Para Adorno, a primeira e mais
importante função da Educação é impedir que Auschwitz se repita. Não é censurando
a obra de Hitler que isso vai acontecer
Por Murilo Cleto // http://www.revistaforum.com.br/
Na sua Introdução a uma vida
não-fascista, que prefacia O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, o filósofo
Michel Foucault lista uma série de princípios para, segundo ele, uma “arte de
viver contrária a todas as formas de fascismo”. “Não caia de amores pelo poder”
é um deles. De acordo com Foucault, não se trata apenas de eliminar o fascismo
histórico de Hitler e Mussolini, mas aquele “que está em todos nós, que ronda
nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do
poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora”.
A preocupação de Foucault tem
fundamento. De todas as doutrinas políticas forjadas pela contemporaneidade, o
fascismo é a menos política de todas. Quer dizer, antes de ser político, o
fascismo foi um movimento sanitário e até artístico. Em Arquitetura da
Destruição, o cineasta Peter Cohen demonstra como o discurso cientificista do
nazismo construiu uma narrativa que soube cruzar velhos preconceitos com novas
teorias estéticas. E vez ou outra ele está às portas como solução para as mais
diferentes crises que regimes politicamente liberais têm enfrentado desde o fim
da Segunda Guerra. Mas não é preciso ir muito longe: o apreço pelo poder e pela
“hierarquização piramidal”, como sustenta, nos faz verdadeiros fascistas em
potencial. No limiar do século XX, Freud já dizia que democracias são exceção –
e não regra – na história das civilizações.
No dia 29 de janeiro, o
Ministério Público do Rio de Janeiro abriu uma ação cautelar que pedia a
proibição do lançamento nacional Mein Kampf, obra que começou a ser escrita por
Adolf Hitler enquanto esteve na prisão, antes de tornar-se o fürer que liderou
um dos mais brutais genocídios de toda história. Com os 70 anos de sua morte, o
título entrou em domínio público e passou a ser cobiçado pelas editoras. A
decisão judicial foi favorável ao MPE-RJ e ainda estipulou multa de R$ 5 mil
para quem desrespeitá-la.
Parece consenso que a intenção do
MPE não é ruim. O objetivo é impedir a proliferação de ideias nazistas em pleno
século XXI – uma motivação bastante plausível. E é bem por isso que a ação
representa um imenso equívoco. Em primeiro lugar, porque a obra pode ser
facilmente encontrada online e a plataforma nas livrarias seria só mais uma
delas. Em segundo, porque a decisão abre um precedente terrível sobre outros
autores frequentemente – e nem sempre com razão – associados à barbárie. Com a
ascensão de uma vigilância cada vez mais acirrada em torno de uma ideia bem
ruim de “ideologia”, não seria de se estranhar caso autores como Gramsci e
Beauvoir também tivessem suas obras censuradas por seguidores do movimento
Escola Sem Partido e afins. Em terceiro, porque a proibição não produziria
outro efeito senão o aumento da procura da obra, alimentando ainda mais teorias
conspiratórias revisionistas que transformam nazistas em vítimas.
Em quarto lugar, e talvez mais
importante, é preciso considerar que um pressuposto nocivo circunda a
experiência totalitária nazifascista do século XX: o de que ela foi uma espécie
de acidente na história do mundo. E não foi. Hitler costuma ser pintado como
uma figura monstruosa, louca, até esquizofrênica, para limpar a barra da
humanidade neste lamentável capítulo de sua trajetória. E poucas coisas são tão
nocivas para a extinção do fascismo, inclusive deste que Foucault alertou estar
em todos nós, do que este isolamento, historicamente desonesto e politicamente
irresponsável.
Talvez uma das cenas mais
chocantes de A Queda, longa metragem alemão sobre as últimas horas de Hitler no
apagar das luzes do conflito contra os Aliados, seja quando o casal Goebbels
decide tirar a vida dos próprios filhos com morfina e cianureto porque eram
“bons demais” para habitar um mundo com o nazismo derrotado. A sequência
atordoa espectadores não por causa da frieza da mãe, que é quem os envenena,
mas justamente pelo poder que aquela convicção exerceu diante de uma ação tão
difícil, mesmo para supremacistas. Por essas e por outras, A Queda é um filme necessário
para desconstruir a embalagem desumana com que nazistas costumam ser envoltos e
apresentados aos contemporâneos.
Hitler e o nazismo estão
posicionados historicamente e é desta forma que precisam ser inscritos,
inclusive – e sobretudo – se se quer que sejam superados, como, ao que tudo
indica, espera a justiça do Rio de Janeiro. Para Adorno, a primeira e mais
importante função da Educação é impedir que Auschwitz se repita. Não é
proibindo Mein Kampf que isso vai acontecer.
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