domingo, 19 de agosto de 2018

Nosso Legislativo é uma farsa


Nonato Menezes

Quem primeiro identificou funções distintas no “poder soberano” foram os gregos antigos. Aristóteles, o precursor, foi quem percebeu que naquele poder havia uma função de elaborar normas, outra de aplicá-las, havendo ainda a função de dirimir conflitos, eventualmente surgidos da aplicação ou da execução daquilo que as leis e seus executores preconizavam. Foi aí que surgiu a iniciativa grega de atender a necessidade de dividir o poder soberano para melhor governar. 

Mas, somente com Charles Montesquieu, ajudado por outros enciclopedistas, é que a ideia tomou forma, teve seu conceito ampliado e recebeu o desenho que temos hoje, o de poderes de Estado ou poder soberano, como deixou dito Aristóteles. Dessa forma, o poder soberano, que tinha funções distintas, foi reorganizado segundo suas funções específicas, isto para melhorar a governança do Estado, surgindo assim, as três nomenclaturas de poder que hoje conhecemos: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. 

Da indicação de Aristóteles aos fundamentos de Montesquieu, percebe-se certa imprecisão quanto à importância dos poderes. Qual deles, em princípio, seria o mais importante e atuaria com mais desenvoltura; isto quando consideramos suas ‘condições e sua liberdade para atuar’. 

No entanto, a teoria e a História nos permitem dizer que dos três poderes, o que mais pode é o Poder Legislativo dadas suas prerrogativas e todas as condições de que usufrui para atuar. Por isso, podemos dizer, com certa segurança, que o Poder Legislativo é aquele que mais poder tem, porque é quem primeiro pensa, discute, elabora e define as ações do Estado. Mais ainda, ele é o poder aonde os atores têm mais liberdade para atuar. 

Além de poder mais o Legislativo é, de longe, entre os três, o poder mais democrático. Pelo menos como princípio deste modelo de convivência dos homens numa sociedade. 

É o mais democrático porque suas prerrogativas são as que mais dão liberdade de atuação e participação de todos, daí, pois, a disponibilidade para os corajosos e compromissados com os interesses de uma nação. É em nome dessa liberdade que ele não tem como impedir, claro, a desenvoltura dos ineptos, dos cretinos e da raia miúda que mais se preocupa em demonstrar e utilizar esse poder para se locupletar. 

No Brasil, o Poder Legislativo não tem atuado segundo esses princípios. Do ingresso ao exercício do mandato, regra geral, o parlamentar sequer entende minimamente o que seja a função legislar. Por falta de fundamentos teóricos e de compromisso com a nação e com a democracia de seus componentes, nossos parlamentos se tornam, a cada legislatura, verdadeiros puxadinhos do Pode Executivo. 

O Poder Legislativo no Brasil é um poder comprado e cooptado. Comprado pelo Poder Executivo como regra, e cooptado pelo Poder Judiciário por circunstâncias. 

Então, vejamos. 

A primeira “necessidade” do titular do Executivo, quando eleito, é conseguir maioria no Legislativo, seja no Congresso Nacional, nas casas legislativas estaduais ou nas câmaras de vereadores municipais. 

A princípio, a justificativa tem sido sempre a mesma: “ter maioria no legislativo para poder governar”, o que é uma prática fundada nos conchavos para justificar o conforto de uma grande mentira. Se não é, como explicar a contumaz evocação professada como uma reza por todo político brasileiro na defesa da independência dos três poderes? 

Por que o Poder Executivo brasileiro precisa tanto de maioria nas casas legislativas? 

Primeiro, porque para nossos governantes, bom e confortável é “governar” sem o contraditório, sem a divergência de ideias e de interesses, a despeito da governança ser contrária aos interesses da população. Assim, não existem conflitos e tudo passa incólume, o que é muito bom para os governantes ineptos. A lógica que permeia esse tipo de comportamento é justamente a possibilidade de juntos, os Poderes Executivo e Legislativo, saquearem a “coisa pública” com a real garantia da cumplicidade. 

Com a maioria na casa legislativa, comprada a qualquer custo e com qualquer moeda, desaparecem os críticos às ações do Poder Executivo, mesmo que a governança seja nefasta. Assim, não tendo críticos dentro da própria estrutura de Estado, reina o conforto nos poderes. Então, na medida em que se precisa de apoio, se adquire os meios para coibir eventuais desafetos externos, que, também, são comprados para assegurarem a cobertura e garantirem a cumplicidade no saque à coisa pública. 

Tão verdadeiras são essas premissas que encontrar gente que se tornou rica ou milionária após alguns anos de mandato, sobretudo na função executiva, dispensa qualquer esforço. 

Outro motivo para que o chefe do Executivo dê a cabeça para ter maioria no Legislativo diz respeito aos interesses dos “legisladores”. Ávidos por empregarem parentes, partidários, admiradores e para a obtenção de outros “benefícios legais”, como a execução de emendas parlamentares, abdicam do privilégio e da obrigação de legislar para apenas, como bons samaritanos, ufanarem-se, para os seus e para os carentes da generosidade dos homens e das mulheres públicos. 

É daí que nasce um novelo sem pontas, revelado na atual crise, onde muitos se arvoram descumprir a lei, inclusive a Constituição, resultando numa barafunda de favores quase sempre imorais e sem nenhum o mais tênue vestígio de ética. 

Dessas trocas de favores, que eles, os políticos, chamam de alianças, têm resultado um verdadeiro engodo na gestão pública brasileira, onde a ideia de autonomia dos três poderes não passa de fantasia, onde a liberdade de um tem seu limite no compromisso assumido com o outro. De tão explícita essa enganação, que se repete em cada Legislatura, o povo se acostumou com a absoluta improdutividade de muitos senadores, deputados federais e estaduais e, sobretudo, de vereadores. Legislar para esses tem um enredo de negligência, de ignorância, de pouco caso com os interesses sociais e, muitas vezes, de puro deboche. 

Assim caminha a nossa nação, instável em seu regime político, com a renda da sociedade cada vez mais concentrada, a comemorar séculos de miséria social, de violência crescente e de outras iniquidades que dia-a-dia nos afasta cada vez mais da almejada civilidade. 

Ainda que todo esse quadro se apresente tão cristalino e óbvio, nossos legisladores se adentram em muitos fazeres inúteis, outros exercem seus mandatos em absoluto ritual de improdutividade. 

Em centenas das Câmaras Municipais, onde os mandatos são cumpridos com enorme esforço de uma sessão por semana, quando acontece, a produção do Legislador é zero ou, quando muito, resume-se à “discussão” sobre a previsão orçamentária que ocorre uma vez por ano e mais nada. 

Não significa, porém, que não apareçam projetos e leis em quantidade expressiva, quase sempre sem nenhuma discussão sobre suas viabilidades, justamente porque a maioria é sobre datas comemorativas como o “Dia da Morte do Boi”, por exemplo, e outras preciosidades. 

Se o tempo livre e aquele destinado à produção de legislação inútil fossem empregados em discussões com a sociedade nas escolas, nos clubes, nas associações e em outros meios o Legislador, além de ser cobrado por sua função pública, levaria às comunidades o ponto de vista de quem exerce o poder de Estado, no que resultaria, certamente, na construção do verdadeiro processo democrático. 

Mas não é essa a premissa que move nossos legisladores, a despeito das demandas sociais pelos serviços públicos em geral, se tornarem cada dia mais explícitas. 

O que verdadeiramente deslumbra a maioria de nossos mais de cinquenta mil legisladores são os interesses particulares, “legitimados” naquele momento de caça ao eleitor, mas negociados somente nos gabinetes de ar frio e de costas para as necessidades da população. 

E por falar em eleitores, eis que estamos em tempo de serem caçados, pois se trata da única maneira de o caçador se legitimar para assim se sentir no “direito” de negar o debate, de não se expor às críticas e cobranças e de se proclamar como representante do povo, pelo menos como farsa.

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