segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Colômbia se incorpora ao território pacificado da América Latina

A paz não é uma vitória militar de ninguém, e sim a recuperação do reconhecimento do direito humano que pertence a 50 milhões de colombianos e colombianas

                  Álvaro Verzi Rangel * // www.cartamaior.com.br
O governo colombiano e as insurgentes Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (as FARC) anunciaram, no último dia 24 de agosto, o acordo que estabelece um ponto final a quatro anos de negociações e mais de meio século (52 anos) de conflito armado, com quase um milhão de mortos e alguns milhões de pessoas cujas vidas foram devastadas e deslocadas das regiões onde viviam. Agora sim se pode falar da América Latina como um território em paz.

Mas a paz não é um conceito que depende da assinatura de um acordo, nem se resolve votando pelo sim num referendo, como o do próximo dia 2 de outubro. A paz não é uma vitória militar de ninguém, e sim a recuperação do reconhecimento do direito humano que pertence a 50 milhões de colombianos e colombianas, que agora podem sonhar em construir uma vida digna, a qual merecem e pela qual lutaram.
O acordo do cessar fogo não é o último passo do processo de paz colombiano, mas é o mais importante, porque as partes se comprometeram com o fim das operações militares e do uso de armas na política. Historicamente, o Estado colombiano e as elites políticas descumpriram todos os pactos de paz anteriores, o que levou ao assassinato daqueles que se desmobilizaram.

“Esta é o momento de convencer os colombianos de que a paz não é grátis e que devemos assumir o custo. Esta é a alternativa lógica: deixar as armas e tratar de fazer através da política o que buscava antes com as armas”, afirmou Ernesto Samper, ex-presidente colombiano e hoje secretário-geral da Unasul.

Os pontos que até esse momento estiveram pendentes foram as condições de participação política das FARC, a anistia aos guerrilheiros que não cometeram delitos graves ou de lesa humanidade, a reincorporação à vida civil e os mecanismos de verificação dos acordos.

Os que não querem a paz

Votar “não” aos acordos alcançados em Havana, no plebiscito de outubro, seria dizer “sim” à guerra, a mesma guerra que custou 280 mil mortos só nesta segunda metade do conflito (1980-2015) e que já havia custado mais de 500 mil na primeira metade (1946-1980). E os que querem a sabotagem da paz são os que se vêm se beneficiando da guerra, os fazendeiros terratenentes e o ex-presidente pró-narco Álvaro Uribe.

José Félix Lafaurie, presidente da Federação Nacional de Pecuaristas grita em voz alta que “não vamos deixar que nos tirem nossas terras”. A propriedade das terras é um dos maiores problemas que impulsaram a violência na Colômbia desde os Anos 20. A concentração de terras aumentou nos últimos 25 anos, gerando mais conflitos, centenas de mortos e seis ou sete milhões de pessoas deslocadas aos centros urbanos ou países vizinhos.

O poder fático e seu porta-voz (o ex-presidente Uribe) não querem abrir o jogo. As FARC se comprometeram com transformar seu poder de fogo num poder político eleitoral, uma mudança de posição que nenhum governo do país havia sido foi capaz de alcançar. Em 1984, quando os terratenentes fundaram a União Patriótica, seu grande temor era justamente essa nova força de esquerda – cinco mil colombianos foram assassinados para frear essa via. Por trás do “não” aos acordos está o sim a essas sangrentas práticas para impedir que a oposição participe da política.

O sociólogo Alfredo Molano diz que o problema da concentração de terras foi o que obrigou os liberais a usarem as armas em 1899, e também a apoiar os guerrilheiros de Llano nos Anos 50. Essa exclusão é a vem sustentando as guerrilhas das FARC e do ELN (Exército de Libertação Nacional) por mais de meio século.

Álvaro Uribe pretende que só as vítimas das guerrilhas sejam reconhecidas e tenham acesso à verdade, a justiça e a reparação. As vítimas da ação do Estado, que usou seus mecanismos e aparatos armados legais e ilegais, essas vítimas não contam para ele. Os uribistas adotaram o slogan da “luta contra a impunidade”, mas defendem exaustivamente a corrupção e o genocídio cometidos pelos amigos, algo que repetiram durante cinco décadas de sabotagem e obstaculização da paz.

Em matéria de críticas ao processo de paz, há posições frustrantes, cínicas e algumas abertamente mentirosas. É ilustrativo o fato de que o chileno José Miguel Vivanco, diretor do Human Rights Watch, opine a nível internacional que o acordo alcançado é grotesco do ponto de vista da desproporcionalidade entre os delitos cometidos e as futuras sanções. 

Porém, os jornais tradicionais, canais de televisão e emissoras de rádios que construíram o imaginário colombiano durante meio século (RCN, NTN, Caracol), vêm bombardeando as pretensões de um país que está por começar a viver o direito à paz tantas vezes negado. Falsear a informação é coisa de mentirosos permanentes, alterar as imagens, descontextualizar as opiniões também, mas nisso a imprensa hegemônica colombiana possui quase todos os prêmios.

As manchetes são baseados em pesquisas sem rigor, perguntas tendenciosas e ideologizadas, com respostas incoerentes, dando mensagens confusas à população. Os mesmos meios, durante a gestão de Uribe, insistiram no discurso governamental de que a Colômbia não vivia nenhum conflito.

O compromisso de ambos os lados –governo e guerrilha – se encaminha, de agora em diante, cumprir o pactado, o que implica em respeitar os prazos para o começo da desmobilização, da destruição do armamento, da entrega de menores recrutados à Unicef, da ação da Justiça Transicional e da convocação a um plebiscito no qual o povo colombiano decidirá se aprova ou não os acordos.

Hoje, a Colômbia está perto de um momento político sem precedentes na história do país: a criação de um movimento de oposição ao estabelecido. Com o fim do conflito armado, surgirão novas ideias e interesses, sonhos que até então vinham sendo rotulados como heréticos ou subversivos.

A extrema direita – e uma parte considerável da Igreja Católica e das evangélicas – tenta confundir a opinião pública, afirmando que promove o “não” para renegociar, o que esconde um desejo de questionar o cumprimento por parte do Estado do compromisso estabelecido. Simultaneamente, esses setores defendem os “bons costumes” sexuais, afirmando que os acordos de Havana seriam uma manobra para transformar todas as crianças em homossexuais, ou para fazer com que “criminosos possam ser senadores ou deputados”. Em parte, isso é verdade, já que a democracia plena colocará contra a parede as repressões sexual e política.

Uma corrida de obstáculos

Os acordos de Havana incluíram entre os temas uma reforma agrária integral, a participação política, a solução ao problema das drogas ilícitas, a questão das vítimas, a Justiça Transicional, o cessar fogo bilateral e definitivo, as garantias de segurança e o protocolo do cessar fogo. O processo todo começou no dia 19 de novembro de 2012, e naquele então poucos apostavam neste final.

A Colômbia não vai se transformar num passe de mágica. Será uma corrida de obstáculos, até se endereçar o rumo traçado para a paz. O primeiro obstáculo será o plebiscito de dia 2 de outubro. O segundo, a implementação dos acordos de paz.

Há temas transcendentes cujo diagnóstico ficaram plasmados nas mais de 200 páginas do acordo, e que hoje se transformam em desafios imediatos: a pedagogia para entender os acordos, seu cumprimento, o tema dos grupos paramilitares de direita e seu desarmamento e as soluções para outros vários conflitos sociais, econômicos e políticos relacionados com a falta de garantias em saúde, educação, investimento social, emprego e serviços públicos.

Também existe o risco de que o “não” ganhe o plebiscito. O exemplo do ocorrido no Reino Unido com o “brexit” serve de alerta. É necessário uma estratégia para explicar os acordos: a maioria da população está tomando decisões baseadas não numa leitura e análise dos acordos, mas sim na informação da imprensa, a que reflete os interesses do poder fático.

Até hoje, o governo descumpriu 87% dos acordos com diversos setores sociais, após greves e manifestações por condições dignas de saúde, educação, trabalho e desenvolvimento agrário.

O próprio conceito de paz deve chegar a toda a cidadania, tanto as comunidades rurais e urbanas, incluindo aos que foram vítimas diretas do conflito armado quanto os que viveram a guerra através das telas de seus televisores. O número de distritos especiais, vagas diretas para as FARC no Congresso, ou o número de hectares disponíveis ao fundo de terras, foram alguns dos temas que só se resolveram no acordo final, e que a cidadania desconhece até hoje.

O Estado deve dar as garantias necessárias para a integridade dos guerrilheiros, para que se reintegrem à vida civil, e para isso é imprescindível o desmantelamento real e efetivo dos grupos paramilitares de direita, que estão presentes em 22 departamentos mantêm 88 municípios em situação de extremo risco extremo – só em 2015, essas milícias participaram em 1064 casos de violações aos direitos humanos, entre ameaças, atentados, torturas, estupros e execuções.

O paramilitarismo não é uma ameaça somente para as FARC, mas também para defensores dos direitos humanos, que temem que se possa caminhar para uma situação semelhante a que o país viveu no genocídio cometido nos Anos 80 pela União Patriótica, e também que continuem as ameaças contra aqueles que denunciam a persistência das violações aos direitos humanos contra os que querem recuperar suas terras, ou simplesmente trabalhar pela paz.

Com o propósito de contribuir para a geração de condições a curto e longo prazo que facilitem a construção de projetos de vida com civilidade, se tomaram medidas relacionadas com a atenção dos direitos de cada ex-combatente, em termos de saúde, acompanhamento psicossocial, educação e reunificação com núcleos familiares, entre outros, apoios econômicos excepcionais e transitórios, para a garantir certa estabilidade financeira após o abandono das armas.

Também haverá apoios excepcionais, transitórios e diferenciados para iniciativas de caráter individual e associativo, como a organização de Economias Sociais em Comum (Ecomun). Será criado o Conselho Nacional de Reincorporação, instância conjunta entre o governo nacional e as FARC, que terá como um dos seus objetivos realizar o seguimento do processo de reincorporação dos integrantes da guerrilha à sociedade.

O futuro político das FARC

Para se transformar em partido político, os integrantes das FARC deverão deixar as armas. Assim, terão uma representação assegurada no Congresso, com cinco senadores e cinco representantes na Câmara, por pelo menos dois períodos, participando das eleições através de um mecanismo especial, que será fiscalizado pelo Conselho Nacional de Reincorporação.

O novo partido só será reconhecido após o fim do processo de abandono das armas, e depois de cumprir os requisitos que a lei exige para a criação de um partido político (estatutos, plataforma política, entre outros), com exceção à exigência de obter um mínimo de 3% dos votos nas eleições legislativas.

Não haverá a possibilidade de designações políticas aos cargos assegurados às FARC. O novo partido deverá participar dos processos eleitorais de 2018 e 2022, para assegurar uma representação mínima de cinco cadeiras nas duas câmaras do Congresso. Se tratarão de cidadãos no exercício dos seus direitos políticos, pessoas que não terão sua cidadania suspensa como consequência de alguma condenação penal ou sanção disciplinária, assim que for confirmado pelos órgãos fiscalizadores que abandonaram totalmente a via armada.

Voltando ao começo: a paz não é uma vitória militar de ninguém, e sim a recuperação do reconhecimento do direito humano que pertence a 50 milhões de colombianos e colombianas, que agora podem sonhar em construir uma vida digna, a qual merecem e pela qual lutaram, assim como podem se sentir parte desta nova América Latina, talvez o único território de paz, num mundo cada vez mais convulsionado.
 
* Investigador do Observatório em Comunicação e Democracia, e do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica.
 
Tradução: Victor Farinelli

Créditos da foto: Yenny Muñoa / CubaMINREX

Nenhum comentário:

Postar um comentário