domingo, 26 de fevereiro de 2017

Tim Vickery: A ideia de que a iniciativa privada é sempre melhor é uma grande falácia


Tim VickeryColunista da BBC Brasil*
http://www.bbc.com/

Direito de imagemNa Grã-Bretanha, gasta-se 9,1% do PIB com saúde. Nos Estados Unidos, são 17,1% e subindo.


Mesmo assim, na semana passada, quando a minha mãe sofreu um pequeno derrame, fiquei bem feliz que ela é inglesa e não americana.


Ela foi bem e rapidamente tratada no hospital, e a recuperação está sendo acompanhada por uma equipe de especialistas que visitam a sua casa - sem que ela desembolse um centavo por tudo isso.

Claro que nada vem de graça. Alguém tem que pagar. Mas, por enquanto (já que isso é uma outra história), o país goza de um sistema socializado, financiado principalmente mediante impostos e sem cobranças, ou com contas pequenas para remédios.
Nos Estados Unidos, entretanto, o sistema é fragmentado e particular, visando o lucro. Os rios de dinheiro gastos não vão fluindo para um resultado eficiente, a não ser pelos acionistas. A expectativa de vida na Grã-Bretanha é de 81 anos - e somente 78,9 nos Estados Unidos.

A ideia de que a iniciativa privada é sempre a melhor e mais eficaz solução é uma das grandes falácias da nossa época.


Fica evidente, por exemplo, que o seu modelo de saúde é negativo para o povo dos Estados Unidos em resultados e, principalmente, em custos.
Cerca de 35% da sua população já enfrentou dificuldade financeira por causa de contas médicas. E a busca por lucro traz pressões para aumentar as cobranças para os saudáveis e limitar os tratamentos aos doentes - a velha história de oferecer o guarda-chuva quando está fazendo sol e retirá-lo na chuva.
Estima-se que o aumento de um ano na expectativa de vida é capaz de aumentar o PIB per capita em 4%, enquanto uma mão de obra mais saudável pode aumentar a produtividade de uma empresa de 20% a 47%.
Gastos com saúde, portanto, juntos aos com educação e infraestutura, não são custos, mas investimentos. Faz sentido socializá-los até numa lógica puramente comercial, pois reduzem o custo de fazer negócios e aumentam a competitividade da economia.
O oposto acontece quando a iniciativa privada toma conta desses setores. Daí, haverá uma procura por renda, que faz tudo mais caro, tirando a competitividade.
Algumas atividades estratégicas, portanto, deveriam ser feitas pelo Estado - o que conduz a uma das perguntas mais importantes da atualidade: qual tipo de Estado?
Condições fundamentais para a iniciativa privada são um Estado de direito e a proteção dos ganhos, sem as quais ninguém vai investir. Adam Smith, o pai da economia clássica, sabia disso muito bem, embora muitos de seus chamados discípulos já tenham se esquecido...
O governo, escreveu Smith, "é, na realidade, instituído para a defesa dos ricos contra os pobres ou daqueles que têm alguma propriedade contra aqueles que não têm absolutamente nada".


Homem manuseia iPhoneDireito de imagemREUTERS
Image captioniPhone é um símbolo emblemático da equação público x privado, diz Vickery

Duas conclusões. Primeiro, quem mais se beneficia das ações do Estado deveria estar preparado para financiá-lo. A redução de impostos em cima das grandes empresas e os super-ricos é um grande contrassenso.
Segundo, o Estado é um ator integral na engrenagem. Qualquer modelo que considera o Estado uma interferência indesejada fica sem valor, pois postula uma situação que nunca existiu nem poderia existir.
Uma das lutas do século 21 é em prol de um Estado democrático, honesto e eficiente - aquele que criou o sistema de saúde na Grã-Bretanha seria um exemplo.
Foi um Estado mobilizado por guerra que, depois da vitória sobre os nazistas, conseguiu se direcionar para o bem comum. Ajudou nas lutas da minha mãe, que nasceu em pobreza degradante, forneceu para os seus filhos oportunidades impensáveis pouco tempo antes e agora, embora sob ataque de forças poderosas, está a ajudando num momento de necessidade.
É bastante possível que alguém que esteja lendo esse humilde artigo num iPhone - dos quais os componentes-chave (internet, GPS, tela sensível ao toque e outros) foram desenvolvidos com dinheiro público e depois entregues numa bandeja para a iniciativa privada.
O iPhone é, então, uma buginganga emblemática da época contemporânea.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.

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