A marcha em direção a um modelo social privado sinaliza
grandes dificuldades para a manutenção dos direitos sociais consagrados na
Constituição
Ana Luiza d'Ávila Viana (1) e Hudson Pacifico da Silva (2) -
Plataforma Política Social // www.caramaior.com.br
As grandes inflexões estruturais na história brasileira
foram provocadas por decisões tomadas em momentos de grande crise e desafio
nacional e internacional, como bem destaca Fiori 1. As mudanças ocorridas na
década de 1930, por exemplo, que propiciaram a modernização do Estado
brasileiro e promoveram a industrialização e o crescimento econômico, foram uma
resposta ao desafio provocado pela “era da catástrofe”, das grandes guerras,
revoluções e crise econômica. Passados 50 anos, a redemocratização do país
marcou uma nova inflexão histórica indissociável da mudança geopolítica e
econômica mundial, que começou com a crise e a redefinição da estratégia internacional
dos Estados Unidos, passou pela reafirmação do dólar, pela desregulação das
finanças internacionais e pela escalada armamentista que levou à desintegração
da União Soviética e ao fim da Guerra Fria.
Da mesma forma, a política social brasileira, nas décadas de
1930 e 1980, teve seus grandes momentos de conformação e mudança. Com a
ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, teve início uma importante fase
de expansão dos direitos sociais no país, ao mesmo tempo em que as classes
assalariadas urbanas passaram a ter maior peso no cenário político e econômico.
Na década de 1980, a Constituição Federal de 1988 representou um ponto de
inflexão no sistema de proteção social brasileiro, pelo menos no que se refere
à legislação vigente, pois reconheceu um conjunto amplo de direitos sociais –
e, ao mesmo tempo, instituiu o conceito de seguridade social como conjunto
integrado de ações destinadas a assegurar os direitos relativos à previdência,
à assistência social e à saúde, com universalidade da cobertura e do
atendimento. No caso da saúde, o sistema evoluiu de uma situação de acesso
restrito a determinados grupos da sociedade, vinculados ao sistema
previdenciário, para um sistema de acesso universal.
No entanto, a implementação desse novo modelo foi dificultada
pelos desafios impostos no cenário internacional e, sobretudo, pela conjuntura
interna da economia brasileira que combinava taxas de crescimento baixas com
taxas de inflação explosivas, penalizando, principalmente, os estratos sociais
de mais baixa renda. Enquanto a inflação minava o poder de compra dos salários,
o nível de atividade econômica reduzido não era capaz de gerar os postos de
trabalho necessários para absorver o contingente de novos trabalhadores em
busca de oportunidades.
O regime de políticas públicas que predominou a partir dos
anos 1990 pode ser caracterizado como um sistema híbrido 2, na medida em que
combina políticas neoliberais associadas ao Consenso de Washington ou às
Instituições de Bretton Woods (garantir a estabilidade macroeconômica,
privatização de serviços e de empresas públicas, reformas liberalizantes,
transferências de renda com condicionalidades etc.) com políticas mais
intervencionistas, associadas ao pensamento neodesenvolvimentista (redução da
dependência de poupança externa, pacote de estímulos em períodos de crise,
Estado como proprietário e investidor nos setores industrial e bancário,
aumentos no salário mínimo, políticas industriais para os setores intensivos em
mão de obra e uso de empresas estatais para expandir o emprego e o bem-estar).
No âmbito da política social, esse modelo híbrido esteve
associado ora com o predomínio de políticas neoliberais, ora com uma ênfase
maior nas políticas intervencionistas, configurando diferentes institucionalidades
ao longo desse período, nas quais o papel atribuído ao Estado (e, por
consequência, aos agentes privados) no processo de desenvolvimento nacional é
distinto 3: uma institucionalidade neoliberal no período de 1995-2002; uma
institucionalidade de transição no período de 2003-2006; e uma
institucionalidade neodesenvolvimentista a partir de 2007. As características
de cada período foram diferentes do ponto de vista político e econômico, assim
como as interligações entre as políticas econômica e social, as estratégias-chave,
o público-alvo, as formas e os agentes da provisão de serviços, e o tipo de
financiamento desenhado para política social e, em especial, para a política de
saúde.
No período de institucionalidade neoliberal, a política
social teve como estratégia-chave a descentralização, ao lado do incentivo às
parcerias público-privadas, do estímulo ao controle social e da adoção de ações
focalizadas em regiões e populações mais pobres. Já no último período
(neodesenvolvimentista), as políticas com recortes territoriais (regionais,
urbanas, metropolitanas) assumiram maior protagonismo, ao lado de maiores
investimentos públicos em infraestrutura, saneamento, habitação e saúde
(federais e estaduais), mantendo-se o estímulo às parcerias público-privadas e
a seletividade de programas direcionados para o combate à pobreza.
Que cenários podem ser prospectados para a política social
brasileira nas próximas décadas, considerando as tendências que se delineiam na
atual conjuntura de crise econômica e adoção de políticas de ajuste fiscal, com
recuo parcial do Estado nos investimentos públicos?
As mudanças que emergem na sociedade brasileira durante a
primeira década do século XXI podem ser sintetizadas, segundo Camarano et al.
4, em uma palavra: “redução” (embora a redução tenha sido, em vários aspectos,
relativa). Algumas dessas mudanças foram positivas, como a redução do
contingente populacional em situação de pobreza, da desigualdade de renda, do
desemprego e do número de vínculos informais no mercado de trabalho;
entretanto, outras mudanças representam desafios para as políticas sociais nas
próximas décadas, em particular a redução do crescimento econômico (nos anos
mais recentes) e das taxas de fecundidade e de mortalidade nas faixas etárias
mais elevadas da população.
O padrão da economia brasileira, nos anos 2000, foi marcado
por uma forte redução da vulnerabilidade externa, por um consumo privado
ampliado pelo crédito, por melhor distribuição de renda e por uma recuperação
do gasto autônomo do governo, incluindo modesta expansão do investimento
público em infraestrutura. As três fontes de crescimento (as exportações, o
consumo privado e o gasto público) impulsionaram a taxa de investimento da
economia e o emprego formal para os níveis mais elevados das últimas décadas.
A redução da pobreza ocorreu em razão da expansão das
transferências de renda, em particular a ampliação do Programa Bolsa Família e
da previdência rural, com grande impacto nas áreas rurais do Nordeste, o núcleo
histórico da pobreza no país. A elevação do salário mínimo real (principalmente
entre 2006-2009) teve um papel relevante na redução da pobreza rural (política
previdenciária) e da desigualdade de renda no trabalho.
O crescimento do consumo privado foi possível graças à
redução da pobreza, à expansão do crédito ao consumidor e ao crescimento da
renda familiar per capita e do número de famílias no estrato intermediário de
renda, ampliando as dimensões de uma sociedade de consumo de massa no Brasil.
Essa difusão dos padrões de consumo privado se deu a partir de uma articulação
estrutural entre o regime macroeconômico, a estrutura dos preços relativos e os
salários reais 5.
Entretanto, o impacto do consumo privado foi difuso e
generalizado, como bem destacado por Tavares 6. Isso porque, a despeito do
grande crescimento da demanda nos setores de eletrodomésticos e
eletroeletrônicos (nacionais e importados), bem como nos serviços financeiros
ligados à expansão do crédito, a estrutura de consumo das famílias pouco se
alterou, pois os principais blocos de consumo são os serviços e os produtos da
indústria de alimentos.
De fato, o baixo nível de investimentos públicos em moradia
e transporte impediram maior folga da renda para outros tipos de consumo. Como
resultado, persistiu um elevado comprometimento de parcela da renda com
moradia, transporte, saúde e educação – itens que formam a base contemporânea
das carências e da heterogeneidade dos padrões de consumo da sociedade
brasileira. Esse é o limite estrutural: a mudança na estrutura do consumo
permitiu queda na participação dos alimentos; porém, para faixas superiores de
renda, essa mudança foi comprometida pelos demais tipos de gasto.
Outro aspecto notável desse período foi a forte expansão dos
serviços sociais privados. A alta concentração da renda nos decis distributivos
mais altos e a insuficiente provisão de serviços públicos de qualidade geraram
forte demanda por uma versão mercantilizada de serviços públicos (planos de
saúde, previdência complementar, educação particular, transporte individual,
segurança privada etc.).
Como afirma Medeiros 5, essas duas vertentes de provisão de
renda e serviços – a social democrata pública e a liberal privada (que defende
o subsídio aos planos de saúde e ao ensino privado via renúncia fiscal) – estiveram
presentes na trajetória recente das políticas públicas no Brasil, convivendo de
forma complementar, mas disputando espaço fiscal e político.
Com as mudanças recentes na conjuntura econômica, marcada
pela substancial redução do crescimento econômico (com perspectiva de
crescimento negativo em 2015 e 2016) e pelo aumento das taxas de inflação
associado às políticas de ajuste fiscal, com cortes substanciais de recursos na
área social, as conquistas obtidas na década passada, tanto no mercado de trabalho
como nas demais áreas da política social, estão sendo ameaçadas.
A perspectiva de que a política social brasileira marcha em
direção a um modelo social privado sinaliza grandes dificuldades para a
manutenção dos direitos sociais consagrados na Constituição Federal, na medida
em que esse modelo é caracterizado por uma concepção residual do Estado, com
maior participação das forças de mercado no esforço de desenvolvimento
nacional.
Caso essa trajetória venha a se concretizar, podemos
vislumbrar um cenário com baixa integração da política social com a política
econômica, adoção de políticas passivas ou compensatórias para o mercado de
trabalho, revisão da política de valorização do salário mínimo, redução dos
investimentos públicos em serviços sociais, redução da população coberta pelas
políticas de garantia de renda, com estagnação/redução no valor dos benefícios,
e fortalecimento das políticas sociais focalizadas.
Diante desse cenário, as fragilidades históricas do sistema
de proteção social brasileiro – desigualdades no acesso aos serviços públicos,
falta de integração de programas e ações, desarticulação vertical (entre
diferentes esferas de governo) e horizontal (entre diferentes setores que
integram a política social), baixa disponibilidade de recursos etc. – tendem a
se cristalizar, dificultando as possibilidades de instauração de um processo de
desenvolvimento inclusivo e sustentável.
REFERÊNCIAS
Fiori JL. Longa duração e incerteza. Carta Maior 2015; 28
jun. http://cartamaior.com.br/?/Coluna/Longa-duracao-e-incerteza/33850(acessado
em 21/Jul/2015). [ Links ]
Ban C.
Brazil’s liberal neo-developmentalism: new paradigm or edited orthodoxy? Review
of International Political Economy 2013; 20:298-331. [ Links ]
Viana ALD,
Silva HP. Desenvolvimento e institucionalidade da política social no
Brasil. In: Machado CV, Baptista TWF, Lima LD, organizadoras. Políticas de
saúde no Brasil: continuidades e mudanças. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz;
2012, p. 31-60. [ Links ]
Camarano AA, Kanso S, Fernandes D. A população brasileira e
seus movimentos ao longo do século XX. In: Camarano AA, organizador. Novo
regime demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento? Rio de
Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014. p. 81-116. [ Links ]
Medeiros CA. Inserção externa, crescimento e padrões de
consumo na economia brasileira. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada; 2015. [ Links ]
Tavares MC. Prefácio. In: Medeiros CA, organizador. Inserção
externa, crescimento e padrões de consumo na economia brasileira. Brasília:
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2015. p. 9-14. [ Links ]
1 Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São
Paulo, Brasil.
2 École Nationale d‘Administration Publique
Créditos da foto: Manoel Marques
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