domingo, 27 de setembro de 2020

O Estado e a mediação política



O Estado e a mediação política - o funcionamento de uma sociedade de controle 

1 - O modelo social-democrata

2 - Partidos, sindicatos e associações patronais

1 - O modelo social-democrata

A atribuição a cada pessoa de um caráter individualizado, de tipo mônada, na construção da paz social-democrata do pós-guerra, foi acompanhada pela construção de enormes aparelhos de Estado; um, militar no rescaldo da guerra, mas também administrativo, dedicado à reconstrução da estrutura produtiva e das suas relações económicas internas, mas também a uma forte intervenção na área social, com a criação da Segurança Social, por exemplo, desenvolvido por Beveridge, seguindo Bismark, algumas décadas antes.

Pretendia-se um posicionamento entre pessoas isoladas e atomizadas, de um lado, e um poderoso aparato do Estado como seu único representante, de outro; como única, era também, para a população, um estado-nação, como referência ancorada em uma narrativa histórica, mais ou menos falsificada, de acordo com as conveniências das camadas possuídas. A própria designação de estado-nação revela a fusão entre duas entidades únicas e indiscutíveis impostas aos indígenas de um território - o Estado - como dispositivo, gestor supremo de uma realidade específica, e a Nação, ainda que nesse território haja várias nações, com suas tradições e culturas específicas.

Naturalmente, o Estado teria que encontrar estruturas para enquadrar as pessoas naturais e, as Igrejas que no passado quase monopolizaram essa função, perderam seu atrativo, no contexto das sociedades laicas, como consequência da lógica materialista de acumulação de capital; e, com a salvação das almas como preocupação, enviada aos mais crentes.

Assim, criou-se um chamado modelo democrático por meio da importância político-institucional atribuída a três estruturas, tidas como enquadradoras da população - partidos, sindicatos e associações patronais. Seus interesses, é claro, não são mera coincidência, mas sim objeto de confecção definitiva ou tornada unitária por decisão do Estado, através do selo do governo. Essas estruturas, sendo dominantes e mais midiatizadas, não representam toda a sociedade; por exemplo, as hierarquias militares, as crenças religiosas dominantes, o sistema financeiro, os grandes capitalistas, o capital estrangeiro, algumas embaixadas, o mundo do futebol ... tudo contribui para preencher a matriz de relações que envolve o Estado. No entanto, eles se relacionam com isso de forma menos formal ou menos midiatizada, senão sem qualquer notoriedade pública.

Esse modelo - denominado social-democrata - pretendia e busca a harmonização entre as partes, por meio de uma cúpula decisória que media a unidade política e a conciliação dos interesses econômicos e sociais. Uma aplicação prática foi definida por Cunhal [1] , em Portugal, no início dos anos 1960, como a “unidade dos ilustres portugueses” - um conceito moralista e não muito… marxista - que deixou de fora os grandes grupos económicos e financeiros da tempo que naturalmente tratava seus interesses diretamente com o governo se, nem mesmo com Salazar[2] . Hoje nem a EDP, a Galp, a Volkswagen, a Lone Star ou o sistema financeiro vêem os seus interesses tratados no âmbito do Concerto Social, mas sim, numa instância superior e mais discreta, como ministro ou primeiro-ministro. Uma inserção maior e determinante de um país pequeno e menos influente no plano global tende a fazer do Concerto Social uma vitrine para as pequenas e médias empresas, para dar-lhes voz, direito a uma cobertura midiática formal, a estruturas vazias como sindicatos e associações patronais.

No contexto de um concerto social - tomado como algo mais politicamente abrangente do que a figura institucional com o mesmo nome, o papel do governo será a gestão do aparelho de Estado para harmonizar esses interesses políticos e sociais, para acompanhar as discussões no âmbito dos organismos internacionais, especialmente dentro da UE - independentemente do que os lobbies em Bruxelas possam conseguir - lutar pelos fundos da UE, discutir déficits e níveis de dívida pública, etc.

2 - Partidos, sindicatos e associações patronais

Voltando ao modelo social-democrata, o enquadramento da população é feito por meio de partidos, sindicatos e associações patronais.

Os partidos tendem a ser estruturas fechadas, oligárquicas, autoritárias, onde a hierarquia é pesada e a democracia é apenas propaganda a ser exibida no exterior; algo que não diga respeito a outras estruturas oligárquicas, como empresas, o aparelho do Estado ou estruturas religiosas. Lutas intestinais se desenvolvem para ocupar cargos internos, como nomeações para instituições que detêm o poder e / ou permitem desvio de recursos, remunerações interessantes, subsídios estaduais ou municipais e, despachos que constituam direitos; ou, simplesmente, maior notoriedade pública, como etapas que conduzem a posições futuras. As nomeações de quadros partidários para agências governamentais são uma forma comum de promoção a um nível superior no que diz respeito à remuneração legal ou ilegal; neste ponto, deve-se destacar que se referir à corrupção é sinônimo de envolvimento de quadros partidários, obviamente, com maior incidência de partidos de poder - em Portugal, o PS / PSD… um par de gémeos. E depois, lutas intestinais intensas em um quadro muito competitivo dentro de cada partido, como no seio da oligarquia que constitui o sistema partidário.

Como são, de facto, estruturas do Estado, aos partidos são atribuídos fundos, regalias e, a garantia de que as decisões políticas lhes cabem, ainda que a sua representatividade efectiva seja bastante reduzida. Como os sistemas políticos, historicamente, são oligárquicos, é norma ter modelos de representação em que apenas membros do partido ou, tolerados por suas lideranças autocráticas, possam se candidatar à representação. Assim, as eleições não são nada democráticas; os candidatos que se apresentam são escolhidos directamente pelas directivas partidárias e os seus mandatos não podem ser revogados pelos que votaram neles; porque os votos estão em listas partidárias, sem possibilidade de escolhas individualizadas, na maioria dos países. As castas partidárias passam a ser, pela relativa estabilidade de sua presença nos órgãos estaduais - eleitoral ou não - bem como por suas regalias e direitos especiais, uma verdadeira nobreza; eles replicam a vida política dos séculos XVIII e XIX, constituindo, pela rejeição aristocrática, uma nova classe desans-coulotes mais pacificados e brutais que seus ancestrais.

São variedades nobres, hierárquicas entre si, ocupam todas as situações de representação e tomam todas as decisões dentro dos governos - nacional, regional e local; que ocupam o Tribunal Constitucional, os mais altos escalões da administração pública, as empresas públicas e, a inútil figura do Presidente da República. Tudo isso devidamente selado em uma Constituição, tão sagrada quanto não cumprida, na proporção dos detalhes ridículos que ali se encontram e, que a tornam uma das mais longas do mundo. E isso, nunca cumpriu as nobres intenções do seu preâmbulo colocando Portugal com uma população obrigada a emigrar, correspondendo a 18,8% dos residentes, contra apenas 3,7% no estado espanhol.

O modelo de representação nas democracias de mercado exclui, de forma definitiva, aqueles que não pertencem a partidos e exige que uma candidatura seja inscrita sob a sigla de partido, com a aprovação de sua direção, em regra, com poderes muito marcados para o efeito . O nº 2 do artigo 10º da Constituição afirma que “os partidos políticos competem pela organização e pela expressão da vontade popular”. E, de fato, fora de um partido, ninguém pode se candidatar a deputado no Parlamento, então ninguém ali pode ser nomeado representante de ninguém. Por outro lado, os círculos eleitorais para o Parlamento assentam nos distritos - que não existem - bem como nas regiões administrativas que os deviam substituir (artigo 291 da Constituição), o que também não aconteceu. Depois de ... 44 anos ...

O realismo oportunista dos ditos partidos de direita tende a se fundir com o dos partidos ditos de esquerda; tudo em acomodações confortáveis ​​dentro de uma bipolarização bolorenta em um plano estendido de social-democracia, projetado para manter ad aeternum a gentileza das pessoas comuns e continua a aceitar a precariedade como uma norma de vida.

Nesse contexto, sedimentado e putrefato da democracia, o atual modelo de representação é dado como certo que não se discute. A ideia que fica é que as pessoas se enganam mas não sabem que estão ou, quem não quer saber, mais preocupadas com a hipótese de despedimento, de encontrar algo que permita um salário normal (mesmo baixo), com o pagamento da habitação assim como o carro e um telemóvel cheio de inutilidades, sendo o mais dispensável a geolocalização da sua operadora e a serialização das pessoas, dos seus dados e opiniões.

Isso cria um ambiente de alienação, em que tudo na superfície é falso, precário, insatisfatório, um mau teatro; como acontece com o sistema financeiro dominante que soma seus ativos, sabendo que eles nada representam senão a crença em seu crescimento infinito. A vida sob o capitalismo está repleta de uma chamada virtual à realidade pelo coronavírus atual, sabendo que seu sucessor virá em breve.

Os sindicatos, em sua origem, integraram os processos reivindicatórios próprios de uma conjuntura econômica e política, na busca pela valorização profissional e salarial de seus associados. À medida que sua conexão com os partidos políticos se popularizou, isso levou à integração dos processos de reivindicação nos calendários políticos e eleitorais, sob a responsabilidade dos dirigentes sindicais, e à ascensão de trabalhadores, dirigentes, quadros partidários em cargos por décadas e, dentro de burocracias pesadas.

A precariedade acelerada das funções laborais, com períodos regulares e alternados de trabalho e desemprego, foi integrada pelo Estado, como gestor do subsídio de desemprego e da paz social, a favor dos empresários e do crescimento infinito do PIB. O objetivo é criar uma paz social que atraia investidores, principalmente estrangeiros, propósito comum ao Estado e às burocracias sindicais; ambos precisam de mais “crescimento”, para gerar mais empregos, para a eternização do capitalismo e do trabalho assalariado, preferencialmente precário.

O Estado, na gestão do desemprego e da renda de reposição, assumiu essas funções, coletivizando-as, integrando-as, naturalmente, na ordem capitalista, ao mesmo tempo que os sindicatos se tornaram instituições burocráticas, administradas, de fato, pelos empregados; embora registro voluntário, ao contrário de muitas ordens.

Mais recentemente, o número de encomendas tem sido inflado, como a volta ao corporativismo medieval, a integração obrigatória, o controle dos profissionais que, trabalhando ou não por conta de outrem, acham caro, exigindo fiscalização ali, favorecendo os instalados, deixando os iniciados segundo às contingências do mercado inevitável. Algumas, apesar da designação do pedido, são apenas associações nas quais não há obrigação de registro.

Do ponto de vista político, as confederações sindicais, mesmo enfraquecidas, com queda na representatividade, devido à não sindicalização ou, à criação de sindicalistas autônomos, são, comumente, parte de grupos fechados corporativos. A UGT - criatura inventada nos anos 70, paga em marcos alemães, para rivalizar com a CGTP - visava a instituição de um “mercado” sindical que conduzisse à inclusão de ambos no Concerto Social. Esta continua a ser uma cortina mediática para que a feira favoreça os empregadores de menor escalão, com algumas concessões à representação dos trabalhadores por parte do governo do momento. Na política, é comum que algo tenha que mudar para que tudo continue igual, após a lavagem do rosto.

As associações patronais representadas naquele Concerto Social pertencem à indústria, ao comércio e aos serviços, à agricultura e ao turismo, incluindo em particular o vasto leque de pequenas e médias empresas que apresentam uma característica, talvez única na Europa - os proprietários têm um perfil de qualificação inferior do que os trabalhadores que os servem.

                      Portugal -2017                                  (%)

 

Básico

Secundário

Superior

Funcionários

43,7

28,6

27,7

 Trabalhadores por conta própria

70,6

13,3

16,1

os Proprietários

56,4

23,5

20,1

 

                    Portugal – 2009                               (%)

 

Básico

Secundário

Superior

Funcionários

62,3

19,6

18,1

os Proprietários

78,9

10,3

10.8

 

                        Espanha - 2009                                (%)

 

Básico

Secundário

Superior

Funcionários

39,0

24,3

36,8

os Proprietários

48,1

22,9

29,0

Fonte - Península Ibérica em Números

 

 

Dados de países europeus para 2016 - população empregada (%)


 

 

Básico

Secundário

Superior

 

 

Valores mais baixos

Lituânia - 3,6

Espanha - 24,3

Portugal - 25,7

Romênia 20,5

       Portugal – 26,0

 

 

Valores mais altos

Portugal - 48,4

  Espanha - 33,0

Eslováquia - 72,0

     Chipre - 45,7

      Espanha - 42,7

 

 

Estatísticas de emprego e desemprego, inquérito UE-Força de Trabalho (Eurostat)











É no Concerto Social que os governos, o poder do Estado, dialogam com os baixos empresários e as estruturas de trabalho. A relação entre os governos e as grandes empresas estrangeiras presentes em Portugal decorre com grande discrição, fora do âmbito do referido Concerto Social. No que diz respeito ao sistema financeiro, quase todo este dominado por capitais estrangeiros, após a crise de 2013 a situação é de subserviência governamental, como se pode verificar no processo “polinomial” - BES, Banco Bom, Banco Mau (Bad Bank), Novo Banco, Fundo de Resolução - onde o papel do Estado português é canalizar fundos, antes considerados perdidos, da massa fiscal extorquida à população do país mais pobre da Europa Ocidental.



Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
https://en.scribd.com/uploads

[1] Cunhal foi o líder indiscutível do Partido Comunista Português, durante décadas

[2] Salazar, um ditador fascista português em Portugal durante décadas, era frequentemente visitado por Gulbenkian (um empresário arménio do petróleo muito rico a viver em Portugal), mantendo ambos os laços de amizade. E, sendo ambos francamenteforretas, Gulbenkian nas suas visitas comprava ovos a D. Maria (governanta salazarista)que geria uma granja em S. Bento (na época residência do ditador). Forretaé uma palavra popular portuguesa para definir uma pessoa muito poupada.

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