Entrevista a Maria João Tomás, Vice-Presidente do Observatório do Mundo islâmico e Coordenadora da Pós-Graduação em Religiões, História e Política da Universidade Autônoma, em Portugal. Fala do ISIS e do recente atentado contra mesquitas na Nova Zelândia. Para Maria João, “A extrema iliteracia (ignorância, falta de cultura) religiosa que hoje se vive é uma das principais causas do terrorismo e extremismo religioso”
Por: Leonídio Paulo Ferreira
Leonídio Paulo Ferreira - Todas as religiões afirmam ser de paz. É mesmo assim, ou existe uma carga bélica nelas, nem que seja para competirem umas com as outras?
Os dois melhores exemplos são o hinduísmo e o islamismo, porque ambos falam sobre a guerra e até a legislam! O que não quer dizer que o objetivo seja a competição com as outras religiões! No hinduísmo, a guerra aparece num dos seus textos mais sagrados, o Mahabharata, que além de ser uma das mais antigas narrativas épicas da humanidade, é também a história da Índia. Metade do livro é dedicado à batalha pelo trono de Hastinapura, hoje Nova Delhi, e relata com detalhe a importância da diplomacia na guerra, as formações militares, as armas utilizadas, as reuniões de preparação, os discursos proferidos antes das batalhas e até as dúvidas e anseios individuais dos vários heróis. No Islão a guerra é mencionada várias vezes, quer na biografia de Maomé, a Sira, como no Alcorão. Mas na Surata 2:190 está bem claro que a guerra só deve ser feita em legítima defesa, e com regras bem definidas. A legislação bélica foi necessária num contexto de Arábia pré-islâmica, sem regras nem moral, os chamados tempos de Jahiliyyah e Maomé teve um papel determinante para acabar com essas práticas bárbaras. Quer no hinduísmo, como no islamismo, a guerra surge em contextos históricos precisos, e deve ser sempre compreendida dentro dessas balizas. Retirar esse enquadramento, aplicar esses conceitos de forma arbitrária, e sem estudar a fundo a mensagem de cada religião, é perigoso e adultera por completo a mensagem inicial. É, no entanto, muito fácil fazê-lo, e o ISIS, “Autoproclamado Estado Islâmico” é apenas um desses exemplos.
O Mahabharatta, grande epopeia do hinduísmo, é em sua maior parte o relato de uma guerra religiosa.
Quem mata em nome de uma religião, seja o fundamentalista islâmico ou o extremista cristão, consegue ir buscar argumentos na história, recente ou não, para justificar os seus atos. Como podem os correligionários demarcar esses abusos em nome da fé?
A extrema iliteracia religiosa que hoje se vive é uma das principais causas do terrorismo e extremismo religioso. O desconhecimento dos princípios básicos das religiões deturpa não só a forma como são vistas pelos outros, mas também como são vividas pelos próprios crentes. Essa tendência é resultado do crescente distanciamento das religiões, e da negação da importância e da influência que estas ainda exercem no século 21. Não podemos esquecer que a calendarização do tempo está feita em função das festas religiosas, e isto é válido em qualquer parte do mundo! Mas não ficamos por aqui! As regras/restrições alimentares e de vestuário, presentes em todas as religiões, regulam a vida de milhões de pessoas de todo o mundo e têm um peso determinante na economia dos países. A dieta halal dos muçulmanos, que exclui a carne de porco e os produtos provenientes da fermentação, como as bebidas alcoólicas e impõe um abate próprio dos animais, ou a kosher dos judeus, que tem os mesmos princípios, mas com uma cadeia de produção muito mais rígida, permitindo no entanto o álcool, ou ainda os hindus e os budistas que seguem uma dieta vegetariana, são bons exemplos. Já o cristianismo optou por não ter regras e aceitar todo o tipo de alimentos, exceto em determinados períodos/festas, como por exemplo durante a Quaresma que agora vivemos. Mas há muito mais! A cultura e os valores éticos que estão profundamente entrelaçados nas religiões, condicionam o nosso comportamento e caracterizam o nosso modo de vida. O conhecimento das religiões e dos seus princípios fundamentais devia ser obrigatória no mundo globalizado, e de migrações, que hoje vivemos. Serviria não só para evitar desvios aos princípios essenciais das religiões, evitando o terrorismo em nome de Deus, mas também para perceber que há diferentes maneiras de viver e de estar. Tal como dizia na Idade Média o filósofo muçulmano Averrois: “A ignorância leva ao medo, o medo conduz à raiva e a raiva leva à violência”.
Estatisticamente, a maioria dos atentados recentes aconteceram em nome do Islam, mesmo quando isso significa matar outros muçulmanos. Alguma explicação?
Penso que o desconhecimento do Islão por parte daqueles que perpetram esses atentados terroristas é uma das principais causas. Estaticamente, a grande maioria são filhos de segunda ou terceira geração de imigrantes, que não conhecem o país dos seus antepassados e sentem-se desenraizados numa cultura que não é a que têm em casa. Por outro lado, seguiram a tendência de afastamento da religião, comum nas sociedades ditas Ocidentais, e por isso conhecem muito pouco sobre o Islão. Vivem de subsídios do Estado, não trabalham e dedicam-se a todo o tipo de atividades ilícitas e acabam por ser radicalizados na prisão, ou quando já estão perto de lá entrar. São presas fáceis para serem manipulados, com um discurso de ódio que eles creem ser o correto, porque não conhecem a sua própria religião, nem os princípios que ela defende. Acabam por fazer o que lhes é mandado, e por isso chegam a matar outros muçulmanos, na maioria os não sunitas. Mais uma vez defendo a necessidade de haver literacia religiosa para evitar más interpretações e radicalismos fáceis. Tem de haver também um mecanismo interno dentro das comunidades islâmicas para detectarem e controlarem os discursos de ódio. É claro que o mesmo se aplica às comunidades de outras religiões onde o radicalismo, infelizmente, também está crescendo.
Os supremacistas brancos – como o australiano autor dos recentes atentados a mesquitas na Nova Zelândia – que matam para evitar o alegado desaparecimento do homem branco, podem ser ou não religiosos?
O discurso de ódio, racista e de supremacia branca, está crescendo no interior das comunidades protestantes evangélicas, que têm muita expressão nos EUA e no Brasil e foram determinantes para a eleição de Trump e de Bolsonaro. São anti-catolicismo, anti-Papa Francisco, anti-islâmicos, contra a imigração e o multiculturalismo. O extremismo protestante evangélico, mosaico formado por uma infinidade de seitas, está fomentando ódios que alimentam radicalismos e atos terroristas, como este que aconteceu há poucos dias na Nova Zelândia contra mesquitas. Ele tem um papel cada vez mais destacado no panorama político mundial, como por exemplo, retirar Jerusalém da Palestina tornando-a capital de Israel, tal como foi defendido por Trump e Bolsonaro. A sigla WASP, White, Anglo-Saxon and Protestant, “Branco, Anglo-Saxão e Protestante”, cada vez mais popular nos EUA, defende a raça branca contra negros, hispânicos e judeus, fomenta o nacionalismo, combate a religião alheia, seja ela o catolicismo, o islão ou outras. Chegam por isso a aproximar-se muitas vezes da extrema direita nazista, defendendo Hitler e o extermínio dos judeus. Com o discurso fácil de estar vingando a cristandade pelos atentados terroristas islâmicos, têm ganho cada vez mais simpatizantes em todo o mundo, que desconhecem a verdadeira dimensão da sua causa.
Guerras religiosas foram mais mortíferas do que as guerras feitas em nome de um rei ou de um país?
A religião é um argumento fácil de manipular e tem sido usada ao longo da história, com muito sucesso diga-se, para conseguir vários objetivos políticos. É, portanto, muito difícil encontrar guerras onde a religião não tenha sido usada como arma. Dos inúmeros exemplos lembro, rapidamente, as cruzadas que mais não serviram para controlar as rotas de comércio que a expansão do islão estava começando a dominar, as lutas fratricidas entre xiitas e sunitas pelo poder no mundo islâmico, entre protestantes e católicos, sendo a mais recente na segunda metade do século 20 na Irlanda do Norte. Na atualidade, destaco, o que se passou na Síria, onde a propósito dos conflitos entre a maioria sunita e a minoria xiita no poder, chegou-se a uma guerra de proporções globais, onde o que estava verdadeiramente em causa era a aliança Síria-Irã-Rússia e o acesso destas ao Mediterrâneo; a guerra sangrenta no Iêmen, que opõe xiitas e sunitas, e que mais não é senão a ambição de controlar o estreito de Bab el Mandab, um dos mais importantes check-points comerciais do mundo; ou o que se passa na igreja ortodoxa na Ucrânia e a sua separação do patriarcado de Moscou, que não é mais do que o reflexo da situação política entre os dois países.
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