O problema da dívida não é a sua
existência, mas a quem ela serve. Enquanto for remunerada a taxas de juros
despropositadas ela serve à elite rentista
José Luis Fevereiro* // www.cartamaior.com.br
Sobre a origem
A dívida pública brasileira é
estimada em torno de R$3 trilhões (conforme a metodologia usada pode ser mais
ou menos). Isso corresponde a cerca de 65% do PIB, no caso da dívida bruta, e a
cerca de 49% do PIB na dívida líquida (descontadas as reservas). Em termos
comparativos com outros países, não é uma dívida grande. O Japão deve mais de
230% do PIB, os EUA quase 100%. No entanto, desde 1994 até hoje, ela cresceu de
cerca de R$50 bilhões para os valores atuais. No início dos anos 90, com o
plano Collor, a dívida brasileira havia sido quase toda
"esterilizada". O bloqueio dos ativos financeiros, a não incorporação
da inflação de março de 90 (de quase 80%) e a posterior correção desses ativos
em valores inferiores à inflação real corresponderam a um calote efetivo na
dívida, que foi reduzida a valores muito baixos.
Reza a lenda, difundida pela
mídia conservadora e pelos economistas liberais, que o crescimento da divida é
resultado da "gastança" dos governos, culpa da Constituição de 88 que
foi muito "generosa" com os direitos sociais, culpa dos aposentados -
e por aí vai. Na verdade, com exceção de alguns anos do governo FHC e dos dois
últimos anos do governo Dilma, em nenhum momento os gastos primários do governo
(excluindo juros) foram maiores que a arrecadação de tributos e contribuições
sociais. O chamado déficit primário foi exceção nos últimos 21 anos em relação
aos superávits primários.
Na verdade, a história começa com
o Plano Real e a sua concepção embutida de trocar inflação por dívida. Ao
ancorar informalmente o real ao dólar e abrir o país às importações, com o
objetivo de impedir remarcações de preço pelos produtores nacionais, o governo
precisava de entrada de dólares para sustentar o câmbio e cobrir os déficits
comerciais e de serviços nas contas externas. A forma de obtê-los foi o
programa de privatizações e a subida alucinada da taxa de juros sobre a dívida
pública, atraindo toda a sorte de capital especulativo. Taxas de juros reais
(descontada a inflação) de mais de 10% ao ano eram normais nos anos 90.
Lula assume em 2003 com uma
dívida pública já inflada para R$630 bilhões, decorrente exatamente dessas
taxas de juros extravagantes. A política de juros elevados é mantida por Lula
com Henrique Meirelles na presidência do Banco Central. A alegação era de que
juros altos são essenciais numa economia com tendências inflacionárias
crônicas. Dito assim, pode parecer que a inflação é algo no DNA do povo
brasileiro ou decorrente da água que bebemos. Na verdade, duas são as razões
estruturais para o Brasil ter uma taxa de inflação tão resiliente na faixa
media dos 5 a 6%.
A primeira é que como economia em
transição há um ajuste de preços relativos em curso que os países ricos já
fizeram faz tempo. A elevação em termos reais do salário mínimo, bem como a
melhoria dos padrões educacionais, encareceram o custo da mão de obra de baixa
qualificação, elevando o preço dos serviços. A estabilidade da moeda e a
abertura do crédito imobiliário (praticamente inexistente até então), mesmo que
caro, encareceram o preço dos imóveis. Estes preços relativos os países ricos
já corrigiram faz tempo. Por esta razão é impensável que possamos ter inflação
Suíça, na faixa de 1 a 2% ao ano.
O segundo fator é a persistência
de indexações indesejadas na economia brasileira. Diz-se entre economistas que
uma das vertentes da luta de classes é o esforço em desindexar a renda do outro
lado mantendo a sua perfeitamente indexada. Assim, o discurso conservador
aponta a necessidade de desindexar o piso da previdência e agora até o próprio
salário mínimo da inflação, possibilitando o "ajuste" em tempos de
crise. Mas o Brasil é dos poucos países onde um contrato de aluguel de 30 meses
vem com cláusula de reajuste anual, onde as concessões de serviços públicos têm
cláusulas de reajuste anual indexadas a índices inflacionários, onde portanto a
renda do patrimônio e do capital segue perfeitamente indexada sem contestações,
reprogramando para a frente a inflação passada.
Neste cenário a política de juros
altos, muito pouco eficaz no controle da inflação, nada mais é que um mecanismo
de transferência de renda do conjunto da sociedade para os beneficiários do
rentismo.
Dívida Pública: para que serve e
para o que deveria servir
Na maior parte dos países a
dívida pública é algo positivo. O estado gastar mais do que arrecada para
realizar investimentos em infraestrutura, educação, universalização da rede de
saúde, benefícios que atingirão gerações, diluindo estes custos no tempo,
sempre foi um instrumento positivo para acelerar o desenvolvimento. O maior
desenvolvimento daí decorrente aumentará no momento seguinte a própria
arrecadação tributária, aumentando a capacidade de gasto do estado. Obviamente
que estamos falando de países que remuneram a sua divida com taxas próximas à
inflação e em alguns casos até abaixo. Inacreditáveis taxas de 0,5% ao ano são
frequentes no Japão, por exemplo. Não imagino que fosse possível taxas dessa
natureza no Brasil porque nossa moeda não é considerada reserva de valor ao
contrário do Dólar, do Yen e do Euro, mas taxas próximas à média da inflação
(portanto taxa zero em termos reais) seriam perfeitamente possíveis.
Para além disso, dívida pública é
fundamental como mecanismo de política econômica para regular a liquidez da
economia induzindo maior ou menor crescimento. Se, por uma intervenção
celestial, a dívida fosse extinta, teria que ser recriada.
O problema, portanto, da dívida
brasileira não é o seu tamanho nem a sua existência. É a quem ela serve.
Enquanto for remunerada a taxas de juros despropositadas, obrigando o estado a
gerar superávits primários para a sustentar, ela serve à elite rentista.
Retomar o controle público sobre a dívida, transformando-a em fator de
financiamento do desenvolvimento econômico e social do Brasil, é o programa que
a esquerda brasileira deve assumir como central.
Quanto dos nossos impostos vai
anualmente para pagar a dívida
Em 2014 e 2015, zero. A União
teve déficit primário e, portanto, não sobrou da arrecadação de impostos e
contribuições nem um centavo para a dívida, fazendo com que toda ela fosse
rolada com a emissão de novos títulos com vencimento a futuro. Mais do que
isso, parte dos gastos primários do governo, o déficit primário, também foi
financiado com emissão de dívida. Essa, aliás, é a razão da grita da mídia
conservadora e dos defensores do rentismo, porque esta taxa de juros só é
sustentável se a União obtiver robustos superávits primários, como aconteceu de
2003 a 2013.
Circula pelas redes sociais um
gráfico em forma de pizza atribuído à Auditoria Cidadã da Divida (ACD) que mais
confunde que explica. Essa "pizza" mostra a estrutura de gastos do
Orçamento Geral da União e compara despropositadamente gastos com educação,
saúde e investimentos, todos vinculados ao orçamento fiscal, com os gastos de
amortizações e juros da dívida. Se tivesse, junto à mesma "pizza",
algo que mostrasse a origem dos recursos do Orçamento Geral da União, veríamos
que de 2003 a 2013 a maior parte dos recursos pagos na rubrica da dívida teriam
vindo de captações de novos empréstimos com lançamento de novos títulos da
dívida, restando uma parte menor paga com os superávits primários. Em 2014 e
2015, veríamos que os recursos captados com o lançamento de novos títulos da
dívida superaram os valores pagos relativos à divida vincenda. A diferença é
que de 2003 a 2013, o Brasil realizou superávits primários e, em 2014 e 2015,
teve déficits cobertos com nova dívida.
Para os leigos em economia o tal
gráfico passa a noção absurdamente errada de que, se não tivesse dívida,
teríamos mais 45% do orçamento para gastar. No cenário de hoje, com déficit
fiscal primário em 2014, 2015 e certamente em 2016, a decorrência de uma moratória
ou suspensão de pagamentos da dívida seria a União ter que apertar mais ainda o
orçamento por não ter como financiar o déficit. Paradoxalmente, significaria
mais arroxo.
Dois apontamentos para uma
política econômica de esquerda
Esclarecida a inviabilidade das
soluções mitológicas como "suspenda-se o pagamento da dívida e a profecia
Bíblica de que o mel jorrará para todos se cumprirá", é necessário pensar
um programa de esquerda capaz de enfrentar a realidade.
O primeiro ponto obviamente será
mudar o enfoque do enfrentamento da inflação. Este deverá passar pela
desindexação de contratos, quebrando-se a reprogramação inercial da inflação
passada para o futuro, preservando-se apenas a indexação do salário mínimo e da
previdência, baixando a taxa de juros a patamares próximos à inflação, o que
significa taxa real próxima a zero. Neste cenário torna-se sustentável ter
déficits primários continuados (os EUA têm déficits primários ininterruptos
desde 1960), aumentando significativamente a capacidade de gasto do estado.
Trata-se aqui de fazer da dívida uma aliada do desenvolvimento
O segundo ponto passa por uma
reforma tributária efetiva que aumente a taxação do patrimônio e da renda,
reduzindo os impostos indiretos que oneram o consumo e a produção. Aumentar a
progressividade das alíquotas do Imposto de Renda, voltar a tributar
distribuição de lucros, isento desde os anos 90, criar um imposto federal sobre
heranças (a melhor e mais eficiente forma de tributar grandes fortunas).
Não pretendo nem tenho capacidade
de esgotar este assunto, mas acho fundamental que a esquerda faça um debate
sério sobre economia e aponte saídas reais fora da mitologia que com frequência
a cerca - e que no máximo serve para fazer propaganda de má qualidade.
*Economista e dirigente nacional
do PSOL
Créditos da foto: reprodução
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