Uma conversa franca com o
filósofo Thomas Nagel sobre tributação e redistribuição
por Marcos de Aguiar Villas-Bôas
// http://www.cartacapital.com.br/
Depois de mais de três décadas
lecionando Filosofia na New York University (NYU), considerada por muitos a
principal instituição do mundo no ensino de Filosofia e de tributação, Thomas Nagel
continua morando a poucos metros da universidade. Hoje aposentado, o professor,
coautor do fabuloso livro O mito da propriedade (ao lado de Liam Murphy),
recusa entrevistas, mas recebeu este autor no último dia 10 para uma conversa
sobre a moralidade que embasa a cobrança de impostos por parte dos governos.
Doutor pela Universidade Harvard
sob a orientação de John Rawls, um dos maiores filósofos americanos do século
XX, Nagel não é um especialista em tributação, mas em Filosofia, sobretudo em
Filosofia Moral. Por conta disso, foi capaz de trazer em seu livro com Murphy
observações sobre o que está por trás dos problemas de política tributária.
Na onda de estudos
interdisciplinares iniciada em meados do século XX, teve destaque a “Law and
Philosophy”, movimento ao qual Nagel se dedicou e que colaborou para uma melhor
integração entre a Ciência do Direito e a Filosofia. Com o conhecimento
filosófico, Nagel e Murphy conseguiram ir ao âmago dos debates sobre tributação
e desvelar os valores e interesses por detrás deles.
Ao mesmo tempo, com a ajuda de
alguns professores especializados em tributação, mantiveram um excelente nível
de tecnicidade e profundidade ao tratar das questões tributárias. É um livro
essencial para os brasileiros, que começam agora a se interessar por política
tributária.
O início do livro traz uma
mensagem básica, mas que é simplesmente desprezada por todos os governos
brasileiros, em todas as esferas da federação: a tributação é muito mais do que
levar receitas ao Estado. É um subsistema do sistema social que rege e define
boa parte da economia e das políticas públicas. A tributação define o que será
da riqueza, da renda, do consumo e dos investimentos numa economia. Ela pode,
então, determinar o sucesso ou o insucesso de um país.
Nenhuma medida tributária deveria
ser tomada com vistas apenas ao aumento de receita e no modo mais fácil de
aprová-la no Legislativo. Esses são, no entanto, os critérios de política
tributária normalmente utilizados em países menos desenvolvidos, como é o caso
do Brasil.
Em nações avançadas, analisa-se
quais medidas podem levantar mais receitas, com menos despesas para o próprio
Estado e para a sociedade, e com um máximo de eficiência e equidade para a
economia.
O mito da propriedade também
reflete sobre os inúmeros papéis atribuídos ao Estado. Cobra-se segurança
contra ameaças externas e internas, saúde, educação, mobilidade urbana,
proteção ao meio ambiente etc. Tal carga é colocada sobre o Estado porque ele é
um agente que impõe o direito e tem a missão de garantir o avanço da sociedade
como ela foi inicialmente pensada. É um mecanismo central de funcionamento e
aperfeiçoamento no mundo atual.
A grande questão que se põe é:
qual é o limite? Onde começa e onde termina o dever do Estado de atuar? Onde
ele deve interferir?
No debate mais político e
ideológico, como se tem hoje no Brasil, vê-se corriqueiramente uma abordagem
hipócrita. Há quem retrate o Estado como um agente mau, corrupto, que deveria
interferir o mínimo possível, mas ao mesmo tempo exige, do próprio Estado, interferências
como a criminalização do aborto ou a adoção da pena de morte.
Na tributação, dizem muitas
dessas mesmas pessoas, o Estado pode intervir, desde que para criar deduções
que reduzam o Imposto de Renda das grandes empresas e para isentar os dividendos
dos sócios de pessoas jurídicas. O mantra do “Estado mau”, assim, não passa de
uma forma de manipular o outro em uma tentativa de manter seus interesses
livres de regulação estatal.
Mais salutar que um debate
genérico a respeito do tamanho do Estado seria a discussão sobre quando e como
ele deve atuar para gerar mais benefícios do que custos à maioria da sociedade
e, sobretudo, aos que têm menos condições de se protegerem sozinhos.
Nagel conta que a importante
atuação do Estado como distribuidor de renda é um dos pontos que mais gera
discussões nos Estados Unidos.
É curioso notar como, lá, o
Earned Income Tax Credit (EITC) tem tido uma aceitação razoável tanto de
republicanos como de democratas. O EITC é uma espécie de “Imposto de Renda
Negativo”, que foi defendido por Milton Friedman, um dos ídolos dos
neoliberais. Em vez de pagar imposto,
aqueles com renda abaixo de “x”, recebem valores do Estado. É uma sistemática
distinta, mas com efeitos semelhantes, à do Bolsa Família. O programa
brasileiro, no entanto, é mais completo, por exigir compromisso das famílias
com a saúde e a educação dos filhos.
O mito da propriedade privada
sobre o qual Nagel e Murphy escreveram é a ideia da existência de um direito
natural sobre a propriedade, que dá a ela um ar sagrado e intocável. Ocorre que
a propriedade privada é um conceito jurídico, definido pelo próprio sistema que
também estabelece a tributação. Esse é o modo de vida que se definiu para o
homem, com um agente (o Estado) que tem o poder de impor um sistema jurídico e
de garantir, portanto, a existência de relações com respeito aos direitos
estabelecidos conforme os anseios sociais prevalecentes.
Pode-se questionar essa visão
contratualista (ou convencionalista) da propriedade privada, mas é também
difícil defender que ela seja um direito emanado da natureza. Há expectativas
sociais em torno daquilo que se adquiriu, mas, de fato, é o direito que irá
delimitar os seus contornos. Nesse processo, de acordo com a vontade da maioria
da população, o Estado deverá limitar mais ou menos a propriedade privada das
diferentes camadas sociais.
Um exemplo simbólico dessa
limitação foi a abolição da escravatura, que retirou de determinadas pessoas
aquilo que viam como sua propriedade privada, os escravos, que eram tratados
como coisas e registrados em escrituras.
É, deste modo, uma falácia dizer
que os Estados Unidos foram construídos com base na liberdade. Muitos dos
progressos obtidos na sociedade norte-americana se deveram exatamente à
limitação de algumas liberdades para que outras pudessem ser garantidas.
Em uma sociedade, os direitos se
confrontam. É preciso limitar o de alguns para garantir o de outros. Assim, faz
total sentido que o Estado privilegie os mais fracos em detrimento dos mais
fortes.
Nagel concorda que a tributação é
um meio fundamental para garantir uma maior igualdade social. Ele e Murphy
defenderam em seu livro, contudo, que seria melhor fazer redistribuição a
partir dos gastos, e não na tributação, argumento utilizado por alguns para
defender que não se deve tributar muito progressivamente.
Nagel admite, no entanto, que
após tantos trabalhos publicados nos últimos anos sobre uma concentração de
riqueza e renda cada vez maiores nos Estados Unidos, pode vir a mudar a sua
visão apresentada no livro.
A tributação e os gastos são um
processo único de desconcentração de cima e diluição embaixo. O efeito
trickle-down, a teoria de que o aumento de riqueza e renda entre os mais ricos
iria escoar para beneficiar os mais pobres, nunca se concretizou. Aqueles que
insistem em defender essa fracassada teoria normalmente dizem que a vida das
pessoas hoje é melhor do que era no século XIX. Eles apenas esquecem de que
houve um grande período no século XX em que a tributação chegou a percentuais
altíssimos (91% sobre a renda nos Estados Unidos) e que inúmeras instituições
inclusivas foram criadas ou fortalecidas.
Como explicam Daron Acemoglu e
James Robinson, o primeiro professor do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT) e o segundo professor da Universidade de Chicago,
ex-professor de Harvard, no livro Por Que as Nações Fracassam?, o sucesso ou o
insucesso das nações depende de suas instituições.
As nações que fracassaram
tiveram, na maior parte do tempo, instituições que buscavam favorecer um
pequeno grupo de pessoas ou mesmo outras nações, como no caso das colônias. As
nações que obtiveram sucesso foram aquelas nas quais as suas populações conseguiram
dialogar e chegar a instituições mais inclusivas, que possibilitaram uma
ascensão de grandes partes da sociedade, e não apenas de pequenas elites
controladoras de todo o resto.
Não é difícil concluir que o
Brasil não está entre as nações que construíram instituições inclusivas. Isso
fica claro quando olhamos para o nosso sistema tributário, um dos mais
regressivos do mundo. Da NYU ao MIT, passando por Chicago e Harvard, os grandes
pensadores do mundo defendem que uma nação apenas pode ser grande quando ela
tiver instituições (política, tributação, previdência, educação...) que
possibilitem à grande maioria das pessoas ascenderem. Esse está longe de ser o
caso brasileiro.
*Marcos de Aguiar Villas-Bôas,
doutor pela PUC-SP, mestre pela UFBA, é conselheiro do Conselho Administrativo
de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda e pesquisador independente na
Harvard Law School e no Massachusetts Institute of Technology
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