensa, agora sim pela hegemonia,
estará em questão. Gramsci não foi autor especialmente central nos últimos anos
na América Latina. Cumpre agora voltar a lê-lo a sério, pois a disputa será
provavelmente mais fina daqui por diante.
À esquerda importa reconhecer as
dificuldades e derrotas do momento atual, sem desconhecer por outro lado que
contribuiu decisivamente para que o campo da disputa se deslocasse. Não era aí
que a direita estava acostumada a disputar politicamente. Se o faz, é porque a
isso foi forçada. Defender o que foi realizado, aprofundar a democracia,
construir programa, estratégia e projeto que a permitam avançar sobre essas
bases é a tarefa que aguarda a esquerda, inclusive relançando, de forma
aprofundada, a integração latino-americana. Não perceber a força e risco que
apresenta neste momento a direita seria suicídio; mas desconsiderar os avanços
que a própria esquerda realizou apenas a desarmaria.
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