sexta-feira, 29 de julho de 2016

Qual é a tarefa que cabe ao Judiciário? Por Luiz Moreira Gomes Junior

Por Luiz Moreira Gomes Junior // http://jornalggn.com.br/

Tem obtido ampla repercussão no Brasil a afirmação do Ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “no século XXI, o protagonismo no Brasil cabe ao Judiciário”. Independentemente da validade dessa tese, é preciso discutir a tarefa que cabe ao Judiciário em um cenário institucional em que há crescente demanda por participação popular nas instâncias decisórias, sua possível subordinação aos interesses dos grupos que detêm hegemonia política e a maneira pela qual essas questões interferem na produção de um consenso expresso pela opinião pública, induzido ou formulado pela mídia.
Em primeiro lugar, surge a pergunta pela tarefa do Judiciário em uma democracia constitucional, na qual se exige das instituições uma rigorosa justificação de suas funções. Assim, não se atribui ao Poder Judiciário “fazer” justiça, pois o voluntarismo ou o decisionismo judicial cede lugar a uma atuação institucional em que o “fazer justiça” significa o cumprimento correto dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Portanto, fazer justiça é o desincumbir-se de uma correção procedimental em que há uma sucessão lógica de acontecimentos, não sujeita a humores, a arbitrariedades ou a caprichos. Desse modo, aliando-se um sistema coerente de direitos a uma lógica piramidal judiciária, com primazia das decisões colegiadas sobre as individuais, em que juízes mais experientes, reunidos em um colegiado, controlam as decisões dos demais juízes, há a institucionalização do Judiciário como garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos.

No entanto, na medida em que esse sistema obtém sua legitimidade da opinião pública, passa ele a sofrer forte influência tanto de grupos capazes de representação quanto de consensos que traduzem modos de vida desses mesmos agrupamentos. Assim, se é verdade que o direito só é legítimo na medida em que é produzido pela democracia, também o é a necessidade de uma contenção, a fim de distinguir o sistema de justiça das instituições políticas.

A Constituição brasileira diferenciou os poderes políticos, aos quais compete estabelecer as regras de conduta em processo majoritário de decisão, e o poder judiciário, técnico e contra majoritário, cuja tarefa é decidir os conflitos utilizando-se das normas criadas pelas decisões oriundas daqueles poderes eleitos pela soberania popular, contrariando, se necessário, opinião dos grupos hegemônicos, sejam eles econômicos, corporativos ou midiáticos.

Em segundo lugar, como em qualquer sistema, no de justiça há uma falha estrutural que propicia o surgimento de um estado de exceção na democracia constitucional. Essa exceção autoritária na democracia constitucional permite a institucionalização da violência, transformando cidadãos em inimigos desse sistema. Na mídia, essa violência se cristaliza quando o cidadão é transformado em alvo de campanha jornalística cujo propósito é caracterizá-lo como inimigo do agrupamento hegemônico, na qual a pena a que o cidadão é submetido não advém de sua condenação, mas de sua permanente exposição midiática como investigado ou como réu, não importando se culpado ou inocente. Afligido pelas peculiaridades burocráticas, pela linguagem própria e pela demora inerente ao processo judicial, o castigo do cidadão ocorre com sua submissão ao processo judicial.

É certo que o prestígio do Judiciário decorre da posição eqüidistante adotada ante os conflitos existentes na sociedade. Conflitos não apenas jurídicos. Qual a razão de os poderes políticos deferirem a um rival normativo o poder de arbitrar suas demandas? A sociedade conferirá a um membro das disputas partidárias a tarefa de arbitrá-las?

No Brasil é cada vez mais freqüente que juízes e membros do ministério público emitam opiniões sobre os assuntos mais diversos da vida política nacional. Não raro essas opiniões expressam críticas a poderes, censuras a instituições, contêm até mesmo prognósticos políticos ou simplesmente antecipam suas opiniões sobre fatos e pessoas submetidas à sua jurisdição. Essas condutas não são ortodoxas, contrariam não apenas a tradição judiciária segundo a qual ao juiz compete uma atuação reservada aos feitos judiciais sob seus cuidados como também estimulam o justiçamento dos cidadãos, reforçando a tese de que alguns são vistos como inimigos do sistema de justiça. A fim de se manter eqüidistante das disputas, o magistrado não disputa a hegemonia política, não cria narrativas, não antecipa juízo de culpabilidade e tampouco colabora para que a mídia promova a execração de cidadãos.

Na medida em que magistrados angariam simpatia popular ou se constituem como fontes do noticiário, imiscuindo-se em assuntos tradicionalmente reservados aos partidos, à sociedade organizada, aos poderes políticos e à construção das narrativas políticas, tornam-se atores políticos como os demais, não podendo mais desfrutar de papel de árbitros das disputas. Por isso, além de imparciais, os membros do sistema de justiça devem exercer suas funções com parcimônia e, com isso, exercerem seu papel de poder contra majoritário.

Nesse sentido, a tarefa do Judiciário é a de garantir que os direitos e as garantias fundamentais sejam efetivados enquanto perdurar o marco jurídico que os instituiu. Assim, o judiciário é, por definição, garantista. Nesta seara uma diferenciação foi introduzida, no Brasil em 1988, com as prerrogativas conferidas ao Ministério Público, pelas quais lhe cabe promover direitos. Portanto, o sistema de justiça detém uma divisão de tarefas, cabendo ao Judiciário agir conforme um padrão de inércia e ao ministério público o de promover as ações necessárias ao cumprimento das obrigações jurídicas.

Essa diferenciação é especialmente relevante em duas searas, ou seja, no direito penal e no direito tributário, pois, como se trata da defesa da liberdade e da propriedade, as funções se especializam em decorrência da exigência de as vedações estarem rigorosamente previstas no ordenamento jurídico. Na seara penal, o Judiciário age como a instância que garante as liberdades dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de forma inequívoca o que alega. Assim, a estrutura se realiza de modo dicotômico: (I) ao acusador cabe produzir o arsenal probatório apto a produzir a condenação e (II) aos cidadãos é deferida a perspectiva de defenderem-se com os meios que lhe estiverem ao alcance. Constrói-se, nesses casos, uma imunidade conceitual erguida para salvaguardar as liberdades do cidadão ante o poder persecutório do acusador.

Ora, como é o Estado que promove a acusação, por intermédio de um corpo de servidores constituído especificamente para este fim, o Judiciário se distancia da acusação e passa a submetê-la ao marco da legalidade estrita, de modo que método e instrumento de suas atuações sejam diferentes. Isso ocorre para garantir às liberdades um padrão institucional que tem, no sistema de justiça, o Judiciário como seu guardião.

Assim, cabe ao Judiciário circunscrever-se ao cumprimento de seu papel constitucional de garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos, de se distanciar da tentativa de constatar as vontades das maiorias, de ser o portavoz da opinião pública e de resistir às pressões midiáticas pela condenação sem provas ou absolvição com provas, sendo, por isso, garantista e contra majoritário.

No entanto, um cenário preocupante tem atingido a realidade brasileira ultimamente e que tem transformado o Judiciário em uma instituição absolutamente parcial em matéria penal. Refiro-me às ocasiões em que a mídia passa a defender a condenação de cidadãos, reduzindo demasiadamente a possibilidade de esses cidadãos terem julgamentos imparciais, vez que o judiciário passa a se pautar pela aprovação popular de suas decisões consubstanciadas nas seguintes perspectivas:

(1) As campanhas midiáticas insistem em estabelecer um paralelo entre réus políticos e corrupção. Esse paralelo se realiza do seguinte modo: a necessária condenação dos réus teria papel pedagógico, pois, com ela, obter-se-ia um exemplo a ser utilizado em campanhas midiáticas. Desse modo, TV, Rádios, Jornais etc., utilizam-se de métodos mercadológicos para definir que cidadãos são culpados justamente para que sejam investigados e, finalmente, condenados pelo sistema de justiça. Como a cobertura midiática define o conteúdo de sua mensagem (a culpabilidade dos cidadãos e sua necessária condenação), segue-se a massificação dessa mensagem pela mídia nacional. Assim, essa pressão midiática fomenta não apenas um movimento pela condenação de cidadãos, como também alinha a decisão dos juízes a essa campanha. Por conseguinte, estabelece-se uma correlação entre condenação e combate à corrupção, de modo a estabelecer que juízes que são contrários à corrupção devem por isso condenar esses réus. Contrariamente, os juízes que absolvem os réus assim o fazem por serem favoráveis à corrupção.

(2) Forma-se assim um ciclo vicioso em que o processo judicial passa a ser estruturado conforme uma lógica midiática, cujo roteiro se destina a estabelecer simetria entre as decisões tomadas e sua aprovação por setores da sociedade. Nesse caso, o processo judicial deixa de seguir critérios normativos e passa a se orientar por consensos fáticos, pois, como o que se busca é a aprovação popular, razão da utilização da mídia, a conduta arbitrária desses magistrados “revoga” as garantias constitucionais dos cidadãos e sua condenação passa a ser obtida através de sua exposição como culpado.

(3) Não por acaso as peças acusatórias passam a ter forma de uma narrativa, estruturadas conforme um argumento verossimilhante, em que não se busca caracterizar a conduta do investigado como algo que se enquadre como crime, mas como algo que até poderia ser ilícito, como algo passível de suspeita e de reprovação. Essa narrativa seria improdutiva se não contasse com as campanhas midiáticas, utilizadas para incutir nos cidadãos a convicção da culpa do outro e da suspeita que passa a atingir os alvos dessas campanhas.

É justamente nesse ambiente de associação entre mídia e judiciário que se tenta criminalizar o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Essa associação produz uma narrativa contra o ex-presidente Lula, em que a tipificação penal de sua conduta assume papel subalterno, pois importa ao aparato persecutório do Estado puni-lo por métodos não jurídicos, que podem ser designados como justiçamento, porque o ambiente de sua condenação é diuturnamente difundido pela mídia brasileira, não lhe possibilitando defesa.

Segundo essa narrativa midiática, cuja existência de provas é substituída por argumentos verossimilhantes, em que contra ele basta o talvez ou a dúvida sobre o cometimento de alguma conduta juridicamente reprovável, o que é preciso para classificar sua conduta como criminosa? E como defendê-lo dessa narrativa?

Não por acaso a investigação contra o ex-presidente Lula é marcada por forte teatralização. Além de ter sido vítima de sequestro judicial, nominado pelas autoridades envolvidas como “condução coercitiva”, durante seu depoimento, quando ainda transcorriam as buscas e apreensões em imóveis de seu domínio, membros do Ministério Público, da Polícia Federal e da Receita Federal concediam entrevista coletiva e dissertavam sobre conteúdo cercado por sigilo judicial. Nessa perspectiva é que o ex-presidente Lula foi escolhido como antagonista do aparato persecutório estatal.

Trata-se assim de fenômeno judiciário em que sua condenação é fomentada pela mídia, em que há a rotineira publicação de feitos cercados por sigilos judiciais cujo acesso é negado à defesa e em que o constrangimento judicial consiste em sistemática e paulatinamente negar-lhe acesso aos autos, às provas, ao material probatório, enquanto esse mesmo material é difundido na imprensa com metódica periodicidade.

Essas arbitrariedades judiciais, cometidas na instrução do processo, associamse a uma ilegítima pressão da mídia, evidenciando o prejuízo à defesa advindo do desequilíbrio processual existente no sistema jurídico-penal brasileiro. Isso porque não há previsão de separação entre a atividade de instrução e a atividade de julgamento. O mesmo juiz que instrui o processo julgará a ação, possibilitando ao juiz a oportunidade de defesa da legalidade de sua atuação na fase de instrução, confirmando o protagonismo que lhe foi dirigido pela mídia naquele momento processual. Assim, não havendo separação entre a pessoa que instrui e a que julga, a previsibilidade dos atos processuais ceder lugar à convalidação das arbitrariedades praticadas pelo Judiciário e defendidas pela imprensa.

Portanto, por tudo que acima foi exposto e em decorrência da ampla campanha midiática que postula a condenação do ex-presidente Lula, bem como a demonstração de suscetibilidade do judiciário brasileiro à pressão midiática, são desprezíveis as possibilidades de Luís Inácio Lula da Silva ser julgado com imparcialidade.

Belo Horizonte, junho de 2016. 

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